Representantes do Brasil e da União Europeia (UE) se reuniram na última semana para a 12ª edição do Diálogo Brasil-União Europeia sobre Economia Digital. O encontro, coordenado pelo Itamaraty, foi uma oportunidade para "revitalizar" as iniciativas de cooperação relacionadas à transição digital entre as economias. Ao menos essa foi a avaliação feita pela diretora-geral adjunta da DG Connect da Comissão Europeia, Renate Nikolay, em entrevista ao TELETIME.
No encontro bilateral foram identificadas uma série de áreas prioritárias para cooperação, de acordo com Nikolay. Entre os destaques, projetos para inclusão digital, sobretudo na região Amazônica. Outras pautas discutidas foram o impacto de tecnologias emergentes, como a Inteligência Artificial (IA); e, também, o fortalecimento das cadeias de abastecimento de semicondutores. Confira abaixo, na íntegra, a entrevista com Renate Nikolay.
TELETIME – Como foi o diálogo de economia digital realizado nesta semana? Quais foram as prioridades em comum identificadas entre Brasil e União Europeia?
Renate Nikolay – Acredito que foi importante revitalizar o diálogo digital entre União Europeia e Brasil, que já havia acontecido há alguns anos, mas que precisou ser pausado após ser um pouco atingido pela Covid. Nós tomamos um pouco de tempo para retomar, mas foi um momento muito bom para fazer isso nesta semana. Fiquei impressionada com a presença da parte do governo brasileiro, de muitos ministros e agências ao redor da mesa. [O diálogo foi] liderado pelo Itamaraty, e nós também tivemos muitos colegas online para ter uma compreensão dos problemas que queríamos abordar. Este é um momento muito bom para nós retomarmos nossa cooperação sobre as medidas de transição digital.
Primeiro, porque nós estamos em meio à transição digital, que tem um impacto tanto nos aspectos da nossa vida econômica quanto também nas nossas sociedades. Se você pegar, por exemplo, todo esse "hype" sobre a IA que estamos vendo agora, isso é algo que nós estamos enfrentando na UE. E o Brasil está também tentando encontrar a sua abordagem, muito determinada por uma linha comum. Queremos, claro, ter talvez um framework regulatório que assegure uma certa IA que queremos. Mas, de outra forma, que também seja uma política de inovação. Estamos trabalhando bastante na transição digital e estamos vendo desafios e identificando áreas onde podemos, de forma concreta, cooperar.
Por exemplo, um aspecto claro para a transição digital é ter conectividade resiliente, segura e completa. Isso é algo que estamos trabalhando na Europa e que também é um projeto importante aqui [no Brasil] Se você olhar o Projeto Norte Conectado que abrange toda a região da Amazônia, que é desafiadora quando se trata de conectividade, há uma área concreta onde podemos cooperar. Além dos links que temos de investimento em infraestrutura, há forte presença de algumas das companhias europeias, como Nokia, a Telefónica e tantas outras que podem estar envolvidas nisso.
Outra pauta de conectividade é o cabo submarino EllaLink, no qual estamos sendo pioneiros entre a UE e o Brasil. Ele tem estado lá há um tempo e pode ser estendido, e talvez também usado para novos casos de uso, como o 5G e o 6G, dependendo do contexto, para que possamos avançar e explorar possibilidades para continuar trabalhando em ideias que também são comuns em ambos os lados, como cidades inteligentes ou agricultura inteligente, nas quais você traz uma nova tecnologia de forma segura.
Há outra área em que podemos trabalhar juntos, que é a economia de dados. O Brasil e a UE são muito parecidos quando se trata de nossa abordagem à privacidade de dados, pois vemos isso como uma base importante. Mas, é claro, também queremos ter certeza de que podemos ter o fluxo de dados e o uso dos mesmos. Isso porque, sem dados, não teríamos soluções de IA ou quaisquer tipos de projetos de transição digital. Então, identificamos que realmente queremos avançar e finalizar decisões adequadas, que facilitariam o fluxo de dados em ambos os lados.
Como fazer o melhor uso dos dados? Quando você pensa na Internet das Coisas, nós falamos sobre grandes quantidades de dados industriais. Esses dados podem ser usados para inovações. Na Europa, nós estamos explorando, por exemplo, ideias como a dos dados comuns. O Brasil está muito interessado em explorar possibilidades para talvez ter cooperação sobre isso. Pense sobre a medicina personalizada, uma das principais promessas de aplicações de IA no futuro. E se nós pudéssemos ter um melhor intercâmbio interoperável de dados sobre dados de saúde para pesquisa? Para aplicações, isso seria ótimo.
