A cautelar obtida pela Base Mobile (do grupo Base Telco) junto à Anatel, obrigando as operadoras de telecomunicações Claro e Vivo a negociarem com a empresa o fornecimento de perfis elétricos (a TIM está fora por força de uma liminar obtida na Justiça), pode acabar abrindo um debate muito mais amplo dentro do modelo regulatório brasileiro para o setor de telecomunicações: afinal, qual a necessidade de uma outorga e da regulação da Anatel sobre o setor se a prestação de um serviço de valor adicionado pode ser feita sem a contratação de um serviço de telecom?
Relembrando o caso: em março, a Anatel determinou que as operadoras móveis negociassem com a Base Mobile, uma empresa que venceu alguns processos de licitação estaduais para atender estudantes e professores com acesso à Internet por rede 4G. A negociação deveria se dar na venda do perfil elétrico, que nada mais é do que o código instalado em um chip de celular e que dá acesso daquele chip à rede de uma operadora, com uma numeração específica. O projeto da Base era vender aos Estados uma plataforma de eSIM (chip neutro, ou chip eletrônico, capaz de operar na rede de várias operadoras, e a empresa ainda agregaria a essa plataforma sistemas de controle de acesso ao conteúdo.
É isso, em essência, que as operadoras estão tentando mostrar para a agência. Elas insistem que não existe um produto chamado "perfil elétrico" a ser comercializado, e que isso sequer está no escopo de suas obrigações regulatórias. Esse é um tipo de acordo que só se dá entre empresas outorgadas pela agência reguladora, sejam elas operadoras de serviços móveis (SMP) com redes próprias ou operadoras virtuais (MVNOs). Nos dois casos, as empresas respondem junto à agência pelas responsabilidades assumidas junto ao assinante: qualidade de serviços, atendimento, identificação e rastreabilidade dos usuários, segurança de rede, possibilidade de interceptação telefônica determinada pela Justiça entre outras. "Não existe um modelo em que a gente venda 650 mil perfis elétricos como insumo, sem que haja uma empresa regulada pela Anatel, seja a operadora de SMP ou uma MVNO, que possa dizer onde esses clientes serão ativados, quando, quem são eles, como está a qualidade do serviço etc", diz uma fonte.
Permitir isso, dizem, seria simplesmente ignorar a responsabilização trazida pelos regulamentos da agência, sem falar na parte tributária. "A empresa oferece um serviço de conectividade, que é a essência do serviço de telecomunicações, como se telecom fosse um serviço de valor adicionado", lembra outro interlocutor. É como se, no futuro, o Netflix viesse a "agregar valor" ao seu serviço oferecendo a conexão de 5G como parte do produto, e não o contrário.
No caso das MVNOs, lembra um consultor, existe a celebração de um contrato de compartilhamento de rede, fora o fato de a operadora virtual ser regulada como uma empresa de telecomunicações e recolher os tributos como tal.
Relembrando o caso: em março, a Anatel determinou que as operadoras móveis negociassem com a Base Mobile, uma empresa que venceu alguns processos de licitação estaduais para atender estudantes e professores com acesso à Internet por rede 4G. A negociação deveria se dar na venda do perfil elétrico, que nada mais é do que o código instalado em um chip de celular e que dá acesso daquele chip à rede de uma operadora, com uma numeração específica. O projeto da Base era vender aos Estados uma plataforma de eSIM (chip neutro, ou chip eletrônico, capaz de operar na rede de várias operadoras, e a empresa ainda agregaria a essa plataforma sistemas de controle de acesso ao conteúdo.
Redes sem planejamento
As empresas alegam que, uma vez retiradas da relação com o usuário, não podem sequer planejar a rede. "A demanda é para que a gente venda 650 mil perfis elétricos, mas não sabemos onde eles serão ativados, nem quando. Nas cidades menores, muitas vezes há poucas ERBs, porque a rede foi dimensionada para uma realidade de tráfego. Se o volume de usuários aumentar de uma hora para outra, a rede não vai dar conta".
Outro ponto que tem causado incômodo entre as operadoras é o discurso de que os Estados estão com dificuldade de conectar estudantes e professores porque as teles não estão vendendo o que a Base Telco pede. "Foram realizadas 37 licitações estaduais até agora para uso dos recursos da Lei 14.172/2021, que previu R$ 3,5 bilhões para conectar estudantes. Destas 37 licitações houve apenas sete em que a demanda era por uma solução de chip neutro, e nessas só o grupo Base participou. Nas outras 29 houve uma licitação normal, em que houve disputa entre diferentes prestadores e uma ganhou, e mais de 4,3 milhões de chips foram distribuídos e estão funcionando".
