Introdução
Conforme pudemos observar a partir dos diagnósticos realizados nas partes 1 e 2 desta série de artigos, o desafio de bem regular o ecossistema digital é complexo. Cabe notar não somente a carga da tarefa, mas sua natureza. Um desafio que percorre as várias facetas da regulação, desde tanto em sua dimensão social quanto econômica, até a característica disruptiva de algo novo e potente o suficiente para redefinir os modos de vida.
Para dar conta de tal desafio, os Estados nacionais precisam cuidar do aprimoramento e renovação também das suas próprias estruturas.
Essa é a principal exploração à qual se propuseram os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e mais Brasil e Singapura, no anteriormente mencionado relatório intitulado "Communication Regulators of the Future". E é também, principalmente com base nos achados desse relatório, e oferecendo uma visão a partir do ponto de vista do Brasil, o debate que propomos aqui, na terceira parte desta série de artigos.
Os artigos estão organizados, conforme já vimos, nas partes que se segue:
– Parte 1 de 4: Do Posicionamento da Anatel Face aos Desafios da Transformação Digital;
– Parte 2 de 4: De Como a Anatel Pode Contribuir para a Regulação do Ecossistema Digital Brasileiro;
– Parte 3 de 4 (esta): Das Visões Sobre o Futuro do Regulador das Comunicações; e finalmente
– Parte 4 de 4: Dos Compromissos e dos Encaminhamentos Tanto em Relação ao Brasil Quanto à Anatel.
Essas partes vêm sendo divulgadas semanalmente, na intenção de dar espaço para a reflexão, sem açodamento e com a consciência de que este é somente um dos movimentos iniciais de um debate que promete ser travado tempestivamente, de maneira profissional, cuidadosa e permeada sempre por espírito republicano e democrático.
Tendências moderadoras e focos estratégicos
Depois de várias rodadas de discussão sobre o relatório mencionado, a OCDE chegou a uma lista de cinco tendências definidoras que forçam a modelagem do novo panorama das comunicações, são elas:
- Transformação Digital
- Convergência
- Privacidade e Proteção Online
- Cibersegurança
- Sustentabilidade Ambiental
Entendeu-se que essas cinco macrotendências persistentes alimentam quatro áreas-objetivo a partir das quais deve se dar a regulação das comunicações no futuro.
Essas quatro áreas representam os principais focos dos desafios do futuro, o que chamaremos aqui de focos estratégicos do regulador convergente moderno do ecossistema digital. São elas:
- Mercados
- Usuários
- Sustentabilidade Ambiental
- Segurança e Resiliência
A extrato a seguir ilustra bem a organização desse pensamento.
É fato que concordamos em linhas gerais com a conclusão a que chegou a OCDE, mas a seguir, para melhor abordar esses fatores, passaremos a cotejá-los em face do nosso próprio panorama nacional.
Um novo olhar sobre os focos estratégicos
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) se organizou, no seu primeiro ciclo de vida, em torno, conforme abordamos na primeira parte desta série de artigos, do cumprimento da missão legal exarada na forma da Lei Geral de Telecomunicações (LGT). Portanto, sua primeira organização hierárquica se deu por meio de superintendências focadas em serviços, principalmente os 3 grandes, quais sejam: a Superintendência de Serviços Públicos (SPB), focada na prestação do serviço telefônico fixo; a Superintendência de Serviços Privados (SPV), principalmente voltada para o serviço móvel; e a Superintendência de Serviços de Comunicação de Massa (SCM), cuja principal área de responsabilidade era a do serviço de TV por Assinatura em suas várias tecnologias de distribuição. Para além destas, os objetivos estratégicos da época também foram priorizados por meio da Superintendência de Universalização (SUN) e a de Radiofrequência e Fiscalização (SRF).
Já no começo dos anos 2000 ficou claro que essa organização já não atendia perfeitamente aos objetivos da Agência e uma proposta orientada a processos, em linha com a tendência internacional, mais notadamente com o Ofcom britânico, começou a ser proposta. Essa tendência se materializou e é a partir dessa estruturação por processos estratégicos (Regulamentação, Competição, Fiscalização, etc.) que até hoje a Anatel entrega os seus resultados.