A outra questão [debatida no diálogo Brasil-UE] foi o governo digital. Acredito que isso também é algo que é comum. Temos na Europa agora o plano de estabelecer a Electronic Digital Wallet até 2026, que será interoperável em todos os lugares da União Europeia. O Brasil segue uma tendência similar com a identidade digital. Aqui nós queremos trabalhar em direção à interoperabilidade dos dois sistemas e, eventualmente, o reconhecimento mútuo.
Essas são algumas das áreas concretas, assim como cadeia de suprimentos, semicondutores, acesso ao poder dos supercomputadores, que nós realmente identificamos como áreas concretas de trabalho que nós queremos agora nos engajar, seguir o diálogo e fazer muito na escala operacional, para que possamos ter resultados tangíveis para nossos cidadãos e negócios.
TELETIME – O Brasil está agora discutindo um projeto de lei sobre regulamentação da inteligência artificial. Há quem diga que uma lei semelhante a da União Europeia para IA poderia funcionar aqui. Como foi a recepção à Lei da IA aprovada na União Europeia?
A forma como o Brasil avança em relação a IA, é um debate muito parecido com o que nós tínhamos na União Europeia. Na UE, nós sempre tínhamos um objetivo: queríamos ser pioneiros em um framework regulatório. E isso foi complexo, porque nós éramos os primeiros em todo o mundo a criar um pacote regulatório sobre a inteligência artificial, mas nós queríamos fazer isso de forma inteligente.
Ou seja, não de uma forma que proíba a AI. Pelo contrário, [queríamos] uma forma que tivessem poucas linhas vermelhas, onde dizemos "não queremos isso". De outra forma, isso é uma maneira de ter uma abordagem para riscos, para identificar as poucas áreas em que dizemos que podem existir riscos como, por exemplo, a IA em recrutamento. É preciso ter certeza de que não se está aprofundando distorções e a discriminação.
É necessário encontrar a balança entre interesse de segurança e liberdade. Mas no resto, a Lei da IA [da UE] é realmente uma lei empolgante. É acompanhada pelo sandboxing, então é acompanhada no sentido de dar um estímulo para a inovação europeia em IA. Também queremos acelerar o acesso de startups de IA ao poder de supercomputadores. Porque nós queremos, na Europa, ter startups de IA que estão sendo treinadas com nossos dados na Europa. Nós não queremos depender totalmente dos hyperscalers na América do Norte, por exemplo.
Vejo muitas similaridades das nossas discussões [com o debate] aqui, se você olhar o governo de Lula na narrativa sobre a IA. Sobre ter uma boa parte de IA para o sul global e para o Brasil, e não uma tecnologia que seja totalmente determinada pelo norte global. [É preciso] modelos que são treinados com os dados daqui e que sabem qual o tipo de patrimônio cultural que existe aqui.
Tivemos uma conversa maravilhosa com o Senador Eduardo Gomes [relator no Senado do projeto de regulação para IA], e sinto que há um verdadeiro ímpeto para ter conversas entre a UE e o Brasil neste momento crucial, para o Brasil projetar seu próprio tipo de abordagem regulatória e de inovação em IA. Essa é realmente uma área onde as discussões podem ser de interesse mútuo.
TELETIME – Qual é a importância da convergência na regulação dos países?
Eu acredito fortemente na importância de se ter políticas de cooperação internacional e também acredito bastante na importância de instituições multilaterais fortes. O contexto geopolítico que vivemos colocou algumas perguntas sobre a força desse tipo de conceitos e estruturas que foram construídas, em particular, desde a Segunda Guerra Mundial. No entanto, encontrar outras formas de conseguir mais convergências internacionais é muito mais importante.
O Brasil está em um papel de estrela este ano com a liderança do G20. E a digitalização importa e já foi bem puxada pela anterior presidência do G20, a Índia. Vemos que o Brasil quer levar isso para o próximo nível. Somos muito a favor de tentar definir, entre os parceiros aliados, princípios. Talvez não imediatamente com convenções internacionais, mas, pelo menos, princípios, aproximações e abordagens, que podem nos guiar e nos garantir que caminhemos todos em uma direção similar quando se trata de experiências tão disruptivas como a IA.
TELETIME – A indústria de semicondutores é parte essencial para o desenvolvimento de soluções em inteligência artificial. Como que o Brasil e a União Europeia podem colaborar na indústria de semicondutores?
