O conflito entre o empresário Elon Musk e o Tribunal Superior Eleitoral, especificamente o ministro Alexandre de Moraes, tem colocado na pauta de debate das autoridades brasileiras a crescente preocupação sobre questões de soberania do País, e sobre o risco de se ter uma plataforma de comunicação com o peso da plataforma X (antigo Twitter) operando sem nenhum tipo de regulação.
As mensagens de Musk mostraram que ele está disposto, pelo menos no discurso, a fazer o que quiser, de acordo com seus critérios ideológicos. Ainda não chegou às vias de fato do enfrentamento, que por enquanto tem muita retórica e engajamento, mas pouca ação. Mas a ameaça está colocada, sabe-se lá com qual propósito, e isso bastou para colocar as autoridades brasileiras de prontidão
Não se pode esquecer que esse não é o único negócio de Musk no Brasil. Ele também é dono da operadora do serviço de banda larga via satélite Starlink, que no Brasil já chega a 150 mil assinantes. Percentualmente foi o serviço de banda larga que mais cresceu em 2023.
A autorização de operação de satélite estrangeiro foi dada a Musk pela Anatel no início de 2022, e desde então a Starlink está causando uma verdadeira revolução no mercado de satélites.
O serviço foi pensado originalmente para o segmento residencial, tanto que não tem qualidade de serviço assegurada (ainda), o atendimento é por email e quase sempre na base do "se quebrou, manda de volta". Não existe nenhuma estrutura operacional de presença no Brasil além de equipes de suporte jurídico e representantes de vendas, e talvez alguma equipe técnica que cuide da manutenção das estações terrenas espalhadas em território brasileiro.
Exército, Marinha e TREs querem Starlink
Ainda assim, basta fazer uma rápida pesquisa nos sites de compras públicas que é possível ver contratações da conectividade Starlink pelo Exército (Edital 90002/2024), Marinha (Contratações 90002/2024, 00009/2023 e 00169/2023), Tribunais de Justiça (aqui), Tribunais de Contas estaduais (aqui) e até mesmo tribunais Regionais Eleitorais, conforme divulgado pelos sites do TRE de Tocantins (aqui) e Mato Grosso (aqui), apenas para citar alguns casos de contratações que, supostamente, lidam com informações e dados potencialmente sigilosos.
No ano passado, o governo quase optou por limitar os parâmetros de contratação de banda larga em escolas a uma capacidade que só poderia ser atendida pela Starlink, como noticiou em primeira mão TELETIME (aqui e aqui). E nesse momento a EACE e a própria Telebrás estão atrás de parceiros para atender aos objetivos de conectividade em escolas – e a Starlink era uma possibilidade real de parceria pela sua capacidade quase imbatível.
Ressalte-se que o relacionamento da Starlink com o governo se dá quase sempre por meio de representantes comerciais locais, mas que segundo apurou este noticiário trabalham em um modelo imposto pela empresa de Elon Musk, sem margem de negociação ou alterações relevantes no contrato padrão. O que se oferece a mais a estes representantes, em geral, é um canal de suporte um pouco mais eficiente do que aquele oferecido aos usuários residenciais.
Em março, este noticiário esteve na Satellite 2024, principal encontro setorial do mercado de satélites mundial, realizado em Washington, evento em que há vários anos a Starlink é o principal tema, seja pela disrupção que está provocando na indústria, seja pelas preocupações políticas e geopolíticas de avanço de uma plataforma global de banda larga, sobre a qual os governos têm pouquíssimo poder de ingerência.
Qual a política?
No evento, um interlocutor que atua na esfera governamental brasileira comentou com este noticiário que avaliava preocupante o fato de que até hoje o pouco que se tem de política nacional para o espaço não reflita os potenciais riscos geopolíticos das constelações de órbita baixa, ainda mais quando a atuação em território brasileiro se dá de maneira tão agressiva e sem nenhuma presença efetiva.
Nesta segunda, dia 8, depois da polêmica Musk vs. Moraes, o ministro da Secretaria de Comunicação da Presidência, Paulo Pimenta, disse que o governo poderia rever contratos com a Starlink, mas falou em contratos de "geração de energia", segundo o jornal Valor. Trata-se de uma área em que a Starlink não atua e que, sendo um lapso do ministro e não da publicação, só reforça como o tema está pouco maduro dentro do governo.
