O Brasil tem avançado a passos largos em 2023 nos mais diversos campos. Segurança alimentar, política externa, transição energética, indicadores macroeconômicos e várias outras frentes foram abertas para fazer o país avançar sobre os recuos experimentados nos últimos anos. Em um setor, entretanto, permanece um descompasso político-programático. Falo aqui da economia digital. Trata-se do campo da economia no qual empresas se valem essencialmente de dados pessoais, publicidade programada e da atenção do usuário para gerar mercados sustentados por tecnologias digitais, ao mesmo tempo em que modelos de negócio disruptivos levam os usuários a migrar suas vidas social, política e financeira para dentro de um smartphone.
Estamos em uma época de plataformas digitais, processos industriais impulsionados por internet das coisas e big data, um sistema monetário desafiado por blockchain e criptomoedas, música e vídeo se concentrando no mundo do streaming, 5G conectando tudo a altas velocidades e a monetização de dados pessoais como nova febre do mercado financeiro. Em paralelo, a inteligência artificial colocando a democracia em risco.
Esse é um cenário que indica a necessidade de se repensar a ideia hoje usual de transformação digital à luz do conceito mais amplo de economia digital, visto que, no geral, aquela tende a limitar-se à adoção de novas tecnologias no setor produtivo e a digitalização de processos. Estamos falando da indústria 4.0 em seu conceito mais estrito, onde hardware e software são fundamentais, mas acabam se tornando ferramentas apenas para o aumento de produtividade e não um mercado em si mesmo. Um conceito importante, que abriga questões fundamentais como a internet das coisas, big data, impressão 3D, robôs industriais e outros tantos instrumentos que colocam empresas em um novo patamar de desenvolvimento.
Além da transformação
Logo, legítima e fundamental por si, a transformação digital é uma condição necessária, mas, como argumento aqui, não suficiente para fazer do digital a marca distintiva de uma nova economia, cujos contornos já podem ser vistos, com maior ou menor clareza, em diversos países do mundo.
O que nos traz, então, a uma pergunta fundamental: se podemos, e devemos, digitalizar as empresas que ainda são analógicas, o que fazer para impulsionar aquelas que já nasceram digitais?
Para quem gosta de números é mais fácil perceber o porquê de o Brasil precisar avançar no estabelecimento de um ecossistema digital próprio, que alavanque a evolução de nossa economia digital. Em 2022, somente o PIB da publicidade digital (R$ 32,4 bilhões), do comércio eletrônico (R$ 262,7 bilhões), de software, serviços de TI e telecomunicações (653,7 bilhões) e de serviços de nuvem (R$ 32,5 bilhões) totalizou R$ 981,3 bilhões, cerca de 10% do PIB total do Brasil, percentual pouco menor do que as receitas do setor industrial nacional. Em compensação, este montante representa 1,8% do mercado global, calculado pela e-Marketer em USD 10,7 trilhões.
Indo além das estatísticas, trata-se de um ambiente baseado tanto em tecnologias disruptivas como apoiado em dois setores essenciais: a cadeia de semicondutores e a de software. Ambas estendem sua aplicação das redes de telecomunicações aos dados pessoais e seu uso pelas plataformas digitais, para ficar nos exemplos mais abrangentes. Parece claro para boa parte dos países que estão direcionando suas estruturas e recursos para isso que a agenda digital precisa ser tratada de uma forma sistêmica e integrada. E que ela é a ponta de lança, ao lado da economia verde, dos processos de industrialização em curso.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) do Brasil, órgão estratégico da nova política industrial reativado em abril deste ano, captou este movimento. Em sua Missão sobre Transformação Digital, incluiu cinco objetivos específicos que, se forem perseguidos com esmero, podem abrir as portas da economia digital para o Brasil. Por mais que a missão se intitule Transformação digital da indústria para ampliar a produtividade, os objetivos alcançam a economia digital com a criação de plataformas, redução da dependência de semicondutores importados e desenvolvimento de tecnologias nacionais para serem incorporadas nos processos de transformação digital.
Um plano de 10 anos
Em dezembro de 2023, o plano Nova Indústria Brasil, derivado dos trabalhos do CNDI, será entregue ao Presidente Lula. Terá uma duração de 10 anos e várias ações derivarão daí. Ao que parece, para o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, e demais atores principais envolvidos na construção da nova política voltada à neoindustrialização, o Brasil deve ter como objetivo transcender a atual dependência de empresas estrangeiras que dominam a economia digital — empresas essas que, apesar de sua contribuição em termos de emprego e tributação ao longo das últimas duas décadas, também apresentam externalidades desfavoráveis. A política de neoindustrialização busca, portanto, fortalecer a capacidade nacional em termos de inovação e produção industrial, garantindo assim um desenvolvimento econômico sustentável e autônomo.
