A partir do próximo ano, o mercado de banda larga via satélites terá uma conformação diferente da atual. Hoje, as opções giram em torno de satélites geoestacionários (GEO), no Brasil representadas pela Hughes e pela Viasat/Telebrás, operando em banda Ka, e a entrada em operação das constelações de órbita baixa (LEO), como Starlink e, em breve, Kuiper, da Amazon. A novidade virá da constelação O3b mPOWER, da SES, em órbita média MEO, acompanhada de um pacote de inovações tecnológicas que prometem mudar bastante os modelos de operação e comercialização desse tipo de serviço, sobretudo para os mercados de atacado e corporativo.
Segundo Ruy Pinto, CTO global da SES, o que faz da constelação mPower diferente é a flexibilidade de oferta de capacidade. Cada satélite é capaz de cria mais de 5 mil feixes de cobertura diferentes, com velocidades e capacidade de tráfego focalizadas de maneira dinâmica em diferentes pontos de acesso. Seria o equivalente, em redes satelitais, à capacidade de concentração e ampliação de sinais que as antenas MIMO possibilitam às redes 5G. "O que conseguimos fazer agora é mudar dinamicamente a configuração de cada satélites e da constelação".
Outra diferença é a capacidade da rede: a constelação O3b mPOWER consegue viabilizar conexões de 10 Gbps por célula, algo que mesmo as constelações de órbita baixa ainda ficam distantes. Mas o foco da SES com o serviço mPower não é o consumidor final de serviços banda larga. "A gente busca os consumidores que precisam de capacidade assegurada e parâmetros de qualidade", diz Ruy Pinto.
O foco é o atendimento do mercado móvel com backhaul, cobertura banda larga para regiões remotas, o mercado de mobilidade (que inclui mais de 200 mil aviões e embarcações) e aplicações corporativas de alta capacidade, inclusive aquelas integradas a serviços de nuvem.
Outro salto tecnológico é a tecnologia ARC (Adaptive Resource Control), desenvolvida pela própria SES, que integra a capacidade de diferentes fontes e provedores. A tecnologia é necessária porque a SES é hoje a controladora da maior frota de satélites geoestacionários do mundo (GEO) e a maior parte de seus clientes utiliza esse tipo de capacidade. Seria necessário assegurar uma forma de integrar essa capacidade existente à capacidade da primeira geração O3b e à capacidade da constelação mPOWER.
Mas a promessa da tecnologia ARC é ir além e possibilitar, por meio de APIs, inclusive integração de capacidade de outros provedores de satélite e banda larga, de modo que a gestão dessas capacidades possa ser transparente para o consumidor no final da ponta. "Não queremos que os nossos clientes tenham que se preocupar se o sinal está chegando de um satélite GEO ou de um satélite mPOWER".
A O3b foi a primeira a operar serviços de banda larga comercial em órbita não geoestacionárias, ainda em 2013. Há alguns anos, iniciou em conjunto com a Boeing Space o desenvolvimento da tecnologia de satélites que seria utilizada em uma nova geração da constelação MEO. Com 200 engenheiros da SES dedicados ao projeto mPOWER e outra centena do lado da Boeing, o projeto começa a se tornar realidade em dezembro deste ano, com o lançamento do primeiro satélite da nova geração (sequência de lançamentos que deve se estender para janeiro e fevereiro, todos lançados pela SpaceX), e em setembro de 2023, se tudo correr bem, com o serviço comercial sendo lançado. Ao todo, a constelação mPower terá 11 satélites, que pode ser ampliada em caso de necessidade no futuro.
Mas no começo do próximo ano, segundo Ruy Pinto, a SES deve anunciar já os detalhes da terceira geração O3b, que já está sendo planejada. A seguir, a entrevista exclusiva concedida por Ruy Pinto a este noticiário, durante visita à fábrica da Boeing, em El Segundo, Califórnia.
TELETIME – Como foi o processo de planejar a constelação mPOWER, considerando o desafio de pensar em tão longo prazo? As constelações LEO estavam no radar quando vocês pensaram no que seria essa segunda geração O3b?