Pode-se alegar que a Starlink tem gateways no Brasil, que são estações terrenas por meio das quais os satélites se conectam entre si e com a Internet. Segundo dados da Anatel compilados por TELETIME, são 19 estações terrenas licenciadas. São estações bastante simples, que abrigam apena um conjunto de antenas, e muitas delas não estão ativadas ou sequer mostram, pelas imagens de satélite, quaisquer sinais de edificação. Esses gateways estão ligados à rede brasileira de telecomunicações e, no limite, podem ser objeto de uma intervenção direta, seja por uma ação Judicial, da fiscalização da Anatel (uma ação de bloqueio) ou até mesmo, em casos extremos, de órgãos de Defesa.
Mas isso pode mudar radicalmente quando as constelações LEO adotarem a comunicação por laser entre os satélites, o que é parte de vários projetos de redes satelitais, e que a Starlink pretende colocar em operação já esse ano, como relatou TELETIME nesta reportagem.
Uma rede autônoma
Com isso, a rede de satélites poderá ser capaz de oferecer Internet no Brasil e em qualquer lugar do mundo sem nenhum tipo de possibilidade de controle local do tráfego. Hoje ainda é possível interferir no serviço Starlink atuando na interconexão dos gateways, que é feita por meio da rede de fibras brasileiras. Mas em um cenário não muito distante, quando as constelações LEO funcionarem interconectadas por links de laser diretamente no espaço, se a Justiça brasileira determinar que as operadoras bloqueiem o acesso à rede social X, por exemplo, os usuários de Internet conectados pela Starlink não seriam afetados. Ou, em outro sentido, com um apertar de botão, o controlador do serviço de satélite poderia cortar o sinal de todos os usuários no Brasil, incluindo Marinha, Exército, TREs etc. Como, aliás, Elon Musk fez na Ucrânia em 2023.
Não por acaso a Europa trabalha no desenvolvimento de uma constelação própria para fazer frente à Starlink, a constelação IRISS; o governo do Canadá investe alto na constelação Lightspeed, da Telesat; a China trabalha na constelação Guowang (SatNet) e já tem uma segunda geração em planejamento; a Rússia tem o projeto Esfera (Efir); fora as várias iniciativas comerciais, como a Eutelsat OneWeb (também sob forte influência europeia e já em operação), Kuiper (da Amazon), O3b mPower, da SES (nesse caso em órbita média), a pioneira Iridum, a Globalstar e outras tantas.
O assunto já é prioridade da agenda estratégica dos principais países no mundo, seja na diplomacia, seja na defesa. No final do ano passado, durante a Conferência Mundial de Radiocomunicação da União Internacional de Telecomunicações (WRC 2023), um dos temas mais discutidos entre os países foi justamente a questão do espaço, incluindo regras de sustentabilidade e uso do espectro pelas novas constelações. Debates em que o Brasil, liderado pela Anatel, tornou-se protagonista, diga-se de passagem.
Disrupção
O produto vendido por Elon Musk com sua Starlink é, em muitos aspectos, sem concorrência no mercado satelital hoje: trata-se de um sistema de instalação muito simples, que chega pelo Correio, com altíssima tecnologia embarcada, com uma experiência de usuário totalmente digitalizada e que, com a quantidade atual de usuários, se aproxima bastante da banda larga em fibra ou cabo, oferecendo facilmente conexões de 200 Mbps ou mais a baixas latências.
E tem o marketing, seja ele de influenciadores e redes sociais, seja do boca-a-boca. Em função desse apelo, e da aura de genialidade e disrupção que cerca todas as atividades de Elon Musk, um produto que nasceu para ser residencial virou padrão de exigência inclusive em compras públicas, e por consequência a pressionar o mercado de satélites como nunca tinha acontecido na história recente do mercado.
Trata-se de uma tecnologia inegavelmente disruptiva e que mudou para sempre o mercado de satélites, mas que tem aspectos importantes a serem refletidos relacionados à soberania, ao grau de controle das redes e dos serviços, aos aspectos regulatórios e, como ficou evidente na disputa com Alexandre de Moraes, ao fator Elon Musk.
O público tem duas opções, confiar nos governos ou confiar na iniciativa privada. Os dois tem seus interesses, claro, mas o primeiro tende a ser mais repressor e violento, inclusive pode te asfixiar financeiramente e te colocar na prisão com ou sem fundamento legal. A história mostra isso.
A verdade continua sendo, onde o governo mete o bico nada funciona bem. Ainda fica pior se o governo for de esquerda. A falta de transparência impera para esconder a corrupção.