Uma das mais surpreendentes decisões recentes da Anatel terá, na próxima terça, dia 12, a sua prova de fogo. A inédita e improvável decisão da agência de negar anuência prévia para a troca de controle da Surf Telecom S/A terá o julgamento do recurso da Plintron do Brasil Participações e Investimentos Ltda (Plintron BR), que busca assumir o controle da MVNO. A matéria está sob a relatoria do conselheiro Alexandre Freire e consta na pauta da última reunião da agência em 2023.
O caso chamou a atenção por uma série de razões: a Anatel nunca havia negado um caso relevante de pedido de anuência prévia para troca de controle; a decisão unânime do conselho diretor se deu em sentido contrário ao que haviam recomendado as áreas jurídicas e técnicas da agência; e o prazo entre a matéria chegar ao conselho e ser pautada foi de 48 horas, pouco comum em situações com esse nível de complexidade e repercussão. A Surf Telecom é uma das principais operadoras virtuais brasileiras, com cerca de 860 mil clientes, segundo dados da Anatel de setembro, e é a operadora que dá suporte para a operação móvel virtual dos Correios, além de ter participado (e depois desistido) do leilão de 5G na faixa de 26 GHz.
A justificativa da agência para a negativa da transferência de controle ficou telegráfica e explicada de maneira superficial no Acórdão. Alegou-se apenas "risco à prestação do serviço em virtude da constatação de afronta intencional e direta aos direitos dos usuários do serviço de telecomunicações e sua possível manutenção após a realização da operação societária". Este noticiário tentou obter a análise que embasou a decisão da agência, mas o documento foi mantido integralmente sob sigilo sob a alegação de envolver questões discutidas em arbitragem.
De qualquer forma, mesmo nas poucas palavras que descrevem a preocupação da agência, há uma acusação séria, considerando que a Plintron é uma multinacional que atua como MVNO em vários países e uma decisão no Brasil pode ter implicações globais. A Plintron BR pertence a um grupo com sede em Singapura e que alega ter 15 anos de atuação em 31 países, parcerias com mais de 40 operadoras móveis e 175 MVNOs ao redor do mundo, e presta serviços a mais de 170 milhões de assinantes móveis. Além disso, o grupo possui outorga para a prestação de serviços de telecomunicações na Índia, EUA, México, Colômbia, Chile, Polônia e Áustria.
Extrapolação ilógica
A leitura do pedido de reconsideração da Plintron, que se tornou público esta semana, mostra que a negativa do conselho da Anatel, como já havia indicado este noticiado, está intimamente relacionada à disputa societária que Plintron e o fundador da Surf, Yon Moreira, travam desde 2016. Trata-se de uma disputa antiga e conhecida, o que inclusive conferia à anuência prévia uma atenção especial.
Mas o problema pode ser maior do que a disputa em si entre as duas empresas e extrapolar para futuros julgamentos e decisões da agência, além do risco evidente de uma judicialização. A Plintron sustenta que teve seu direito de defesa completamente cerceado na decisão do Conselho Diretor, que a decisão do colegiado da agência utilizou argumentos e processos estranhos aos autos sem direito ao contraditório da empresa, o que a deliberação terá como consequência direta tirar o direito da empresa de operar no Brasil e assumir o controle da Surf, conforme direito reconhecido em arbitragem.
Além disso, sustenta que a Anatel pode estar abrindo um precedente inédito e perigoso pelo qual a agência passaria a analisar, em atos de anuência prévia para transferência de controle (que não são discricionários por parte da Anatel e só podem ser negados em circunstâncias muito específicas), casos paralelos relacionados aos atores envolvidos, considerando inclusive a atuação de empresas que sequer são reguladas pela agência, punindo-as com o banimento no mercado brasileiro de telecomunicações e, portanto, extrapolando suas atribuições. Outro precedente seria passar admitir eventuais problemas com fornecedores como justificativa para descumprimento de obrigações de uma empresa outorgada e regulada, algo que a regulamentação expressamente impede para evitar que as operadoras usem a terceirização de culpa como justificativa para suas próprias falhas.