Ruy Pinto – Nós projetamos o O3b mPOWER em 2016, e discutimos coma Boeing em torno do conceito de flexibilidade que a gente buscava. Mas essas constelações LEO não estavam no radar. O modelo de negócios na época era duvidoso, acreditávamos que a conta dificilmente fecharia. E estávamos errados. A percepção hoje é que a quantidade de investimentos que empresas como a SpaceX/Starlink ou Amazon são capazes de fazer, o acesso a capital, a base de clientes que eles já têm no Prime, ou AWS, isso não estava evidente em 2016 e 2017. O que estava claro para nós era o nosso caso de investimento na ocasião: mercado marítimo, mercado de dados fixo, mobilidade, 10 Gbps por célula (o que não existia e ainda ninguém chega perto)… Isso fazia sentido e ainda faz. Mas sempre soubemos que os modelos iriam mudar, e para garantir o futuro precisávamos de um produto, mesmo que um pouco mais caro, que pudesse se adaptar conforme as circunstâncias. É isso que a gente vai demonstrar a partir de setembro de 2023.
Como está a demanda para o mPower?
Já temos um backlog de US$ 900 milhões, ou seja, de capacidade contratada, e metade disso é o mPOWER. Por isso temos confiança de que o resultado final será bom. O que não quer dizer que o modelo hoje seja o mesmo de seis anos atrás. Governos, por exemplo, têm um peso muito maior na demanda do que estimávamos, mas é perfeitamente possível, com a tecnologia que temos, nos adaptar a isso.
Vocês pensaram na constelação projetando uma demanda forte do segmento corporativo, que quer SLAs (Service Level Agreement), ou seja, qualidade assegurada. Você não vê o risco de acontecer, na disputa com as constelações LEO, a mesma coisa que aconteceu no mercado de fibra ótica, ou seja, o "best effort" ficou tão bom que ninguém mais quer pagar a mais por SLAs?
Existe esse risco sim. A gente vê isso no segmento se cruzeiros, por exemplo. Temos um cliente que usa hoje Starlink sem nenhuma qualidade assegurada. Mas a gente vai se diferenciar de outras maneiras, com flexibilidade e ampliando a velocidade.
Você consegue ampliar a capacidade da constelação mPOWER apenas aumentando o número de satélites?
Conseguimos, mas tem um limite. A gente praticamente dobrou, no agregado, ao colocarmos 11 satélites em lugar de sete originalmente programados, mas isso é na rede inteira. O nosso limite, contudo, é o satélite individualmente. E isso se resolve com uma nova geração, que deve quadruplicar a capacidade dos satélites atuais. O roadmap deve ser anunciado no ano que vem, mas não precisamos esperar isso, porque o mPOWER já traz coisas que outros não oferecem. Por exemplo, podemos acomodar a proporção entre upstream e downsream, ou seja, entre subida e descida, da forma como a gente quiser.
E a plataforma ARC, para integrar tudo isso? Já começa a rodar imediatamente que o mPOWER entrar em operação?
Sim, além do mPOWER vamos imediatamente integrar dois satélites da Thales que estão em órbita geoestacionária ao ARC, e agora estamos trabalhando para integrar ao ARC satélites que não foram projetados pensando nesse modelo de controle.
Hoje no mundo existem cerca de 160 satélites com capacidade de processamento digital em órbita, segundo a Boeing. Quando esses satélites foram lançados, havia muita dúvida sobre a confiabilidade do modelo digitais. Qual a experiência de vocês até aqui?
Temos dois satélites com processamento digital e agora lançamos o SES 17, que cobre a América Latina. A vantagem do processador digital é que, uma vez que você tem o hardware bem pensado para as situações que ele vai enfrentar no espaço de radiação, variação térmica, capacidade de correção de erros de memória… uma vez que isso está resolvido, o que pode parecer uma desvantagem vira uma vantagem, que é a possibilidade de reconfiguração, de atualização. No SES 17 já fizemos uma correção quando identificamos um pequeno problema de software, e isso é ótimo. O mPOWER vai ter essa capacidade.