É imperioso, contudo, que investimentos significativos sejam dispendidos também para criar um ecossistema digital nacional, como fizeram Rússia, China e Coreia do Sul. Os três países possuem suas grandes plataformas, que entram em áreas como redes sociais, comércio eletrônico, ferramentas de busca, nuvem, serviços de mensageria e pagamento móvel. Cito aqui VK, Yandex, Baidu, Alibaba, Cupang e Kakao para ficar nas mais notórias.
São bilhões de usuários que não estão presos às cinco empresas-plataforma que os internautas brasileiros aprenderam a amar, como se além delas nada mais fosse possível. Todas importantíssimas para nossa economia atualmente, mas insuficientes para estabelecer um ecossistema digital com a cara do Brasil e que retenha recursos e pessoas qualificadas por aqui. Complexo de vira-latas à parte, também temos nossas plataformas locais nos setores de comércio eletrônico (Magalu e Submarino), financeiro (Nubank), conteúdo audiovisual (Globo Play) e entregas (iFood), mas ainda falta muito a ser feito.
De um lado, os empresários nacionais devem entender que estes mercados não estão saturados ou não podem ser disputados. Entra em jogo a disposição para investir com visão estratégica entendendo os riscos e a possibilidade de criação de mercados cujas barreiras de entrada podem ser superadas. Não se trata de recriar as políticas protecionistas dos anos 1980, mas de acreditar que é possível estabelecer competição de fato neste setor, como já é feito no comércio eletrônico por exemplo. Por que não podemos desenvolver o mesmo em áreas como plataformas de redes sociais ou serviços de nuvem? A resposta varia conforme o interlocutor.
Apoio do governo e academia
Para fazer isso com um grau de risco mais baixo, o setor privado precisa de reforço. Do apoio de dois outros entes que nem sempre andam em conjunto quando o assunto é inovação. Governo e academia precisam estar presentes neste desafio fazendo o que fazem melhor. O Estado induzindo o desenvolvimento tecnológico por meio de medidas regulatórias e fiscais, fomentando os mercados com recursos volumosos, criando infraestrutura pública e formando capital humano, como foi a história de todas as grandes economias que hoje colhem louros com o crescimento de seu papel como Nação inovadora e símbolo de desenvolvimento tecnológico.
Na outra seara, as universidades e institutos de pesquisa precisam expandir os horizontes que muitas vezes se impõem para integrar seus alunos e pesquisadores intensamente no processo de inovação tradicionalmente concebido como um interesse privado das empresas. O "P" e o "D" precisam dar suporte e alavancar o "I" sem receio de perder espaço político e orçamentário. A batalha vai exigir que as placas tectônicas das leis de incentivo sejam reacomodadas, como feito nos anos 1990. Outro risco que vale a pena correr.
Unindo as pontas, novamente cabe ao Governo liderar esta missão. A começar, como escrevi em outra ocasião, ele precisa cuidar da coordenação e da governança de uma estratégia que integre os mais de 20 órgãos do executivo federal que atuam de forma separada nesta agenda digital. Sem falar de compras públicas, o que daria um outro artigo.
Esperemos que este ambiente de articulação seja dirigido pelo CNDI por tudo que já fez em poucos meses e pelo que pode fazer nos próximos anos. As Comissões de Transformação Digital e de Democracia, Direitos e Tecnologia do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável – o "Conselhão" – também devem ter protagonismo neste esforço de cooperação uma vez que acolhe vozes diferentes da área de desenvolvimento industrial, incorporando comércio e serviços.
Mudança estrutural
Não obstante, voltando ao ponto inicial deste artigo, o que vier a ser feito passará necessariamente pela ideia que aqui tentou se alinhavar, a de uma mudança estrutural que, no tempo, nos transforme em uma economia verdadeiramente digital. Ideia que coloca no mesmo patamar de prioridades os setores ainda em transição do analógico para o digital com aqueles que já nasceram, ou estão nascendo digitais. Esses com a vantagem de já trazer no pensar e no agir uma capacidade inata de lidar com a força e a velocidade com que as mudanças políticas, econômicas e culturais acontecem no mundo de hoje.
Em tempos de inteligência artificial generativa, computação em nuvem e publicidade digital em níveis globais, precisamos fazer com que uma Nação inteira se movimente para abrir caminho para uma trajetória ainda não trilhada e que promete ganhos a todos. E entender que isso vai muito além da adoção de novas tecnologias por parte de nossa indústria já é um primeiro passo rumo à economia digital. Assim como o caminho verde, o azul também é sem volta.
* – Sobre o autor: James Görgen é Especialista em Políticas e Gestão Governamental. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME