Marco Civil: 10 anos sem um regulador para a Internet

Foto: Pixabay

Ao longo das últimas três décadas, em quase todos os debates relacionados aos temas ligados a políticas de comunicações e tecnologia, houve sempre uma constante: a preocupação de regular os mercados. Foi assim com a TV a cabo, com o cinema, com o audiovisual, com a TV por assinatura, com as telecomunicações, com a proteção de dados pessoais. Até mesmo a radiodifusão, historicamente tão pouco regulada, protagonizou no ambiente digital e na radiodifusão pública um mínimo de atuação regulatória nos últimos anos… Talvez esse seja um aspecto (ou defeito) da tradição jurídica brasileira, sempre buscando micro-regular comportamentos e mercados. Ou, ao contrário, talvez seja resultado das pressões dos investidores que não querem lidar com o jogo complicado e imprevisível da política nos ministérios. Mas o fato é que a regulação de mercados, sobretudo nas comunicações, tem sido parte do jogo no Brasil, para bem ou para mal. 

No contexto das políticas das comunicações (se é que podemos chamar Internet de comunicações), contudo, houve apenas uma exceção a esta constante: o Marco Civil da Internet, que esta semana fez 10 anos.

Ao contrário de todas as outras legislações discutidas e/ou aprovadas no período, o Marco Civil ambicionou ser algo maior: uma carta quase constitucional, principiológica, absoluta, que por si só bastaria para materializar aos cidadãos tudo aquilo que pregava. Não havia dúvida sobre o que estava estabelecido. Não havia necessidade de interpretação. Não havia a necessidade de enforcement, de aplicar o que foi concebido por meio de uma agente regulador. Os direitos civis digitais estavam garantidos. Um viva à democracia, uma derrota para as corporações, como a foto da aprovação do Marco Civil tratou de imortalizar.

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E a lista de fundamentos, princípios e objetivos do Marco Civil estabeleceu não foi modesta: liberdade de expressão, direitos humanos no ambiente digital, o exercício da cidadania; pluralidade, diversidade, abertura, colaboração; a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; a finalidade social da rede; a garantia da liberdade de expressão (de novo), comunicação e manifestação de pensamento; a proteção da privacidade, a proteção dos dados pessoais; a preservação e garantia da neutralidade de rede; a preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede; o estímulo ao uso de boas práticas na gestão das redes; a responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades; a preservação da natureza participativa da rede; a liberdade dos modelos de negócios promovidos na Internet; a promoção do direito de acesso à Internet a todos; do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos; da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e modelos de uso e acesso; da adesão a padrões tecnológicos abertos e com acessibilidade.

Estamos enumerando apenas os 30 balizadores gerais que estão listados nos três primeiros artigos do Marco Civil. Além destes, o marco legal da Internet traz ainda mais 18 princípios que se aplicam especificamente à atuação do Estado, e mais tantos outros dispositivos normativos.

Mas por alguma razão que foge à lógica de tudo o que foi feito antes (e depois) do Marco Civil, ficou de fora a figura do regulador. Em seu lugar, o legislador e as inúmeras entidades, especialistas e empresas que defenderam a aprovação do MCI avaliaram que "mecanismos de governança multiparticipativa" seriam suficientes. Esta talvez seja a verdadeira inovação do Marco Civil: uma ode à perfeição dos mercados digitais e à boa fé da humanidade (e das empresas).

Havia sinais

Afinal, o que podia dar errado? Bastava combinar que todo mundo cumpriria a longa lista principiológica e tudo daria certo. Note-se que o ano era 2014, 20 anos depois, portanto, do surgimento da Internet comercial. 

Àquela altura, pelo menos uma bolha especulativa com empresas de tecnologia já havia estourado abalando a economia global; o maior escândalo de espionagem de dados havia acabado de acontecer; 90% dos smartphones do mundo já rodavam de graça ("não existe almoço grátis") em apenas dois sistemas operacionais; pelo menos três entre as cinco maiores empresas do mundo eram protagonistas do mundo digital; inúmeros casos de disputas concorrenciais contra corporações de Internet já haviam se desenvolvido na Europa; a economia baseada em dados era uma realidade flagrante (e no Brasil só foi receber a atenção devida em 2018, com a Lei Geral de Proteção de Dados); as redes sociais já tinham assumido o lugar da imprensa tradicional há tempos; e as tais assimetrias regulatórias entre serviços prestados pela Internet e serviços tradicionais regulados já eram discutidas há pelo menos 10 anos nos fóruns empresariais do setor de telecom, mídia e audiovisual, por exemplo.

Alguns leitores de TELETIME certamente vão se lembrar que em 2004, por exemplo, um dos temas que dominaram nosso noticiário era uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), apresentada à época pelo ex-senador Maguito Vilela, que buscava, vejam só, mudar o artigo 222 da Constituição para incluir os portais de Internet às limitações de capital previstas para os setores de radiodifusão e mídia impressa. Esse é só um exemplo de uma velha história.

Lei principiológica, com uma exceção

Dito isso, não adianta querer julgar o Marco Civil da Internet por algo que ele nunca se propôs a ser: uma lei de regulação do ambiente digital ou das empresas de Internet. Naquele momento, em 2014, julgou-se muito mais importante assegurar direitos gerais ao cidadão do que interferir no bom funcionamento de um mercado cheio de inovações e possibilidades. 

Mas como para toda regra sempre há uma exceção, o Marco Civil buscou intervir em pelo menos um campo econômico: no poder de mercado das operadoras de telecomunicações. Consagrou-se o princípio e se criou a regra da neutralidade, na prática sacramentando em lei a proibição de acordos comerciais entre empresas de Internet e empresas de infraestrutura.