Além disso, as operadoras de telecomunicações lembram que estão hoje no centro de todas as políticas de conectividade em escolas que estão sendo discutidas, seja pelo uso dos recursos do Fundo de Universalização para conectar escola, seja pelo uso dos recursos do 5G para a conexão em escola. Sem mencionar o fato de que das 130 mil escolas públicas conectadas, mais de 90 mil foram conectadas por conta obrigações assumidas pelas operadoras em diferentes políticas, desde 2010.
As operadoras alegam estar negociando com a Base, como determinou a Anatel, mas reconhecem que é improvável que se possa fechar um acordo sem que o princípio fundamental do serviço de telecomunicações seja subvertido, qual seja: só pode prestar o serviço quem foi outorgado pela Anatel. "Pedimos à base para nos dizer se ela tem essa outorga, mas ela reitera que é apenas uma prestadora de Serviço de Valor Adicionado".
As empresas dizem que isso é uma releitura do espírito da política pública aprovada pelo Congresso. Isso porque a Lei 14.172/2021 foi clara em definir o objeto da política: conectividade móvel. "Isso é serviço de telecomunicações, não serviço de valor adicionado", diz uma fonte. Metade do dinheiro destinado a esta política pela Lei (R$ 3,5 bilhões) poderia ser usada na compra de dispositivos e a outra metade no acesso. As secretarias de educação especificaram claramente a demanda por conectividade ao se cadastrarem para receber os recursos. E inclusive houve uma consulta feita ao TCU para saber se seria possível qualquer outra destinação, o que foi negado.
Segundo fontes da agência, a Anatel sabe que a cautelar determinando que as teles negociem o perfil elétrico foi a forma que a agência encontrou de não ser ela o impedimento da política pública, mas a agência reconhece, nos bastidores, que existe uma certa "criatividade" nesse modelo, já que a prestação dos serviços, na prática, não ficará a cargo de um ente regulado. Como a Base quer adquirir o perfil elétrico como insumo, e pode ativar o serviço de operadora A ou B aos estudantes e professores quando bem entender, cria-se a figura do "Operador de Schrödinger", que como o experimento hipotético do gato, pode ser e não ser ao mesmo tempo. Se acontece um problema na rede, como saber em qual rede o usuário estava conectado?
Base como cliente
Em recente manifestação a este noticiário contestando reportagens anteriores, a Base Mobile dá suas explicações e sai em defesa do modelo que está praticando e das licitações realizadas nos Estados. E nas suas respostas, ela trouxe um elemento importante: ela se coloca como a cliente contratante dos serviços de telecomunicações. Ou seja, é como se ela fosse a única cliente, e não os milhares de estudantes e professores que estarão na ponta do serviço, de fato usufruindo da conectividade, o que adiciona mais uma camada de complexidade ao problema regulatório.
Mas além das questões principiológicas que estão sendo apontadas, há questões práticas. Por exemplo, o que fazer se esses chips forem parar, por exemplo, em presídios? Quem será o responsável? E se houver uma demanda por interceptação telefônica? E se houver a necessidade de rastrear o usuário por alguma razão? A Anatel tem ingerência regulatória sobre a Base Telecom para demandar estas informações? E se a Justiça determinar a identificação de um determinado número? Esse pedido precisará ser encaminhado à operadora ou à base mobile? São perguntas que as operadoras ainda estão se fazendo e que devem levar à Anatel.
"A origem do problema está no modelo de licitação adotado nesses sete Estados, que ignorou a estrutura fundamental do modelo de telecomunicações brasileiro. É como fazer a contratação de serviço de transporte de avião e não pedir que o avião esteja registrado e o piloto habilitado, mas exigir que tenha serviço de bordo", analisa uma fonte de uma operadora, questionando também o fato de a Anatel não ter determinado a exigência de um prestador com outorga. "O problema seria facilmente resolvido se a Base fosse uma operadora virtual (MVNO), mas ai a conta do modelo de negócios do chip neutro não fecha, pois ela se torna uma operadora de telecomunicações e sobre serviços de telecom é preciso recolher ICMS e Fistel, entre outros".