Introdução
O mundo está imerso, cada vez mais, na irrefreável ascensão da revolução tecnológica. É impossível, para o Brasil, não sofrer as consequências deste fenômeno que envolve não somente os Estados nacionais, mas também cada um dos indivíduos.
Neste sentido é que propomos, do ponto de vista que nos cabe, o da Agência Nacional de Telecomunicações, o aprofundamento deste debate na arena pública de maneira franca e transparente.
Portanto, nos valendo do espaço generosamente cedido neste veículo, abordaremos o assunto em quatro partes, conforme segue:
– Parte 1 de 4 (esta): Do Posicionamento da Anatel Face aos Desafios da Transformação Digital;
– Parte 2 de 4: De Como a Anatel Pode Contribuir para a Regulação do Ecossistema Digital Brasileiro;
– Parte 3 de 4: Das Visões Sobre o Futuro do Regulador das Comunicações; e
– Parte 4 de 4: Dos Compromissos e dos Encaminhamentos Tanto em Relação ao Brasil Quanto à Anatel.
Estas partes serão divulgadas semanalmente, com a intenção de dar espaço para a reflexão, sem açodamento e com a consciência de que este é somente um dos movimentos iniciais de um debate que promete ser travado tempestivamente, de maneira profissional, cuidadosa e permeada sempre por espírito republicano e democrático.
Um cenário desafiador
A velocidade do desenvolvimento tecnológico impõe a todas as instituições, públicas ou privadas, um desafio de adaptação e transformação praticamente constantes.
A característica de mudar deixa de ser um evento isolado que ocorre em intervalos que vinham sendo cada vez menores para se tornar uma cultura, um novo jeito de ser das instituições modernas. Essa imposição factual, obriga instituições a se reconhecerem em constante reavaliação, em constante reajuste, ou mesmo, em constante reinvenção.
Tal desafio se revela ainda mais crítico para as instituições públicas. Essas instituições são naturalmente limitadas pelas amarras legais e por complexos e morosos processos de reforma, característica que amaldiçoa o Estado a estar quase sempre correndo atrás do prejuízo, quase sempre remendando uma solução que, para além do desejado endereçamento de problemas nascentes, busca também corrigir os efeitos de problemas passados tardiamente enfrentados ou de problemas contemporâneos que muitas vezes já corroem as bases da estrutura legada.
Tais efeitos, num comparativo global, se manifestam de maneira ainda mais grave no Brasil, um país marcado por um processo legislativo rígido e por um desenvolvimento econômico e institucional ainda de certa maneira em evolução se comparado ao de algumas nações mais avançadas nesta agenda. Particularmente no setor digital, devido a este ritmo cada vez mais forte da evolução tecnológica, o estigma da desatualização se manifesta de maneira ainda mais latente.
Toda essa conjuntura nos força a todos, inescapavelmente também às estruturas de Estado, a necessidade premente de se readaptar.
Regulação
À Anatel, agência reguladora criada em 1997 sob a indelével marca da privatização do sistema de telefonia brasileiro, esse desafio se impõe de maneira ainda mais gravosa.
Quando a Agência foi criada, sua missão primordial era a de ampliar a rede de telecomunicações brasileira para que a sociedade tivesse acesso ao serviço telefônico, fixo e móvel, de maneira mais ampla, com qualidade satisfatória e a preços justos. A estratégia escolhida para alcançar este objetivo, alicerçada na regulação estatal de empresas privadas, se baseou fundamentalmente no binômio "investimento e competição". Se por um lado as empresas estavam vinculadas por contrato ou por regulamento a pesados níveis de investimento tanto na ampliação quanto na qualificação das redes e dos serviços, por outro, se viam forçadas a buscar a máxima eficiência e preços atrativos devido à competição enfrentada dentro do setor.
Com efeito, a Anatel organizou tal prestação em torno de serviços ao consumidor final. Os mais notáveis foram os "3 grandes": serviço de telefonia fixa (incluindo as modalidades de longa distância), serviço de telefonia móvel e serviço de TV por Assinatura. Pois bem, a tecnologia digital, a internet, a transmissão de dados a velocidades e latências cada vez mais impressionantes trataram de desmontar essa lógica de maneira implacável.
Hoje, 25 anos depois, esses três grandes serviços se descolaram do arcabouço legal e são prestados todos, também, através de redes iP (internet protocol), em cima do serviço de provimento de conexão à internet em banda larga, um serviço que a Anatel convencionou chamar de SCM (Serviço de Comunicação Multimídia), por rede cabeada; e de SMP (Serviço Móvel Pessoal), por rede sem fio, a partir da concessão pública de espectro eletromagnético leiloado.
Esse descolamento se deu de maneira natural, assim no Brasil como em todo o mundo. Mas cabe considerar que, em parte, ele também se deve ao fato de que a regulação está confinada ao âmbito dos serviços de telecomunicações na forma da Lei, ou seja, regula-se somente a camada de rede e de transmissão de indistinguíveis bits e bytes que circulam para lá e para cá. Outrossim, como vimos, o acesso aos serviços finais se realiza cada vez mais através de aplicações (apps) que operam em cima (over-the-top – OTT) destas redes de banda larga, sendo classificadas, portanto, como serviços extras associados ao serviço de telecomunicações, no jargão do setor: Serviços de Valor Adicionado (SVAs).
Enfim, a prestação moderna dos antigos serviços de telecomunicações "lato sensu" (chamadas de voz, mensageria e fruição de programas televisivos e obras audiovisuais), se dá de cada vez mais em ambiente desregulado, de maneira desregulada. Isto não é necessariamente ruim, oferece a oportunidade de reconhecermos que a regulação pormenorizada destes serviços já vem se tornando, em larga medida, desnecessária. Do jeito que a coisa está hoje, e visando a almejada competição em condições simétricas, a Anatel fica limitada a somente uma alternativa: desregulamentar os serviços regulados dependentes de rede. De tal maneira que eles se igualem ao mesmo nível de liberdade experimentada pelos serviços OTT, equiparando assim as condições de competitividade entre eles: nivelar o campo de jogo. Mas nivelar o campo de jogo não precisa ser reduzido a somente isto, e nem tampouco, de outro lado, a elevar a carga regulatória do serviço desregulado aos níveis do serviço já regulado. É preciso encontrar a dose ideal do remédio. Para efeitos ilustrativos, se considerarmos a carga regulatória dos serviços regulados como 100 e a dos desregulados como 0, a resposta não deve ser nivelar todos a 100 ou todos a 0, muito menos reunir todos a uma carga 50, por exemplo. O que é preciso é compreender qual é o nível estritamente necessário e ideal para proteger os valores mais importantes para a sociedade: nível 20? 30? Outro? E mais importante ainda, escolher muito criteriosamente quais são as regras que persistirão, que preencherão esse novo nível, que comporão esse novo arcabouço infralegal. Mas este assunto será mais profundamente abordado na parte 2 desta série de artigos.
Voltando ao ponto, ora, será que não há mesmo mais nenhuma necessidade de regulação da atuação dos prestadores de serviços OTT na internet? Não há nada que o poder público possa ou deva fazer para proteger consumidores? Sociedade? Crianças? A saúde da população? A cultura nacional? O combate a abusos de poder econômico por parte de grandes conglomerados não é mais necessário para proteger consumidores e competição? Pois bem, a resposta que o mundo parece oferecer a essas perguntas é: há sim.
No Canadá, na Alemanha, no Reino Unido, Japão e até mesmo na China, várias iniciativas no sentido de regular inteligência artificial, aspectos de segurança cibernética, serviços de mensageria online, privacidade de dados e etc estão sendo propostos e aprovados, mas cabe destacar especialmente o que acontece nos Estados Unidos e no bloco europeu.
Nos EUA, uma iniciativa bipartidária, de democratas e republicanos, pôs em debate no Congresso daquele país o "American Innovation and Choice Online Act" que proíbe práticas anticompetitivas, limita a política de obtenção de dados de terceiros, entre outras restrições às condutas das grandes plataformas digitais.
Do outro lado do Atlântico, o Parlamento Europeu já aprovou duas novas peças legislativas, uma sobre mercados e outra sobre serviços digitais, através das quais pretende limitar o poder das grandes empresas do setor digital, as chamadas Big Techs. O "Digital Markets Act" (DMA), está direcionado aos chamados "controladores de acesso" (gatekeepers) no ambiente digital, é bastante detalhado e entrará em vigor agora em maio de 2023, já o "Digital Services Act" (DSA) que passará a vigorar mais tardiamente, a partir de fevereiro de 2024, tem caráter mais social, e se presta a combater a desinformação nas redes, proteger crianças e adolescentes, dentre outras iniciativas não-mercadológicas. Cabe notar também que no intuito de unificar ao máximo o tratamento destas questões, essa nova legislação europeia (na forma de Atos) difere do modelo mais comum, pois não repete o método de exarar Diretivas que se destinam a serem absorvidas pelos Estados-membros e implementadas pelas respectivas Agências Reguladoras, mas sim, a partir de determinação anterior que classificou o espaço europeu como um "Digital Single Market" (mercado único digital), estes Atos outorgam diretamente à UE a regulação digital de todo o bloco.