Isso foi feito ao se determinar o tratamento de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Exceções às regras de neutralidade seriam possíveis, mas apenas quando imprescindíveis do ponto de vista técnico, sempre em condições comerciais isonômicas, ouvidas a Anatel e o Comitê Gestor da Internet, com publicidade de contratos e mais algumas condicionantes.

Note-se que a Anatel havia iniciado uma discussão sobre o tema em 2008, e em 2010 a expectativa era de um regulamento específico para a neutralidade no médio prazo, que obviamente perdeu o sentido depois do Marco Civil da Internet.

Nesse aspecto (da neutralidade), apenas a regulamentação do MCI, que veio em 2016 na forma do Decreto 8.771, tratou de dizer que caberia à agência de telecomunicações atuar na fiscalização e na apuração de infrações, mas apenas quanto aos requisitos técnicos, sendo que agora seriam ainda consideradas as diretrizes estabelecidas pelo Comitê Gestor da Internet. Ou seja, não haveria regulação de mercado, mas apenas fiscalização.

Fora isso, a regulamentação do Marco Civil trouxe alguns dispositivos óbvios sobre quem faria o quê no ambiente digital: a Secretaria Nacional de Direitos do Consumidor deveria cuidar de questões do consumidor, e o Cade deveria olhar questões concorrenciais. E, como é próprio do ordenamento jurídico brasileiro, o Ministério Público, quando achasse conveniente, cuidaria dos direitos difusos. 

Não vamos entrar aqui no mérito da sempre necessária avaliação sobre a efetividade de um dispositivo regulatório que limite a livre iniciativa (também prevista na Constituição) e gere obrigações a um ente privado, o que nunca foi feito. Como já opinou o TELETIME em inúmeras ocasiões, a neutralidade surgiu muito mais como uma solução em busca de um problema do que como um remédio para um problema de fato. Seguimos em busca de evidências em contrário e o espaço segue aberto a manifestações.

Não se descarta, por óbvio, a hipótese de que algum operador de rede, em algum momento nos idos de 2012 ou 2013, tenha realizado traffic shaping, atrapalhando o livre compartilhamento de arquivos via torrent de um internauta mais voraz. Afinal, esse era o grande problema das operadoras de banda larga naquela ocasião: evitar que as redes congestionassem pelo volume de tráfego peer-to-peer criado pelas plataformas de torrent. 

Até hoje, não se soube de nenhuma eleição que tenha sido perdida ou vencida por conta de uma gestão de tráfego. De algum bullying virtual decorrente de práticas de "deep package inspection" que tenha levado alguém ao suicídio. De alguma tentativa de golpe de estado por conta da priorização de tráfego. De uma grande crise sanitária, da propagação de notícias falsas, da infração a direitos autorais, de um deep fake ou da incitação ao ódio em consequência de degradação do fluxo de bits ou do slicing da rede 5G. Ou ainda a criação de um monopólio digital ou da infração a algum dos mais de 30 princípios que o Marco Civil sacramentou em decorrência de uma prática pontual de traffic shaping ou de um acordo comercial escuso, por exemplo. Por sofisma, podemos dizer com segurança que a regra da neutralidade nos salvou da barbárie! Tudo bem que isso poderia ter sido resolvido por uma portaria da Anatel, mas optou-se pelo caminho que evitasse a agência de telecomunicações a qualquer custo. Certamente foi mais fácil fazer uma lei.

Depois de 2014, as operadoras tiveram que lidar apenas com dezenas de plataformas de streaming, serviços de vídeoconferência, plataformas de armazenamento em nuvem, aplicativos de chamadas, trocas de vídeo e fotos em redes sociais etc, assegurando a estabilidade do tráfego de dados e sem poder conter ou priorizar nenhum bit de informação. E impedidas inclusive de estabelecer uma franquia de uso, porque a mesma Anatel que não servia para cuidar da neutralidade foi aplaudida quando proibiu em 2016, cautelarmente, a franquia de dados na banda larga fixa, mesmo sem nenhuma previsão legal nesse sentido. Imposição esta até hoje não revisada.

Enquanto isso, em outros setores…

Contudo, o acompanhamento dos mercados por meio de Análises de Impacto Regulatório, a proposição de medidas ex-ante nos casos de imperfeições de mercado, o subsídio e execução de políticas públicas, a sanção a práticas abusivas e outras tarefas típicas de reguladores continuaram acontecendo no mundo das telecomunicações, da TV paga, do audiovisual, da radiodifusão, do setor de energia, na proteção de dados pessoais, do setor de saúde, no setor financeiro, do setor de transporte e tantos outros ambientes regulados nesses 10 anos desde que o Marco Civil da Internet foi promulgado. Isso só não aconteceu no ambiente de Internet. Ao longo da última década, os princípios tão relevantes imortalizados pelo MCI ficaram à cargo apenas da fé no mundo perfeito, infalível, colaborativo e aberto da Internet. Deu tudo certo, felizmente, e não houve a necessidade de nenhuma regulação do ambiente da Internet, em que os direitos digitais do cidadão prevaleceram.

Outros países, contudo, foram por caminhos diferentes. Conforme estudo apresentado esta semana pela Coalizão Direitos na Rede, que contemplou a análise das legislações de 71 países, a figura do regulador está longe de ser exceção. Na Europa, de 27 países analisados, 26 têm reguladores de alguma forma responsáveis pelas plataformas digitais, fora a regulação central da Comissão Europeia. Na maioria dos países europeus (18), o regulador de telecomunicações tem esse duplo papel, mas há ainda a atuação dos reguladores de mídia e de concorrência em alguns casos. Note-se que muitos destes países criaram legislações de Internet depois do Brasil. Os problemas que eles enfrentam não são diferentes dos nossos, mas talvez lá haja a quem recorrer.

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