Uma breve história dos semicondutores no Brasil

A escassez global de semicondutores parece um fenômeno recorrente e existente desde o início de sua produção industrial. Os motivos são variados, mas logo se encontra o ponto de equilíbrio. É isso o que vem ocorrendo ao longo dos anos.

Roberto Pinto Martins, ex-secretário de telecomunicações e ex-secretário de política de informática

A atual crise tem um ingrediente adicional porque deriva de uma contenda entre dois gigantes, EUA e China e uma pandemia que causou ao mesmo tempo aquecimento da demanda especialmente no segmento de computadores e celulares afetando setores até então pouco associados aos semicondutores, como o automotivo. Esses fatores contribuíram para a desestruturação da cadeia de suprimentos e logística. 

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Sem muito alarde os países asiáticos vêm dominando a produção, o consumo, bem como a cadeia de suprimentos desses componentes há décadas. Contudo, continuam dependentes das ferramentas de projeto (EDA) e de equipamentos para a produção de chips, principalmente utilizados nas foundries, entre outras tecnologias.

Desde sua criação, a indústria de semicondutores passou por importantes transformações, tanto tecnológica quanto estrutural.  Do ponto de vista tecnológico, o silício continua com domínio absoluto. O que tem evoluído de forma espetacular é o processo de integração. Para citar um exemplo, em 1971 a Intel lançou o icônico microprocessador 4004 com 2.030 transistores. Hoje são compactados bilhões de transistores em um único chip – o microprocessador Apple M1 Pro, lançado recentemente, possui 33,7 bilhões de transistores e processo de fabricação de 5 nanômetros. O tamanho dos transistores continua encolhendo no ritmo previsto pela Lei de Moore.

Do ponto de vista estrutural a indústria de semicondutores também é bastante distinta de sua origem. Hoje existe uma sofisticada cadeia de fornecedores com distintos modelos de negócio que podem ser classificadas em seis grandes grupos: IDM, OSAT, Foundry, Design, Produtores de Wafer e Supplies.

  • IDM: Integrated device manufacturers. É o modelo tradicional, uma espécie de faz de tudo: projeta, fábrica e comercializa. Contudo, hoje já terceirizam parte de sua produção para Foundries e OSATs.
  • OSAT: Outsourced Semiconductor Assembly and Test. Recebem os componentes difundidos nos Wafers e realizam o encapsulamento, montagem e teste dos circuitos integrados.
  • Foundry.  São especializadas na produção dos circuitos integrados propriamente ditos. Para isso são realizadas várias etapas no substrato de Wafer, como deposição, oxidação, (foto)litografia, etching, difusão, implantação iônica etc. É a parte mais intensiva em investimento e pouca geração de emprego.
  • DH: Fabless Design (Design House). São especializadas em projetos de circuitos integrados; quando detém a propriedade intelectual dos componentes que projetam são conhecidas como Fabless Design. Terceirizam a produção para as Foundries e OSATs.
  • Produtores de Wafer. São especializadas na produção dos Wafers, que são substratos constituídos de material semicondutor, de altíssima pureza onde os circuitos integrados são construídos. 
  • Supplies. São as empresas que fornecem materiais, equipamentos, software e serviços para a cadeia de manufatura de semicondutores.

Utilizados nos mais diversos produtos, o número de circuitos integrados comercializados mundialmente ganhou números astronômicos; são mais de um trilhão de componentes por ano, movimentando um mercado de meio trilhão de dólares, com perspectivas de dobrar nos próximos 10 anos.

Segundo a publicação Visual Capitalist, de 2 de setembro de 2021, estão anunciados investimentos de U$140 bilhões em 29 fábricas de semicondutores nos próximos 2 anos (USA-6, UE-3, China-8, Taiwan-8, Coréia do Sul-2 e Japão-2).

Os formuladores de políticas públicas no País deveriam estar atentos a esses movimentos e às estratégias de desenvolvimento industrial. Em junho, o Senado dos EUA aprovou um projeto de lei de tecnologia e manufatura de U$250 bilhões, com U$52 bilhões destinados especificamente ao campo dos semicondutores.

No Brasil o tema tem sido tratado ao longo de mais de quatro décadas, sendo explicitamente referido na Lei nº 7.232/1984 e Lei nº 7.463/1986, que aprovou o 1º Plano Nacional de Informática e Automação (PLANIN). No 2º PLANIN, aprovado por meio da Lei nº 8.244/1991, a microeletrônica também foi destacada e uma das metas era "Consolidar, até 1993, a produção de componentes microeletrônicos podendo envolver projeto, confecção de máscaras, processamento físico-químico, montagem, teste, certificação de conformidade e comercialização." Este foi o último PLANIN, embora a previsão de sua elaboração ainda conste na Lei nº 7.232/1984.

Incentivos fiscais foram concedidos e estudos elaborados com o objetivo de atrair investimentos nesse setor. Um dos estudos mais completos ocorreu em 2002; nesse ano um estudo internacional foi contratado pelo BNDES visando a implantação de uma indústria de circuitos integrados no País. O principal foco do trabalho era a fabricação desses componentes, embora tenha sido examinado em detalhe toda a cadeia de valor e os vários modelos de negócios que ela possibilitava. Tal análise incluía a etapa de projeto, como alvo imprescindível na construção de um ecossistema microeletrônico.

