Introdução
Nas primeiras três partes dessa série de artigos sobre os desafios da regulação do ecossistema digital, percorremos desde as razões pelas quais chegamos ao ponto de necessidade em que nos encontramos hoje até alternativas sobre como encaminhar soluções para uma situação da qual já sentimos os efeitos.
Há muitas perguntas e poucas respostas sobre as questões atuais. Na busca por caminhos seguros a serem percorridos, trilhas exploratórias vêm sendo abertas nessa floresta digital. Acreditamos que essas trilhas podem até não representar o caminho mais curto entre um ponto e outro, mas de alguma maneira elas nos ajudarão a desvendar um pouco mais desse labirinto, e assim entendermos melhor as questões e planejarmos melhor o percurso.
Na quarta parte dessa série de artigos iremos expor algumas dessas trilhas. Passando pelo cenário internacional chegaremos ao Brasil, mais precisamente à Anatel, e abordaremos como estamos atuando para dar a nossa contribuição no preenchimento das inúmeras lacunas desse quebra-cabeças digital.
A série de artigos, conforme já vimos, está assim organizada:
– Parte 1: Do Posicionamento da Anatel Face aos Desafios da Transformação Digital;
– Parte 2: De Como a Anatel Pode Contribuir para a Regulação do Ecossistema Digital Brasileiro;
– Parte 3: Das Visões Sobre o Futuro do Regulador das Comunicações; e
– Parte 4 (esta): Dos Compromissos e dos Encaminhamentos Tanto em Relação ao Brasil Quanto à Anatel.
Estas partes vêm sendo divulgadas semanalmente, na intenção de dar espaço para a reflexão, sem açodamento e com a consciência de que este é somente um dos movimentos iniciais de um debate que promete ser travado tempestivamente, de maneira profissional, cuidadosa e permeada sempre por espírito republicano e democrático.
Cenário Internacional
Uma das características principais do ecossistema digital é sua natureza transfronteiriça, que ignora os limites territoriais entre os países. Portanto, é impossível equacionar esse problema somente dentro das nossas próprias fronteiras, idealmente a solução para essa questão passa pela cooperação internacional. Não por acaso, algumas das principais ações nesse sentido vêm sendo atualmente endereçadas em bloco, tais como os Atos da União Europeia. Sendo assim, praticamente todos os outros assuntos do ecossistema digital também estão sendo debatidos em fóruns internacionais. O Brasil atua em vários desses, desde a Comissão Interamericana de Telecomunicações (Citel), passando pelo Cyber Security Forum Initiative (CSFI), o Internet Governance Forum (IGF), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e, principalmente, no maior de todos os palcos de concertação, a União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da Organização das Nações Unidas (ONU).
Junto à UIT, o Brasil, por meio da representação coordenada pela Anatel, tem contribuído fortemente por meio da participação em debates e posicionamentos sobre temas tais como as aplicações over-the-top (OTT), Inteligência Artificial (IA) e mais recentemente, o Metaverso. Não é à toa que os temas da camada digital têm interessado à UIT e a seus Estados-membros. Assim lá como aqui, também sentimos a natural ligação desses assuntos com um universo que inicialmente se ateve às telecomunicações, mas que agora se expande. O que acontece nas redes é de fundamental importância para que os objetivos de uma política pública de comunicações ampla e democrática sejam atingidos a contento. A seguir abordaremos algumas das iniciativas que vão nesse sentido, no Brasil.
Histórico da preparação para a transformação digital
Não é de hoje que a Anatel reconhece a crescente importância do que acontece no mundo digital e seu impacto no setor regulado. Já no ano de 2018, por ocasião da revisão do Regulamento Geral de Interconexão (RGI), entendeu-se adequado garantir, no Regulamento dos Serviços de Telecomunicações, o acesso dos prestadores de Serviços de Valor Adicionado (SVA) às redes de telecomunicações, no mesmo artigo foi incluída ainda a possibilidade de requerimento dos contratos dos entes regulados com os prestadores de SVA, é assim, pois ficou clara a influência dessa relação no equilíbrio da prestação dos serviços de telecomunicações e vice-versa.