O que nos parece que a OCDE propõe para o futuro da regulação das comunicações e do ecossistema digital é uma nova visão, uma terceira onda; não mais orientada a serviços e nem a processos, mas sim, a focos estratégicos, áreas de preocupação, objetivos, resultados que mais interessam do ponto de vista da sociedade.
Há um racional por trás da definição de cada uma dessas áreas e, de fato, elas encontram eco também no Brasil, também nas atividades das Agências e órgãos focados no setor das comunicações.
Quando pensamos nesses quatro focos estratégicos de um novo regulador convergente do ecossistema digital, podemos percebê-los já sendo geridos em algumas áreas das agências brasileiras.
- Mercados
A OCDE atribui cinco objetivos principais para essa área-foco. São eles: promoção da competição em todos os mercados de comunicações; fomento ao investimento na construção de redes de banda larga de alta qualidade; redução de barreiras à construção de redes; fomento à inovação para melhorar a conectividade em banda larga e gestão eficiente do espectro.
Esses objetivos se correlacionam com uma regulação econômica e técnica, e podem ser percebidos em algumas áreas da Anatel e da Agência Nacional do Cinema (Ancine), por exemplo. Nos parece que olhando para o futuro, essa área-foco albergaria os assuntos relativos ao Digital Markets Act (DMA), mas também as questões de mercado relativas a outros serviços tais como o streaming de áudio e de vídeo, entre outros serviços não elencados no DMA. Nota-se que essas ações precisam ser conduzidas de maneira coordenada e abrangente, para que possam atingir o melhor benefício possível.
- Usuários
O nome dado a essa área-foco pode levar a uma interpretação equivocada devido ao histórico de uso da mesma expressão pela Anatel. No passado, usamos a expressão Usuário quase como sinônimo de consumidor. O que se propõe é que aqui essa expressão se livre do significado do passado e seja entendida de maneira mais ampla. No relatório, a OCDE menciona "o estabelecimento e a proteção dos direitos do povo e das empresas". Esse foco estratégico endereça preocupações que, conforme abordamos antes, estão ligadas à regulação social, logo afetas ao Digital Services Act (DSA) europeu, mas sem esquecer naturalmente das preocupações consumeristas, que não perderiam importância. Os dois principais objetivos dessa área-foco, conforme o relatório da OCDE, seriam a promoção de acesso igualitário à banda larga de alta qualidade e o fortalecimento do direito do consumidor entendido como o usuário de serviços de conexão em banda larga. Esses objetivos, portanto, podem ser observados hoje, no Brasil, tanto na Anatel quanto na Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), mas também na Ancine quando entendemos a regulação da proeminência das obras brasileiras como parte desse universo, por exemplo.
- Sustentabilidade ambiental
Essa nos parece ser a área-foco com maior carga disruptiva e transformadora dos objetivos primordiais da regulação das comunicações no Brasil atual. A OCDE elenca como objetivo principal dessa área-foco o de reduzir o impacto ambiental nocivo das redes de comunicações. A singularidade e o relevo dado a esse foco estratégico devem ser compreendidos como sintomas da relevância do assunto.
A agenda ambiental é urgente e de fundamental importância. O tratamento de diversos aspectos da prestação do serviço de conectividade, tais como a redução do consumo de energia e a maximização do uso de energias limpas e renováveis, o tratamento dos resíduos materiais das redes, entre outras ações, são absolutamente necessárias no nosso setor e precisam ser replicadas e alcançar a máxima extensão possível.
- Segurança e resiliência das redes
Essa área-foco não cessa em ganhar cada vez mais importância dado o caráter vital das redes de telecomunicações para o bom funcionamento da nossa sociedade. A OCDE elenca como objetivo principal desse foco estratégico, o de garantir a segurança das redes de comunicações e as tornar resilientes. As atividades relacionadas a essa iniciativa perpassam não somente o que acontece na camada lógica das redes, mas também a segurança na camada física, contra todo tipo de falha ou de ataque. Esse assunto no Brasil, hoje, está sob liderança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI).