O mPOWER terá capacidade de conexão entre satélites?
Não, mas essa capacidade vai chegar. A nova geração que a gente está planejando vai incluir essa capacidade, porque certamente já estará madura.
A Starlink é hoje a ameaça que paira no mercado de satélites, e grande parte do desafio de vocês é entender o que virá de tecnologia do lado de lá, já que é uma operação completamente verticalizada, em que o Elon Musk controla completamente a cadeia de produção. Vocês não ficam às cegas em relação à concorrência?
Eles são integrados desde quando estavam só no mercado de lançadores, e de fato fica muito mais difícil de prever o que eles terão. O que a gente faz como integradores de diferentes tecnologias é forçar, junto aos fornecedores, os parâmetros até o limite do que a tecnologia pode entregar. No mPOWER e outros satélites programáveis que a gente tem não aceitamos o que nos ofereciam, o que já estava no mercado. De todos os fornecedores exigimos que fizessem mais, além do suficiente. E essa pressão, somada a um ambiente competitivo entre fornecedores, é uma forma efetiva de levar a tecnologia além do limite do que já existe.
Mas ao mesmo tempo, vocês não ficam com a propriedade intelectual do desenvolvimento tecnológico. Isso não é ruim? Não é um problema se algum concorrente seu vier na Boeing e comprar a mesma tecnologia que você ajudou a desenvolver?
Diferentes empresas têm diferentes filosofias nessa questão. A Viasat, por exemplo, resolveu em um dado momento desenvolver o seu próprio payload. E são bastante protetores em relação a isso. Nós na SES temos outra filosofia, que é a da velocidade, em sermos os primeiros. Se alguém chegar aqui na Boeing e pedir um mPower para levar, vai conseguir, mas vai levar dois anos, e até lá já estamos lá na frente. Para nós, ser primeiro é melhor do que ser protetor da tecnologia. Até porque se a gente exigisse exclusividade, teríamos que pagar todo o desenvolvimento. O ecossistema aberto aqui ajuda a reduzir custos.
No caso da tecnologia ARC, é possível que no futuro vocês integrem na oferta de vocês capacidade de outros provedores?
Sim, tecnologicamente é possível, é só uma questão de modelos de negócio. Podemos pensar em um modelo de roaming para redes de satélite. Abrir o ARC para integrar terceiros é apenas uma questão de modelos de negócio. Tem um custo de integração mas é possível. O modelo de negócios que a gente pensa em fazer é incorporar capacidade de cobertura regionais.
A gente tem visto muita discussão sobre a questão de riscos e sustentabilidade espacial. Como vocês enxergam essa questão?
Somos muito conscientes de nossas obrigações de tirar satélites que chegam ao final da vida útil de órbita para evitar riscos, tanto em MEO quanto em GEO. Temos uma parceria com a NorthStar para rastrear satélites em órbita. E estamos tentando influenciar a indústria e reguladores para que haja acordos e regras internacionais para o controle de tráfego aéreo espacial. O problema é que sempre caímos nos debates nacionais. Os governos precisam buscar uma coordenação, e isso não está acontecendo. Hoje, empresas como Starlink estão correndo para ocupar.
Hoje só vocês estão apostando em satélites MEO. Vocês estão muito certos ou muito errados?
(Risos) Estamos certos, obviamente. E há razões para isso. Cada órbita tem sua característica. Para redes LEO são pelo menos 150 satélites necessários para dar cobertura global. MEO com menos satélites, um décimo disso para cobrir todo o Globo, então conseguimos fazer a mesma coisa sem comprometer a latência. Um concorrente LEO para dobrar a capacidade de satélite precisa lançar milhares de satélites. Somos os primeiros a explorar MEO, mas não devemos ser os únicos, é público que a Intelsat tem um pedido nesse sentido. A órbita MEO deve ter outros players. (O jornalista viajou à convite da SES para a fábrica da Boeing Space, na Califórnia)