Dois anos mais tarde, em 2020, a Anatel fez publicar um estudo sobre novos mercados nas telecomunicações, do qual destacamos o capítulo que trata especificamente sobre o chamado Mercado da Atenção, denotando o quanto o tema passou a ganhar importância para subsidiar a regulação da Agência.
Centro de Altos Estudos para as Telecomunicações (CEATEL)
O Ceatel, representado por seu Conselho Superior, é uma das principais ferramentas à disposição da Anatel para que, de maneira contínua e organizada, consigamos lançar o nosso olhar ao futuro sem descuidar dos afazeres mais urgentes do cotidiano. Ele vem sendo um importante vetor na disseminação de ideias disruptivas dentro da Anatel através da promoção de várias palestras online para o público interno e parceiros convidados, tais como a reguladores dos países de língua portuguesa, por exemplo. Podemos citar, dentre outras, as palestras do jurista Carlos Ari Sundfeld, sobre a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB); do cientista Silvio Meira, sobre a convergência das vertentes física, digital e social, fenômeno conhecido pelo termo "figital"; e do estrategista Thiago de Aragão, sobre geopolítica das telecomunicações.
Além disso, é no âmbito do Ceatel que a Anatel firma acordos e parcerias tais como os Termos de Execução Descentralizada (TEDs) com importantes parceiros da academia para que a Agência seja subsidiada com o estado da arte em termos de matérias disruptivas em comunicações. No momento, a Anatel dispõe de quatro destes TEDs em andamento e mais outros três sendo preparados.
Estão em andamento o TED com a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), uma pesquisa sobre segurança cibernética das redes de telecomunicações, especialmente nos sistemas de comunicações móveis de quinta geração (5G) que vem sendo muito bem aproveitado pelo Grupo Técnico de Segurança Cibernética e Gestão de Riscos de Infraestrutura Crítica da Anatel (GT-Ciber). Também em andamento está o TED com a Universidade Federal de Goiás (UFG), visando a realização de pesquisa sobre o arcabouço tecnológico que se estabelece com a introdução de uma nova geração da web, descentralizada, imersiva, semântica, centrada no usuário e conectada com o mundo ciberfísico, fenômeno conhecido como Web 3.0.
Outros dois TEDs foram firmados com a Universidade de Brasília (UnB), um para o desenvolvimento de Pesquisa sobre Tecnologias Disruptivas, Impactos Econômicos e Adequação do Modelo Regulatório com a Implementação do OpenRAN no Ecossistema de Telecomunicações Brasileiro (OpenRAN Brasil), que representará importante adição à caixa de ferramentas regulatórias com vistas a tornar nossas redes mais resilientes e econômicas. O segundo TED com a UnB é mais recente e mais afeto aos assuntos tratados nessa série de artigos, ele visa à realização de um estudo sobre novos desafios regulatórios do Ecossistema Digital no Brasil. Essa pesquisa incluirá uma série de entrevistas e workshops junto a especialistas nas áreas de interesse do ecossistema digital e também seminários abertos ao público, onde teremos a oportunidade de debater sobre o andamento da pesquisa e os achados e questões levantadas nela. Ao fim, um dos produtos encomendados à UnB é justamente o delineamento de uma ou mais propostas sobre o arranjo institucional a ser adotado no enfrentamento da regulação do ecossistema digital no Brasil.
Para o próximo ano, o Conselho Superior do Ceatel está deliberando sobre novas áreas a serem estudadas, sendo certo que ao menos o tema da Sustentabilidade Ambiental fará parte desse rol.
Também no âmbito do Ceatel, serão estabelecidos Grupos Técnicos para aprofundar o conhecimento do corpo de servidores da Agência no que toca a assuntos tais como Inteligência Artificial, Metaverso, Blockchain, etc. Esses assuntos não fazem parte da competência regulatória da Anatel, mas aparecem como capazes de provocar disrupção nos modos de uso das comunicações e impactar de maneira significativa, portanto, a consecução dos objetivos estratégicos da Agência.
Plano estratégico da Anatel para o quinquênio 2023-2027
A abordagem de todos esses novos temas não é à toa, no processo de definição do nosso novo Plano Estratégico, realizado em consultoria junto à UIT, foi diagnosticado que a Anatel precisa se debruçar sobre os temas do ecossistema digital, sob pena de não conseguir atender a contento a sua missão.