É fundamental debater a importância do novo regulador convergente no que toca à cibersegurança. A OCDE dedica toda uma sessão a esse tema e explora o papel desenvolvido pelo regulador das comunicações de cada um dos seus 38 membros, mais Brasil e Singapura. O diagnóstico é que, em maior ou menor escala, praticamente todos os reguladores estão envolvidos com o tema, que é, por natureza, multissetorial. Em que pese essa característica plural, os reguladores da Finlândia, Islândia, Japão, Coréia do Sul, Polônia, Eslováquia, Turquia e Reino Unido reportaram ter um mandato claro relacionado à Cibersegurança. Chama a atenção mais uma vez o papel do Ofcom, o qual teve, em 2021, sua competência expandida por Lei para que monitore e fiscalize a adequação às regras estabelecidas pelo Telecommunications Security Act britânico.
Do esgotamento do modelo de comando e controle
É impossível não notar que os debates sobre o futuro da regulação das comunicações se afastam de maneira bastante clara do modelo de Comando e Controle, no qual a regulamentação se baseia em publicar comandos e posteriormente montar planos de fiscalização para forçar a máxima adesão aos mesmos, sob pena de pesadas multas ou punições ainda mais graves. Esse modelo não encontra guarida numa visão moderna de regulação, frisemos, regulação e não regulamentação. Regular não pode ser reduzido somente a regulamentar.
Uma regulação moderna orientada a objetivos estratégicos e focada no bem-estar social envolve também uma parceria franca e producente com os agentes que compõem esse mercado. Empoderar o regulador da capacidade de influenciar um mercado para que, em conjunto com a sociedade, sejam adotadas as melhores soluções para os problemas em comum nos parece ser o melhor caminho a seguir. Isso passa pela modernização do próprio agente regulador. Atividades tais como Outorga, Registro, Credenciamento, Fiscalização, etc. precisam sair do cerne do modus operandi do regulador moderno. Os compromissos precisam ser consensualizados a partir de melhores práticas e orientados por dados concretos, e não pré-determinados a partir de ideias não testadas, sem experiência real que as ampare. O poder de polícia precisa ser exercido com profundo critério, senso de responsabilidade e comedimento, para que assim possa alcançar o objetivo de inspirar autoridade real.
Capacitação
A OCDE entende que para estarem preparados para o futuro, os reguladores precisam atuar para frequentemente atualizar e aprimorar as capacidades e o conhecimento dos seus corpos funcionais.
Resta claro que, assim no Brasil como em todo o mundo, não há um grupo de profissionais imediatamente preparado para enfrentar um desafio com características tão modernas. E se houvesse, sem atualização este mesmo grupo ficaria rapidamente despreparado. Portanto, é preciso entender que este desenvolvimento é constante.
Por meio da da figura abaixo, a OCDE demonstra que esse grupo de capacidades, sub-dividido em três vertentes principais, alimenta os mesmos quatro focos estratégicos.
Seja qual for o modelo que o Brasil escolher para lidar com a regulação do ecossistema digital, ele precisará estar amparado numa forte cultura de capacitação, atualização e, eventualmente, contratação de profissionais de posse do perfil necessário para dar conta do desafio.
Conclusão
Na próxima e última parte desta série de artigos apresentaremos os esforços já empreendidos pela Anatel, dentro das limitações legais e competências atualmente outorgadas à Agência, no sentido de estar preparada para somar, tanto quanto possível, aos esforços nacionais no sentido da regulação do ecossistema digital. Entendemos que o caminho rumo a essa modernização nacional já começou.
Fonte principal deste artigo: OECD (2022), "Communication regulators of the future", OECD Digital Economy Papers, No. 333, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/f02209e6-en.
* – Sobre os autores: Carlos Baigorri é presidente do conselho diretor da Anatel e Mozart Tenório é assessor da presidência da agência.