Apesar de todos os esforços empreendidos ao longo de décadas, os resultados obtidos não são animadores. Desapareceram do mercado empresas como a Transit (1981), Philco (1984) e SID (1997); o mais recente deles é o caso da Unitec Semicondutores. Com investimentos de cerca de um bilhão de reais (BNDES e BDMG, dentre outros privados) e cerca de 150 funcionários a empresa encerrou suas atividades em 2019.

Estimuladas pelo PADIS, e pelo Processo Produtivo Básico, delineados pelas Leis de Informática aplicada em âmbito nacional (Lei nº 8.248/1991) e na Zona Franca de Manaus (Lei nº 8.387/1991) temos cinco grupos de OSATs encapsulando principalmente memórias para microcomputadores e telefones celulares (DRAM, NAND Flash, eMMC, eMCP, dentre outras). Contudo, são destinadas basicamente ao mercado interno, com a finalidade de atender ao processo produtivo básico exigido pela legislação de informática. 

Com o Programa Nacional de Microeletrônica – Design, criado em 2002, e o Programa CI-Brasil, criado em 2005, chegamos a ter 20 empresas e centros de projetos em ICTs. Entretanto, esse sucesso inicial não se consolidou. Atualmente permanecem em atividade apenas 7 empresas e 2 ICTs; o Programa CI-Brasil, a partir de 2008, implantou 3 centros de treinamento onde mais de 1.000 projetistas foram treinados até 2019, quando esgotaram-se os recursos. Onde estão esses projetistas? Embora não existam dados oficiais, provavelmente mais da metade desses recursos humanos estão   atuando no exterior; os demais atuam localmente em empresas, ICTs e Universidades. 

Em 2008, por meio da Lei nº 11.759/2008, o Congresso Nacional autorizou a criação da empresa pública Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. – CEITEC com o objetivo de atuar em projeto e produção de semicondutores (encapsulamento, testes e difusão) e de forma subsidiária na formação de recursos humanos. Desde sua criação a instituição é dependente de recursos públicos e se encontrava em processo de liquidação até a semana passada. Na semana passada, por meio do Decreto nº 11.409/2023 o governo estabeleceu Grupo de Trabalho Interministerial com a finalidade de apresentar, em 120 dias, estudos e propostas de viabilidade de reversão de desestatização e liquidação da empresa.

Além das dificuldades inerentes de operar um setor dinâmico como o de microeletrônica, o CEITEC está sujeito a uma série de restrições no modus operandi por se tratar de uma empresa pública. Ali já foram investidos cerca de um bilhão de reais e apesar de não ter entrado ainda em operação industrial, os equipamentos para executar processamento físico-químico chegaram ao Brasil já utilizados pela fábrica da Motorola nos EUA e estão no País há mais de duas décadas, já defasados tecnologicamente.

Esperançamos que o Grupo Interministerial tenha sabedoria para indicar o caminho que melhor represente a aspiração brasileira nesse setor, sabendo que abandonar muitas vezes não é fácil, mas como demonstra o ocorrido até os dias atuais, construir é difícil.

Vivemos hoje uma crise mundial na oferta de circuitos integrados afetando praticamente todos os setores produtivos. Nesses momentos, aqueles países que estavam adormecidos sempre acordam porque veem suas indústrias mais penalizadas. Mas o caminho é longo e requer articulação e entendimentos com várias áreas de governo e a iniciativa privada.

O que o País tem hoje a oferecer não é suficiente para atrair fabricantes internacionais em quase toda a cadeia de valor desse segmento. Competir com países que oferecem subsídios volumosos, estabilidade de regras, boa infraestrutura, poucos trâmites burocráticos, facilidade de formação e atração de recursos humanos etc. não é tarefa fácil, como tem demonstrado o que ocorreu ao longo dessas quatro décadas.

O pouco que temos construído vem sendo abandonado ao longo do caminho; nessas últimas quatro décadas, em um ciclo de espiral negativa, como bem demonstram os recentes casos dos Programas Nacional de Microeletrônica e CI-Brasil. O PADIS, prorrogado até 2026, tem pouco alcance comparado às ambições que merecem um projeto nacional nesse setor. Nenhum desses programas pode ser comparado aos benefícios auferidos pela indústria de semicondutores alhures.

Esta instabilidade não prejudica apenas o setor de microeletrônica. Toda a cadeia de bens eletroeletrônicos acaba sendo afetada, seja desestimulando o desenvolvimento de projetos de hardware, sua produção ou agregação local de valor. O consumidor, ao fim e ao cabo, é que acaba pagando a conta.

Apesar dos seus quase 20 anos, o estudo do BNDES ainda preserva sua essência. Focar nos projetos de circuitos integrados e buscar oportunidades de instalação de OSATs, diversificando a oferta de chips parece ser o caminho de maior chance de sucesso considerando o estágio atual em que nos encontramos. Futuramente novas oportunidades virão.