Este aspecto que você mencionou é muito importante. Acredito que a União Europeia e o Brasil experienciam isso de uma maneira difícil, o que significa que nossas cadeias de fornecedores não estão seguras. Vi muito disso nos tempos de Covid, por exemplo, se você analisar o setor automotivo, de importância clara nos Estados Unidos, mas também de importância clara no Brasil. Foi muito visível que houve um impacto imediato [da pandemia na disponibilidade de semicondutores].
Então eu acho que essa é uma parte do debate em que vemos que precisamos encontrar soluções para as cadeias de fornecedores. Na União Europeia, nós também atuamos do ponto de vista regulatório. Nós adotamos a lei de prevenção das cadeias de suprimentos, que é como se fosse um conjunto para reindustrialização e fabricação de chips na União Europeia, e também para atrair investimentos. Neste sentido, ela já é de muito sucesso e também abriu espaço para a cooperação internacional.
O Brasil estava muito interessado em ser parceiro nessa cooperação e vamos explorar isso mais tarde. Isso poderia ser sobre ter um tipo de abordagem parecida, compartilhamento das melhores práticas, mas também identificar o potencial para desenvolver pequenas ações, para que você possa estar em uma atividade mais preventiva, para evitar as mesmas situações e riscos que vimos no contexto da Covid. Essa é uma similaridade que queremos explorar mais tarde.
TELETIME – A Europa está passando por uma rodada de consolidação entre operadoras de telecom. Qual sua análise sobre este cenário?
Acredito realmente que estamos em uma "encruzilhada" na Europa. Realizamos um whitepaper [documento técnico] relacionado à conectividade digital do futuro apenas há um mês, e esse documento é o resultado de uma consulta anterior, que agora está disponível para novas consultas, e que vai formar quais as medidas regulatórias do futuro que vamos tomar.
O que estamos tentando fazer aqui? Nós estamos tentando aplicar, pela primeira vez, uma abordagem holística sobre a conectividade digital do futuro. A primeira mensagem clara é que a conectividade digital do futuro é a base para a competitividade futura. Isso porque você não pode esquecer das aplicações de IA, [que não existem] se você não tiver uma conectividade segura e resiliente em todos os lugares, com baixa latência e alta qualidade. Imagine que você tenha condução autônoma de veículos ou agricultura inteligente. Você precisa garantir que você tenha cobertura permanente, data storage e dados de transmissão a todo o tempo. Nós não temos isso na Europa, e vocês também não tem isso aqui no Brasil.
Na Europa nós ainda temos os whitespots [pontos sem cobertura de Internet]. Existem diferenças entre áreas urbanas e rurais e nós precisamos fazer uma frente de pressão. Também vemos que, por causa de todas essas aplicações potenciais, a tecnologia está mudando.
No passado, as telecomunicações foram organizadas verticalmente. O futuro será configurado de uma forma muito diferente e abrirá oportunidades de negócio totalmente diferentes. Porque o que estamos observando é a virtualização da rede, a "softwarização" da rede… Na verdade, o cloud se mistura com as redes, e isso está ficando confuso. O que significa também que os atores, como Microsoft, Apple ou Telefónica, estão confusos com o que podem fazer. Tudo se movimenta mais para o core [núcleo] da rede, onde há modelos de negócio realmente novos que queremos apreciar.
O terceiro elemento é que há um problema de segurança real. A perspectiva é um pouco diferente aqui, mas na Europa, estamos enfrentados atos de sabotagem da nossa conectividade, nas nossas redes. Precisamos de uma forma de apoiar a nossa abordagem para ter uma conectividade segura e resiliente. Especialmente quando se trata de cabos submarinos, mas não somente nisso.
É sobre ter uma abordagem holística sobre a conectividade de satélites, terrestres e tecnologias submarinas, algo que nunca foi feito antes. Não é mais só a velha conversa sobre o fair share. É sobre a tecnologia que está se movendo, sobre modelos de negócio novos que estão se desenvolvendo, aspectos de segurança que estão mudando, e que precisamos atualizar o nosso framework regulatório para tratar disso.
Principalmente sobre esse o debate do fair share, eu tive a chance de estar com representantes de alto nível da Anatel no Mobile World Congress (MWC) em Barcelona. Creio que todo o mundo precisa encontrar suas próprias soluções para isso, mas vejo que o fenômeno que vocês estão debatendo aqui no Brasil no momento, em boa parte, é sobre como lidar com o fato de que queremos ter uma transição digital. Ou seja: queremos ter mais dados, porque precisamos para as aplicações de IA, precisamos para a transição digital que todos queremos. Então, é necessário ter um campo de jogo nivelado entre os atores. E você precisa ter um uso mais eficiente [das redes]. Essa é uma responsabilidade para todos.