As eleições terminaram e Luiz Inácio Lula da Silva voltará à presidência no dia 1 de janeiro de 2023 com uma realidade, pelo menos no que diz respeito ao ambiente das comunicações, bastante diferente daquela que encontrou 20 anos atrás e daquela encontrada quando o PT saiu do poder, em 2016. A boa notícia é que Lula, neste terceiro mandato, será o primeiro presidente que poderá tocar a pauta setorial olhando a maior parte do tempo para frente do que para o retrovisor, com uma agenda 95% renovada em relação ao modelo que foi estabelecido pela Lei Geral de Telecomunicações. Nos últimos 20 anos, as coisas evoluíram muito, e para melhor, ainda que os desafios continuem grandes.
No primeiro governo Lula a privatização do Sistema Telebrás, realizada em 1998, ainda era um fato recente, as cicatrizes daquele processo estavam ainda abertas e havia um considerável grau de revisionismo no ar. Hoje, obviamente, tudo isso já está muito distante no passado e resta apenas uma reflexão ainda necessária sobre o papel da Telebrás daqui para frente. A estatal foi reativada no contexto do Plano Nacional de Banda Larga de 2009, e desde então é uma empresa deficitária e sem foco. Hoje, tem como principal função operar o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações (concebido no final do governo Lula, mas colocado em operação só na Era Temer). Desde o governo Dilma, a Telebrás deixou de ter papel de protagonista na implementação de políticas públicas. Essa tarefa tem sido exercida hoje principalmente pela RNP.
No primeiro governo Lula, o acesso à Internet em banda larga era uma tecnologia que começava a se desenvolver. Em 2003 eram poucos milhares de acessos. Os 14 anos de governo petista testemunharam um enorme avanço nesse setor, para pouco mais de 22 milhões de acessos. Mas nos seis anos seguintes, esse número dobrou e já passa dos 45 milhões de acessos. O fenômeno se deve à massificação da fibra ótica e atuação dos provedores de Internet locais e regionais. Eles tiveram papel central nesse crescimento, e o surgimento destes atores tem muito mais a ver com uma forte demanda de mercado e de medidas regulatórias do que de qualquer política pública específica.
No início do primeiro mandato de Lula, a tecnologia móvel que crescia era o GPRS (2G), com capacidade de transmissão de dados rudimentar. Ao final dos governos do PT, o 4G já era realidade e o 5G aparecia no horizonte. Hoje são 260 milhões de acessos, a maior parte 4G, e com um rápido crescimento do 5G, que potencialmente abre novas possibilidades técnicas, inclusive proporcionando políticas públicas específicas e focadas em aplicações, e não apenas nas redes.
Universalização encaminhada
Lula iniciará seu terceiro mandato, portanto, com o desafio de universalizar a banda larga praticamente resolvido, e as lacunas de cobertura ainda existentes estão endereçadas nos compromissos do 5G, Plano Geral de Metas de Universalização e outras políticas em curso. É certo que em 2021 ainda existiam cerca de 18% da população sem acesso, mas as causas não são decorrentes necessariamente da falta de rede ou cobertura. O desafio da universalização da banda larga, conforme dados da pesquisa TIC nos Domicílios, está principalmente ligado ao custo, acesso a dispositivos, falta de interesse ou familiaridade com o uso da tecnologia. O desafio que se coloca é, portanto, bem diferente dos que se colocaram durante os governos do PT, o que exigirá políticas públicas muito mais voltadas ao estímulo da demanda e de aplicações do que à ampliação ou gestão das redes.
Outra página que o terceiro governo Lula pegará virada é a da carga tributária, principalmente a do ICMS, um problema que por décadas dominou a pauta e que acabou sendo encaminhado no governo Bolsonaro, ainda que por vias indiretas. Com a Lei Complementar 194/2022, feita para estancar o aumento nos combustíveis, o setor de comunicações, assim como energia, foi classificado como serviço essencial. Desta forma, a alíquota saiu dos patamares exorbitantes praticados até então e entrou no mesmo patamar de outros serviços, na casa dos 17%. Não quer dizer que a carga tributária tenha ficado leve para as telecomunicações (como não é para nenhum setor da economia), mas pelo menos agora a perspectiva de uma reforma tributária mais ampla, que é defendida no programa de governo do presidente eleito, passa a ser um caminho mais fácil para resolver as distorções.
