Poucas coisas são tão importantes para operadoras de telecomunciações do que o acesso a espectro. Mas até aqui, esse era um jogo razoavelmente previsível: a cada leilão, quem tinha maior capacidade financeira dava o maior lance e assegurava o insumo pelos próximos anos. Ou comprava-se algum concorrente.
A reunião do conselho diretor da Anatel nesta quinta, 26 de outubro de 2023, talvez entre para a história da agência como o dia em que o regulador resolveu intervir de modo definitivo nos modelos de gestão de espectro que vinham sendo praticados nas últimas duas décadas e, como consequência, adicionou uma série de incertezas no planejamento das três grandes operadoras móveis nacionais. Não foi sem aviso: Carlos Baigorri, presidente da Anatel, declarou no início do mês que a agência agiria de maneira agressiva para estimular a competição no mercado móvel. A materialização desta sinalização começou a ganhar corpo na reunião desta quinta.
A reunião do conselho diretor começou com uma boa notícia para as operadoras móveis de maneira geral: a aprovação das novas regras de para a faixa de 4.800 MHz a 4.990 MHz, com a previsão de mais 120 MHz para o 5G. Mas a partir daí, todas as decisões vieram com o potencial de sacudir o modelo atual.
Primeiro, foi a proposta de consulta pública do novo Plano Geral de Metas de Competição. Além de incorporar como mercados relevantes (passíveis de remédios na forma de medidas assimétricas) o Mercado de Operadores Virtuais (MVNOs) e o de Exploração Industrial de Radiofrequências (EIR), a Anatel ainda sinalizou que pretende tornar a prática de RAN Sharing algo muito mais restrito: pelo menos para as faixas em que houver novos entrantes (3,5 GHz e 2,3 GHz) haveria uma proibição geral, a todas as operadoras com poder de mercado, para a prática de RAN Sharing até 2031. Hoje o RAN Sharing é uma forma de otimização dos investimentos em redes móveis, em que duas ou mais operadoras compartilham a estrutura de torres, rádios e antenas. Mas a Anatel não quer que esse uso otimizado seja uma vantagem competitva indevida contra operadores entrantes, que não têm como fazer acordos semelhantes. Proibir o RAN Sharing muda muito a equação financeira que faz uma operadora investir ou não em uma determinada localidade.
O outro abalo nos alicerces do mercado móvel veio com a proposta, que ainda passará por consulta pública, do Regulamento de Uso do Espectro (RUE) e que, de novo, cria assimetrias favoráveis aos operadores entrantes. A agência quer desestimular que as grandes operadoras tenham estoques ociosos de espectro, e por isso radicalizou as regras de uso secundário, propondo que o operador que tiver o uso secundário autorizado terá o direito de usar a faixa por até 5 anos. Ou seja, 25% do tempo da outorga nos moldes que estão sendo praticados hoje, ou um terço do tempo da outorga nas autorizações mais antigas, que tinham prazo de 15 anos, pode ficar com um operador que não precisou comprar a faixa em leilão. O único refresco para as atuais detentoras é o feriado regulatório caso as faixas ainda sejam objeto de obrigações editalícias a serem cumpridas.
Não parou ai: a aprovação do acordo Winity/Vivo, também decidida nesta histórica reunião do conselho diretor, pode ter sido uma vitória de Pirro para as duas empresas, caso a Vivo decida que com os remédios impostos (especialmente a vedação de RAN Sharing nas cidades com menos de 100 mil habitantes) o acordo fica inviável. De qualquer maneira, foi uma vitória imensa dos provedores entrantes, que marcaram posição durante a discussão na agência para que a Anatel impusesse, ao menos, condições duras para a aprovação do acordo. Conseguiram, e com isso terão condições melhores de ter acesso ao espectro da Winity na faixa de 700 MHz.
O conjunto de medidas, caso permaneçam como estão depois das consultas públicas e acomodações de mercado, têm o potencial de causar o mesmo tipo de impacto concorrencial que a assimetria de intervonexão VU-M trouxe para o mercado de telefonia no início dos anos 2000, ou que a introdução das exceções regulatórias para prestadores de pequeno porte trouxe para o mercado de banda larga fixa a partir de 2013. Terão também o efeito de mudar a forma como o valor do espectro será calculado em futuros editais, mas com mais players no mercado essa já seria uma conta diferente de qualquer forma.
É justamente o que parece querer a Anatel: mexer no modelo atual. Tudo isso no momento em que as grandes operadoras enfrentam índices declinantes de rentabilidade e tentam marcar posição na disputa com as big techs pelo mercado digital. Uma briga que a Anatel, pelo menos em parte, parece ter comprado em favor das grandes teles, mas sem facilitar a vida das grandes operadoras dentro do próprio mercado de telecomunicações.