No Brasil, o advento recente do Projeto de Lei no 2768 de 2022 de autoria do Deputado Federal João Maia, tem o mérito de endereçar a parte mercadológica (o PL tem inspiração clara no DMA europeu, ou seja, é uma espécie de DMA brasileiro) deste regulação ao debate no Congresso Nacional, ele ainda atribui nominalmente responsabilidades à Anatel para esta regulação, contudo, ainda não encontramos no aparato institucional do Estado brasileiro, lócus legitimado em Lei para lidar com estes assuntos. Contamos ainda com outra iniciativa legislativa de relevo, anterior a esta, o PL 2630 de 2020 de iniciativa do Senador Alessandro Vieira, conhecido como PL das Fake News, que por sua vez, propõe a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, prevendo neste a participação da Anatel e do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) bem como prevê a possibilidade da criação de uma entidade de autorregulação.
O PL dos Mercados Digitais (2768), portanto, diz respeito a uma regulação eminentemente econômica; já o PL das Fake News (2630), encontraria sua contra-parte europeia no DSA, pois se situa no campo da regulação social. Importa ainda citar outras inciativas europeias tais como a Diretiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual, que se presta entre outras coisas a regular o seviço de vídeo sob demanda, algo que ainda falta no Brasil em que pese alguns PLs com esse intuito que atualmente tramitam nas casa legislativas; e o General Data Protection Regulation (GDPR), endereçado no Brasil na forma da LGPD, entre outras. É importante não esquecer destas pois a regulação das comunicações como um todo, para atingir seus objetivos, precisa alcançar abrangentemente o conjunto do setor.
A Anatel, talvez por uma similaridade natural, vem sendo cada vez mais acionada para lidar com questões relativas a este ecossistema, o PL dos Mercados Digitais (2768) é a manifestação mais clara deste endereçamento. Outros exemplos desta situação são os encaminhamentos à Anatel, pelo STF ou pelos demais tribunais, das decisões sobre suspensão de serviços de mensageria online, sobre remoção de conteúdos em plataformas de compartilhamento de vídeos, áudios e etc. Não é surpresa que esse encaminhamento seja feito à Anatel por uma questão de similaridade, ou de proximidade, haja vista que é ela a Agência que regula os prestadores do serviço de internet em banda larga, sem o qual os serviços OTT não conseguiriam operar. Contudo, importa ponderar que a Anatel já experimentou amplamente o primeiro tipo de regulação, a econômica; já o segundo tipo, a social, este seria um desafio novo para a Anatel, sem que isso signifique que a Agência não seria capaz de enfrentá-lo caso o Congresso Nacional em algum momento entenda necessário.
O momento para uma revisão institucional
Por tudo isso, três questões se impõem ao Brasil.
- É preciso atribuir a uma instituição de Estado a regulação do setor digital?
- Se sim, a partir de quando essa regulação estatal passaria a ser necessária.
- Se assim procedermos, em que moldes deve ser concretizada essa institucionalização?
Estas não são de nenhuma maneira as únicas incógnitas neste debate, são apenas três das questões mais urgentes, a partir das quais, várias outras precisam ser amplamente debatidas pela sociedade.
Sobre este assunto, cabe remeter ao relatório publicado pela OCDE no último dia 24 de outubro: "Communication Regulators of The Future". Valendo-se de pesquisas e rodadas de debates realizados no âmbito de seus 38 membros e mais Brasil e Singapura, a OCDE chegou a uma proposta que visa jogar luz sobre essas três questões e propor soluções para o futuro.
Neste relatório, a OCDE afirma, por exemplo, que "a pergunta chave para os gestores de políticas públicas da OCDE não é mais se as estruturas regulatórias precisam mudar, mas sim como (precisam mudar)".
A OCDE, portanto, defende que sim, o Estado precisa se equipar para regular o setor digital que é cada vez mais presente e cada vez mais influente no dia-a-dia dos cidadãos. Defende também que o tempo para empreender com esta regulação não somente já chegou, como já passou. Por fim, propõe diferentes aproximações metodológicas para organizar a maneira pela qual essa regulação deve se dar. É no racional teórico e no esquema de implementação destas metodologias que entraremos mais detalhadamente nas 3 partes que se seguirão a esta primeira. Nelas, abordaremos aspectos do cenário nacional, em complemento aos acontecimentos internacionais. Delinearemos as ações já em andamento por parte da Anatel e abordaremos possibilidades futuras em conjunto com outros órgãos.
A melhor ação de um Estado não é construída em gabinetes pelas mãos de meia-dúzia de burocratas. Ela é construída a muitas mãos, por todos nós, no debate em praça pública. Como parte deste esforço, a Anatel oferecerá à sociedade uma destas praças de discussão na forma de uma ampla pesquisa que está sendo conduzida pela Universidade de Brasília (UnB), esta e outras iniciativas serão melhor abordadas na quarta e última parte desta série de artigos.
* – Sobre os autores: Carlos Baigorri é presidente do conselho diretor da Anatel e Mozart Tenório é assessor da presidência da agência.