Fundos como oportunidade
No âmbito tributário, restam os desafios dos fundos setoriais, mas também nessa frente há boas notícias para o próximo governo. A utilização dos recursos do Fundo de Universalização de Telecomunicações, que durante todos os governos petistas esteve embarreirada, inclusive por limitações legais, está destravada desde 2021. Se o futuro governo tiver políticas e a visão de aplicar esses recursos em projetos para o setor, poderá dispor só ai de R$ 1,5 bilhão ao ano, caso abra espaço fiscal para isso. Já existe um Conselho Gestor criado e projetos encaminhados. Na linguagem política, Lula terá apenas o trabalho de inaugurar a obra pronta, ou de rapidamente estabelecer uma política sua. Na mesma frente, existe hoje uma quantidade significativa de recursos para educação conectada (estima-se em pelo menos R$ 8 bilhões), em diferentes programas em implantação no Ministério das Comunicações, Ministério da Educação e nas metas de 5G, que podem ser aproveitados imediatamente em políticas com impacto social relevante.
Ainda existe o desafio do Fistel, que onera excessivamente os serviços móveis, mas nessa frente há duas novidades em relação à realidade vivida pelos governos Lula e Dilma: a Anatel tem o seu orçamento (bancado pelo Fistel) relativamente blindado por determinação do TCU, e os serviços de IoT gozam de isenção das taxas de instalação e funcionamento, o que também era uma amarra que precisava ser vencida.
Existem ainda questões importantes relacionadas às contribuições setoriais que merecem reflexão: a CFRP, contribuição dedicada à radiodifusão pública, só fará sentido caso haja uma radiodifusão pública, visto que hoje o que existe é uma estatal dedicada à propaganda do Executivo; e a Condecine-Teles, que leva cerca de R$ 1 bilhão do setor, e que pode ser repensada à luz de novas políticas audiovisuais alinhadas com a nova realidade de consumo de conteúdos por streaming.
Caberá justamente ao próximo governo do PT dar um destino para a legislação atual de TV por assinatura, que foi gestada no segundo mandato de Lula e nasceu no primeiro governo Dilma. O mercado de TV paga hoje é muito diferente do que era nos governos petistas, quando chegou ao seu ápice de 20 milhões de usuários em 2014, consequência direta do aumento do poder de compra da classe C. Desde então, o setor perdeu mais de um terço de seu tamanho, os serviços de streaming ganharam protagonismo e aquelas políticas estabelecidas na Lei 12.485/2011 hoje fazem pouco ou nenhum sentido da forma como estão. Algumas das mais importantes e exitosas políticas, como as de estímulo ao conteúdo audiovisual nacional, perdem a validade em 2023. Caberá ao futuro governo Lula, que nos seus discursos enfatizou reiteradas vezes a importância que pretende dar ao setor cultural (e a um Congresso muito mais conservador), decidir o que fazer com essas políticas. São obrigações que afetam um mercado relevante como é o do audiovisual, mas que também tem peso tributário e regulatório pesados sobre as telecomunicações.
A agenda da transformação e da Internet
A agenda da transformação digital também teve avanços importantes nos últimos anos. Estes avanços precisam ser corretamente avaliados pelo futuro governo na hora de propor as políticas setoriais. Hoje o Estado já opera com base em múltiplas plataformas digitais, inclusive no atendimento ao cidadão. Não se pode negar os avanços nessa frente, mas ainda falta coordenação entre as diferentes iniciativas e atores governamentais, um diálogo cuidadoso às questões de proteção de dados pessoais e a ampliação do uso da tecnologia não apenas para o atendimento do cidadão, mas também para a própria eficiência do Estado.
Também faltam políticas públicas que possibilitem a indução do processo de transformação digital de maneira transversal na economia e em áreas estratégicas como educação, saúde, segurança e cidades inteligentes. Se estas políticas vierem, constituirão, definitivamente, uma agenda muito mais alinhada com as novas necessidades do País e em linha com o que se busca em outros países. Muito disso aparecia nos planejamentos feitos nos meses finais do governo Dilma, houve alguns avanços desde então e o próprio PT reconhece a importância dessa estratégia no conjunto de 13 medidas para a transformação digital elaborada na fase de campanha. Também é uma agenda perfeitamente alinhada às demandas setoriais atuais. Tudo converge para que esta seja uma agenda dominante.
Um dos grandes desafios nessa frente, contudo, será o de formar profissionais capacitados no volume necessário, considerando o atrofiamento das políticas de ciência e tecnologia nos últimos anos, e encontrar formas de estimular rapidamente o desenvolvimento do ecossistema de aplicações, conectividade e integração.
