No final de fevereiro, a operadora de cabo e banda larga norte-americana Comcast e a over-the-top (OTT) Netflix anunciaram um acordo de conexão "mais direta" entre os servidores das duas empresas visando uma entrega de conteúdo por streaming mais eficiente. Na época, houve uma clara indicação que o tráfego da OTT não estaria recebendo tratamento adequado na rede da operadora. Tanto é que a empresa não ficou satisfeita com esse acordo porque, segundo o CEO da Netflix, Reed Hastings, na verdade isso aconteceu para restabelecer uma experiência adequada aos usuários por conta de uma suposta quebra na neutralidade de rede por parte da Comcast. Ou seja: a companhia de streaming de vídeos teria de pagar um "pedágio" para poder entregar seu conteúdo.
Em um post no blog da OTT na quinta-feira, 20, Hastings explicou o que significou o acordo. "A Netflix acredita que a forte neutralidade de rede é crítica, mas, em curto prazo e em alguns casos, nós vamos pagar um pedágio aos ISPs (provedores de Internet) poderosos para proteger a experiência de nosso consumidor. Quando fazemos isso, não pagamos por prioridade de acesso em relação aos competidores, é apenas por interconexão", declara. "Há algumas semanas, concordamos em pagar à Comcast e agora nossos clientes estão tendo uma boa experiência novamente", cutucou, ressaltando que a operadora tem sido uma das vozes na "fraca" neutralidade de rede, mas que espera que ela passe a apoiar a neutralidade "forte".
Segundo o CEO, os grandes ISPs têm cobrado esse pedágio simplesmente "porque podem", por ter o controle do acesso "e estarem prontos a sacrificar os interesses dos consumidores para pressionar a Netflix e outras empresas a pagar". Ele declara que, por enquanto, a companhia continuará pagando "relutantemente" a esses provedores, mas que irá brigar pela "Internet que o mundo precisa e merece".
Problemas com CDNs
Hastings não atacou apenas a Comcast e fez duras críticas aos provedores de Internet ao defender o tratamento igualitário do tráfego de rede, inclusive questionando a cobrança de taxas feitas a intermediários que prestam serviços de redes de entrega de conteúdo (CDNs), como Akamai e Level 3.
O executivo cita um levantamento feito pelo Wall Street Journal, com base em dados da própria Netflix, que mostra que o desempenho do serviço OTT foi prejudicado nas quatro maiores empresas dos Estados Unidos (Time Warner Cable, Verizon – FiOS, AT&T – U-Verse e Comcast). A Comcast, por exemplo, saiu de uma velocidade de 2,5 Mbps em média para o streaming em outubro de 2013 para 1,51 Mbps em janeiro. "Uma vez que a Netflix concorde em pagar aos ISPs as taxas de interconexão, entretanto, a capacidade suficiente é disponibilizada e o serviço de alta qualidade é restabelecido", declara. "Mais ou menos a mesma taxa arbitrária é demandada aos intermediários como Cogent e Level 3, que fornecem conectividade a milhões de websites, levando a uma experiência pobre", diz, citando um post do conselheiro de assuntos regulatórios da Level 3, Michael Mooney, que denuncia a prática nos EUA.
Reed Hastings rebate ainda o argumento de operadoras de que não podem ser apenas "tubos" para entregar o conteúdo das OTTs, deixando receita para estas empresas. Segundo ele, os provedores afirmam que 30% do pico do tráfego residencial é por causa dos vídeos do serviço, e, por isso, querem que os custos sejam repartidos. "Mas os ISPs não oferecem também para o Netflix ou serviços similares uma parcela na receita deles, então compartilhar custos não faz sentido", diz. O CEO ainda reclama do fato de que não há taxa adicional alguma quando as operadoras fazem interconexão entre si, detalhando também que o direcionamento dos dados (seja upstream ou downstream) nada tem a ver com custos, já que os ISPs não pagam a serviços de backup, que geram mais upstream.
Cogent
O tema ainda vai render. Após as declarações da Netflix e da Level 3, a distribuidora de CDNs Cogent também emitiu um comunicado nesta sexta-feira, 21. O CEO da empresa, Dave Shaeffer, afirmou ter oferecido a proposta para melhorar as conexões necessárias para realizar a troca de tráfego de Internet (incluindo de serviços como da Netflix) com Verizon, Comcast, AT&T e Time Warner Cable. Segundo Shaeffer, a empresa concordou em "pagar o custo capital pedido por essas companhias para realizar o upgrade dessas conexões (assim como os próprios custos da Cogent) para garantir a capacidade adequada para entregar o serviço de qualidade aos consumidores". Ele afirmou ainda que, "por mais de um ano", os clientes desses provedores estariam sofrendo com essas restrições nas redes.
O CEO da Cogent diz que espera que a agência reguladora Federal Comunications Comission (FCC) reforce regras e aceite os comentários da empresa com propostas para coibir a prática dos ISPs. "A Cogent anseia por continuar conversas com a FCC e a comunidade de Internet nessas propostas e nas melhores formas de preservar uma Internet robusta, inovadora e realmente aberta."
Brasil
Longe de ser uma unanimidade, a neutralidade de rede tem sido um tema constante nos debates mais recentes também no Brasil. O líder do PDMB, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), propôs uma emenda aglutinativa no Marco Civil para excluir o assunto no texto do deputado Alessandro Molon (PT-RJ). O governo procurou acalmar os ânimos ao realizar concessões, como retirar outro assunto do texto, a guarda de dados em território nacional.
O tema de neutralidade de rede foi também uma das principais propostas do CGI.br e, principalmente, do Massachusetts Institute of Technology (MIT) nas contribuições enviadas para a Reunião Multissetorial que acontecerá em São Paulo em abril. Entretanto, a maioria dos governos e entidades participantes preferiu evitar abordar o assunto ao falar de governança da Internet. Agora que um dos principais temas propostos já está em andamento – a globalização da Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN) –, o evento poderia se dedicar também a discutir a validade dessas práticas econômicas que afetam não apenas empresas de conteúdo, mas usuários. Resta haver vontade.