Ter uma indústria de projetos de circuitos integrados é fundamental para dinamizar e dar competitividades a uma infinidade de cadeias produtivas das quais o país depende para se desenvolver.

Desde o ano passado o governo ensaia a apresentação de uma nova política para incentivar a indústria de semicondutores no País. Este assunto está na pauta há 40 anos.

Entender a dinâmica desse setor, fixando regras estáveis e duradoras para a atração de investimentos privados é o início de uma trajetória de sucesso.

Tentar incentivar o setor de microeletrônica por mecanismos tarifários ou por políticas que penalizam a produção local de bens finais ou intermediários, deve ser evitado, sob pena de prejudicar toda a cadeia de produção local.

Toda essa avalanche de benefícios e investimentos em microeletrônica que se encontram em andamento no mundo requer uma avaliação minuciosa; se não podemos concorrer com os vultuosos subsídios oferecidos, podemos nos beneficiar indiretamente desses investimentos, traçando políticas para atrair novos investimentos em projetos e produção de bens finais e intermediários.

É inegável que o País alcançou uma sólida posição na atração de investimentos no complexo eletrônico. A lacuna é que esta atração redundou basicamente no atendimento ao mercado interno. Por diversos fatores o País tem perdido sistematicamente oportunidades de atração de investimentos quando o destino dos produtos é o mercado externo. Países que entraram tardiamente nesse segmento tem hoje posição bem mais relevante quando se trata de atendimento ao mercado internacional.

O foco no mercado interno, decorrente de um custo industrial elevado, tem tornado o País refratário a toda e qualquer iniciativa de acordos comerciais como o ITA (Information Technology Agreement), promovido pela Organização Mundial do Comércio, em vigor desde 1997 e ampliado em 2015. 

Por outro lado, é recorrente a preocupação com o nível das importações de componentes semicondutores no País que há 20 anos era no entorno de U$1,2 bilhão e hoje supera os U$5 bilhões. Contudo, países que importavam bem menos há 20 anos, como Vietnam (U$ 200 milhões), hoje importam mais de U$48 bilhões. A diferença está no volume de exportação do complexo eletrônico. Enquanto em 20 anos o Brasil saiu de uma exortação de 270 milhões de dólares para 400 milhões, o Vietnam saiu de 59 milhões para 93 bilhões, de acordo com ITC em Trade Statistics for International Business Development.

*- Sobre o Autor: Roberto Pinto Martins foi Secretário de Política de Informática – MCTI e Secretário de Telecomunicações e Secretário de Radiodifusão – MCom (As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente representam o ponto de vista da TELETIME

4 COMENTÁRIOS

  1. Excelente informação, Roberto. Em relação às empresas instaladas no país, a rigor são fabricantes de semicondutores "fabless" que tem sua própria operação de backend. As OSATs são prestadoras de serviços para IDMs e fabless. As empresas instaladas no Brasil não prestam serviços para terceiros. Ou seja, uma opção seria incentivar essas empresas para que se tornem OSATs,por que já estão muito perto.

  2. Comentar um artigo de Roberto Pinto Martins é uma ousadia. Permita-me, no entanto, contribuir com a visão externa, vista do ângulo de multinacionais do setor a quem servi por décadas, e com a isenção de quem não mais trabalha no setor.
    A indústria de semicondutores é de larga escala, não existe um projeto que se baseie em demanda doméstica de um só país. É, por natureza, uma indústria global, de exportação.
    As políticas de fomento local, legado em sua maioria do trabalho incansável do Secretário, que certamente alçou o país a altos níveis na indústria de tecnologia, não são suficientes para anular os problemas crônicos do Brasil observados por qualquer estrangeiro. Insegurança jurídica e fiscal gritantes, infraestrutura, regime laboral são os exemplos clássicos, desnecessário relembrar.
    Empresas se apresentam com a requerida simpatia e boa-vizinhança, mas JAMAIS considerarão o Brasil para algum projeto real, de escala.
    O caso emblemático dos anos 90 ilustra a realidade que perdura até hoje: uma comitiva de executivos de uma líder global do setor chegava ao Brasil para reuniões com o MCT, encarregados de decidir entre Brasil e Costa Rica para um investimento real de alguns bilhões de dólares. Na chegada, ficaram retidos por horas em Guarulhos, devido a uma greve na Receita Federal, e aí souberam que a alfândega estava parada há semanas, impactando toda a indústria. O Brasil ajudou a tomada de decisão que aconteceu ali no saguão do aeroporto.
    Enquanto o país não decida se tornar um player global, com regras claras e perenes, e rigor com os fatores que alavancam a competitividade industrial, não haverá política de fomento que resolva.

    • Se formos esperar a boa vontade de empresas ou paises de fora para o nosso avanço na area estamos fudidos. Pessoal precisa investir nas pessoas que irao realizar pesquisas e estudos na area para a criaçao de fabricas de semi condutores aqui. Nao e necessario criarmos de cara um i9 ou um ryzen da vida, talvez desenvolver chips simples e modestos ja seria muito bom.

  3. Falta fazer uso da mão de obra capacitada em projetar e em fazer existir os dispositivos no Brasil.

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