Um VAR para a Internet

Mário Girasole, VP de assuntos regulatórios e institucionais da TIM

Sabemos que uma das consequências do progresso é a obsolescência: de máquinas, conhecimento, hábitos, e, segundo o filósofo Günther Anders, do próprio ser humano. Naturalmente, como qualquer sistema multiagente envelhece, as regras que o disciplinam também envelhecem.

Imaginemos o jogo de futebol hoje sem cartões amarelo, vermelho e impedimento e com um goleiro que possa ficar por tempo ilimitado com a bola nas mãos. Pois foi assim que o esporte nasceu. Mais recentemente, o futebol incorporou o VAR (Video Assistant Referee) – um olho artificial diante de um jogo cada vez mais veloz, que a visão do árbitro tradicional já não consegue controlar sozinha.

No caso do jogo da Internet, houve também transformações que a normatização estabelecida fatalmente não acompanhou. No centro desse descaso temporal da regulamentação está a chamada neutralidade de rede. O conceito entrou na literatura regulatória no começo da década de 2000, quando a Internet, em banda ainda estreita, se limitava essencialmente ao WWW idealizado pelo físico britânico Tim Berners-Lee. O princípio da neutralidade atendia à situação técnica e econômica específica daquele momento, servindo para organizar de maneira plural o acesso dos usuários a conteúdos que circulam em rede sem nenhum requisito de qualidade.

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Todo bit seria igual a outro bit e o primeiro a chegar à rede seria o primeiro a ser atendido, de forma a evitar que portais ligados a operadoras de telecomunicações tivessem vantagem de transmissão, desequilibrando assim a competição pelo mercado de acesso aos usuários.

Só que a realidade muda com o advento da banda larga, sobretudo móvel, e as coordenadas técnicas e econômicas do sistema multiagente da Internet se invertem. A Internet deixa de ser um ambiente aberto e passa a ser um corredor sem barreiras com acesso a portas fechadas, cada qual com suas características de performance, qualidade e modelo de negócio, incompatível com o princípio originário de best effort.

O suposto poder de mercado das redes de telecomunicações locais é substituído pelo surgimento das grandes plataformas digitais globais, enquadradas na denominação de Big Techs – o tráfego total de dados nas redes móveis praticamente triplicou entre 2019-2022, sendo três dessas grandes Big Techs responsáveis por mais de 50% do que é cursado.

A combinação de um ecossistema de portas fechadas nas mãos de poucos sujeitos acaba com a visão romântica da Internet, como recentemente bem apontou o Presidente da Anatel, Carlos Baigorri. E, se o jogo muda, é imprescindível repensar suas regras.

Antes de tudo, é necessário reconhecer e deixar no passado uma ilusão semântica, cuja raiz está na acrítica equivalência entre rede aberta e rede neutra. Somente existiria essa relação de igualdade entre rede aberta e rede neutra se estivéssemos diante de um ambiente "monosserviço" ou de recursos de rede ilimitados. Somente nessas duas situações, afirmar que um bit é sempre igual ao outro bit não teria o potencial de prejudicar estruturalmente a experiência de uso. Em todos os outros casos, é preciso gerenciar a rede e o tráfego, em benefício do consumidor, uma vez que este não consome bit, mas determinados serviços.

Sem prejuízo de critérios que ressalvem os princípios de não discriminação e a ampla liberdade de acesso e escolha pelo usuário, uma rede aberta e regulada não somente não precisa ser "neutra", como também, do ponto de vista técnico-econômico, é anacrônico pretender que seja "neutra".

Isso porque a direções inequívocas da tecnologia são a flexibilização e a diferenciação. Uma rede 5G hoje é capaz de administrar as suas "fatias" com uma importante customização da performance (latência, throughput, etc.) dedicada a uma ampla gama de serviços. Isso é intuitivamente incompatível com um conceito antigo de neutralidade de rede. Nesse sentido, a própria Anatel, em estudo de 2020, já apontava que a situação tendia a atrasar investimentos em redes 5G e avaliava que "iniciativas de alterações legais e regulatórias, para rediscussão da neutralidade de rede, parecem mostrar-se imprescindíveis".

A teoria econômica trata muito de mercado de dois lados e, neste contexto, podemos considerar que as redes de telecomunicações são um agente entre os usuários e as Big Techs. Entretanto, para esses dois mercados não é comercializado o mesmo produto ou serviço. Os usuários finais contratam das prestadoras de serviço de telecom o acesso às redes – que é sempre disponibilizado com a melhor tecnologia disponível, de acordo com o device, seja um celular, um computador ou um aparelho de TV. Já para o tráfego das Big Techs, a rede garante os necessários níveis de performance.

No entanto, as prestadoras de serviços de telecom são remuneradas pela conexão dos clientes finais, mas não são compensadas pela performance garantida para o crescente tráfego das Big Techs. Por sua vez, essas plataformas monetizam a qualidade do tráfego, cursado por meio de canais/redes, mas não remuneram esta performance que é provida.

Esse debate não é exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos, a neutralidade foi abandonada em 2017, sem notícia de particulares problemas desde então. Na Coreia do Sul, as regras estão mudando para que os provedores de Internet possam cobrar de forma proporcional pelo tráfego que recebem. Em participação no maior evento global de tecnologia móvel, o MWC, encerrado no início de março em Barcelona, o comissário para mercado interno da União Europeia, Thierry Breton, afirmou que as redes da Europa não estão preparadas para o "crescimento massivo de tráfego" impulsionado pelas grandes plataformas e que é preciso encontrar novos mecanismos de financiamento da infraestrutura.

A discussão em escala global sobre o "fair share" objetiva a necessidade das empresas que dominam o mercado de tecnologia negociarem com as prestadoras de redes de telecomunicações a justa remuneração por essa performance requerida para operação de suas aplicações. Em presença de uma noção arcaica de neutralidade de rede, não existe incentivo para as gigantes da tecnologia entrarem nessa negociação. As redes de telecomunicações incorporam assim uma externalidade negativa crônica, que deprime o potencial de investimento para a inclusão digital.

Consultas públicas estão em andamento no Brasil e na Europa para individuar uma linha de modernizacão do arranjo regulatório capaz de equilibrar as forças e modular os incentivos da era pós-romântica da Internet. No fim do dia, se o debate está etiquetado de "fair share" significa que algo de "unfair" está acontecendo neste jogo. Tornam-se inadiáveis novas ferramentas institucionais para checagem dos lances.

* Mario Girasole é vice-presidente da TIM. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.

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