Há ainda uma agenda nova que se coloca para o terceiro governo Lula, que não aparecia no horizonte de maneira relevante nos seus dois primeiros mandatos de Lula e apenas começaram a se esboçar como desafios no final do governo Dilma: o papel dos grandes atores de Internet no cenário econômico, concorrencial e também político. A marca final dos governos do PT nessa frente foi o Marco Civil da Internet, que endereçou um pedaço do problema, mas que hoje parece insuficiente para dar conta dos novos desafios.
De maneira simplificada, a chamada "Regulação das Plataformas" é um desafio comum em diferentes países, que seguem diferentes abordagens. No Brasil, o debate ficou praticamente interditado durante o governo Bolsonaro, pela falta de iniciativas do Executivo e do Legislativo. Ao anunciar o resultado das eleições, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, trouxe uma perspectiva para o problema: as empresas de Internet não podem ser vistas apenas como plataformas tecnológicas, mas como veículos de comunicação, com deveres e responsabilidades. Não é a única perspectiva sobre o tema, nenhum dos caminhos existentes é simples, e há muitas outras dimensões para além das questões de desinformação trazidas pelo presidente do TSE. Por exemplo, a dimensão concorrencial, as assimetrias regulatórias e tributárias e as questões de segurança cibernética. No Brasil, a Anatel tem dado alguns passos no sentido de iniciar o debate, mas certamente esse será um tema a ser enfrentado pelo próximo governo Lula de maneira muito mais ampla.
O esqueleto no armário
Mas nem tudo será novo para o novo governo Lula. Entre os esqueletos no armário setorial e que perfazem ainda a "pauta velha" com que o presidente eleito precisará se preocupar está o fim das concessões de telefonia fixa. Não deixa de ser irônico que esta bomba tenha caído no colo de Lula, de novo. Em seu segundo mandato, o agora futuro presidente promoveu uma das mais agressivas intervenções no modelo para permitir a fusão da Oi com a Brasil Telecom, na busca de fomentar um grande campão nacional. Deu tudo errado. A Oi é hoje uma fração minúscula do que chegou a ser, enfrenta um processo de recuperação judicial que começou quando o governo Dilma Rousseff terminava, e o futuro da operadora é absolutamente incerto diante do cenário regulatório e financeiro.
Se der tudo certo para a Oi, ela será uma operadora sem rede própria, focada em serviços de Internet residenciais e serviços corporativos. Mas para isso acontecer, precisa conseguir migrar sua concessão de telefonia fica para o modelo de autorização, precisa ter saúde financeira para pagar seus compromissos pós-recuperação judicial e se manter competitiva sem ter uma rede móvel própria. O "tudo certo" passa pela Anatel conseguir fechar um modelo de migração da concessão que seja viável para a Oi (hoje a proposta da Anatel prevê uma contrapartida em investimentos de R$ 12 bilhões, o que para a Oi está fora de cogitação), esse modelo precisa passar pelo crivo do TCU, e é preciso saber qual será o final do processo de arbitragem entre a operadora e o governo, pelo qual a Oi pede R$ 16 bilhões em reparações. Se nada disso der certo, o governo Lula precisará assumir a operação de telefonia fixa, ou tentar licitá-la novamente, e certamente haverá uma longa batalha judicial entre a Oi e o governo.
Sem a complicação do processo de recuperação judicial da Oi, o mesmo problema está colocado em relação aos demais concessionários de telefonia fixa: Telefônica, Claro (na longa distância), Algar e Sercomtel (hoje Ligga Telecom). Em todos os casos o dilema do governo é: o que fazer em 2025, quando acabam os contratos de concessão atual, e o que colocar no lugar. Mas com certeza, telefonia fixa é um serviço irrelevante como serviço público, pouco atrativo do ponto de vista comercial e oneroso caso o Estado tenha que operá-lo.
O que fica evidente é que os desafios setoriais a serem enfrentados pelo terceiro governo Lula a partir de 2023 diferem, em muito, daqueles enfrentados nas demais gestões petistas. Ainda há heranças e espólios daquela época, mas os tempos são outros, com um mercado bem diferente, desafios completamente novos e políticas que se consolidaram nos últimos seis anos bastante diferentes do que se tinha. É com isso que o novo governo precisará lidar.
Pra quem acha que finalmente nos livraríamos das malditas cotas de programação na tv paga: pode esquecer. Se já estava ruim, agora é que vai piorar ainda mais