O acórdão da Anatel que negou a mudança de controle fala que haveria "risco à prestação do serviço em virtude da constatação de afronta intencional e direta aos direitos dos usuários do serviço de telecomunicações e sua possível manutenção após a realização da operação societária". Segundo a defesa da Plintron, "não há qualquer caminho lógico que se possa percorrer para atingir a conclusão de que a Plintron BR, assumindo o controle da Surf, deixaria de cumprir as obrigações regulatórias junto aos usuários de serviços de telecomunicações".
A empresa faz a seguinte sustentação: "o racional utilizado pelo Acórdão (que negou a anuência) foge ao senso comum. Qual seria o interesse de uma empresa nova entrante que luta há anos para exercer seu direito a assumir o controle de prestadora de serviços de telecomunicações para que, em momento seguinte à assunção do controle, comprometesse a prestação dos serviços em inafastável prejuízo a si própria?". Para a empresa, "o ordenamento jurídico vigente tem, como preceito geral, a presunção da boa-fé objetiva. A má-fé e o dolo, por sua vez, devem ser comprovados, jamais presumidos", diz.
Conforme a defesa da Plintron, o único elemento levantado pelo relator da anuência, conselheiro Vicente Aquino, e que teria suscitado a decisão do conselho (em oposição ao entendimento da superintendência de competição e da Procuradoria Federal Especializada da agência) é uma outra disputa entre a Surf e a Plintron Mobility, outra empresa do grupo Plintron que prestava serviço de fornecimento de alguns sistemas utilizados na operação. Em meio a uma disputa comercial, o sistema da Plintron Mobility teria sido desligado de maneira deliberada, deixando os serviços da Surf comprometidos por um período. Este único fato, cuja narrativa da Surf é completamente negada pela Plintron, teria levado o conselho a enxergar risco na presença da Plintron BR no controle da empresa, negando a anuência prévia.
A Plintron BR (que é a parte interessada que disputa a anuência prévia da Anatel para assumir o controle da Surf) alega que ela e a Plintron Mobility são personalidades jurídicas diferentes, o que por si só já impede que a agência tome os eventuais atos de uma empresa como responsabilidade da outra. Diz ainda que a disputa entre esta e a Surf foi resolvida favoravelmente à Plintron em arbitragem realizada em Nova York e validada pela Justiça brasileira. E sustenta que tanto não houve risco à operação que a Anatel sequer sancionou a Surf (ou mesmo notificou a Plintron Mobility) quando do episódio da interrupção dos serviços.
"A decisão da Agência de ressuscitar um evento passado, ocorrido há mais de três anos, que não suscitou qualquer intervenção administrativa no momento adequado, como fundamento ao banimento do Grupo Plintron do mercado de telecomunicações nacional é simplesmente injustificável, inaceitável e contrária à lei e regulamento", diz a empresa.
Juízo de inidoneidade
Segundo a Plintron, "foi feito, portanto, um juízo de inidoneidade, mas com efeitos ainda mais perversos, dado que não foi fixado limite temporal claro pelo qual os efeitos da 'sanção' devem perdurar. A Anatel atribuiu a si mesma a discricionariedade para decidir se e quando a empresa está apta a ingressar no mercado de telecomunicações brasileiro", diz a empresa.
A empresa lembra ainda que "até para a pessoa jurídica que tiver recebido a mais grave das sanções previstas no ordenamento jurídico aplicável (a perda de uma outorga), é facultada a participação no setor de telecomunicações, após transcorrido o período de 2 (dois) anos, conforme previsto no artigo 133, II, da LGT e artigo 5º, inciso II do RGO", ressaltando que a Plintron BR nunca foi sancionada pela agência nem é ou foi outorgada de nenhum serviço até o momento.
Para a Plintron BR, a decisão da agência é desproporcional e "transmite uma mensagem de que a Anatel impede a entrada de investidores estrangeiros no setor de telecomunicações brasileiro, incentivando uma prática de desrespeito a contratos celebrados por operadoras brasileiras". Esta situação excepcional e inusitada, diz a Plintron, feriria ainda a Lei de Liberdade Econômica. O documento com a defesa da Plintron e com o pedido de reconsideração é o único documento relevante com acesso público e está disponível aqui. Os demais documentos apresentados pela Surf, assim como a análise que orientou a decisão da Anatel, ainda estão sob sigilo.