Dentre tantos eixos, objetivos, iniciativas e etc. que remetem ao ecossistema digital gostaríamos de destacar aqui a iniciativa número 18, "promover a alfabetização digital dos usuários". Entendemos que o conjunto de condições que ficou conhecido pelo termo em inglês "meaningful connectivity" sumariza adequadamente a conjunção entre os interesses da sociedade e o papel do Estado em proporcionar o que por vezes a coletividade não consegue exprimir tão claramente. A massificação da conectividade é condição necessária, mas não suficiente, para alcancemos o máximo benefício coletivo. Tornar a conectividade não apenas uma questão de estatística, mas algo inclusivo, acessível para extratos mais vulneráveis da nossa população, capaz de transformar vidas, é parte do propósito da Anatel a partir de agora.
Combate às atividades ilícitas na camada digital
É amplamente percebido que a digitalização dos bens e serviços trouxe inúmeras vantagens e benefícios econômicos e sociais, contudo, naturalmente proporcionou o surgimento de novas ameaças e malefícios também. Dentre essas, a facilidade em piratear e distribuir bens e serviços ilegalmente é um dos efeitos nocivos mais graves para o setor. Nesse sentido, a Agência tem se adequado à nova realidade e se esforçado em desenvolver cada vez mais mecanismos que combatam esse tipo de crime o mais eficazmente possível. A Anatel é membro do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP) e em parceria com a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e com as autoridades policiais e judiciais vem atuando cada vez mais fortemente para combater o ilícito. Apreensões de set top boxes piratas já são rotina, agora a Anatel pretende ir além e instituir outras medidas ainda mais eficientes, dentre essas destaca-se o bloqueio administrativo de sites ilegais de streaming.
Capacitação
Todo esse processo de transformação digital requer ações de desenvolvimento que permitam aos servidores da Anatel compreender de maneira profunda esse ecossistema para que através da nossa atuação impactemos positivamente o país. Com vistas a essa necessidade, consta do Plano de Desenvolvimento de Pessoas (PDP) da Agência para o ano de 2023, ações que visam desenvolver e reciclar conhecimento do nosso corpo técnico.
O PDP 2023 está dividido em sete dimensões de habilidades e competências. Já em alinhamento com as perspectivas da Agência, uma dessas vertentes é dedicada especificamente a "Mídias Sociais e OTTs: governança de internet; cibersegurança e proteção de dados". Dentre os conhecimentos a serem fortalecidos incluem-se estratégias digitais, adaptação de estrutura e processos organizacionais, execução do processo de transformação digital, novas tecnologias e inovação. Dessa maneira pretendemos continuar preparando o nosso maior e mais permanente ativo, o qualificadíssimo corpo de servidores da Anatel, para estar pronto para enfrentar os desafios do futuro.
Ao longo dos últimos 25 anos os servidores da Anatel deram conta de lidar com toda sorte de circunstâncias e tendências disruptivas que aconteceram no ambiente de telecomunicações, estas não foram nem poucas e nem simples. Estamos seguros de que com a adequada preparação, o corpo funcional da Agência será mais uma vez capaz de superar qualquer desafio que nos seja apresentado.
Conclusão
Com esta última parte concluímos nossas considerações iniciais sobre o debate acerca da regulação do ecossistema digital. Temos plena consciência de que esse debate precisa de muito mais atores e muito mais visões. Só assim conseguiremos nos aproximar da melhor resposta possível para esse problema.
Cabe a cada um de nós opinar, expor, debater. Recepcionaremos com entusiasmo todas as críticas, comentários e considerações sobre o que expusemos nesses artigos, e, da mesma maneira, ofereceremos as nossas considerações a outras opiniões que emergirem desse debate. Acreditamos ser a partir de um processo amplo, aberto e cooperativo que conseguiremos, juntos, melhor entender os problemas que atingem a todos nós, enquanto nação, e melhor endereçar as soluções que precisam beneficiar a todos nós, enquanto comunidade.
* – Sobre os autores: Carlos Baigorri é presidente do conselho diretor da Anatel e Mozart Tenório é assessor da presidência da agência.