Um regulador para além da desinformação

Sede da Anatel em Brasília com logotipo do lançamento do 5G. Foto: Anatel

Goste-se ou não da Anatel, ela é a única agência que, nesse momento, já está bastante inserida no contexto e tem capacidade estrutural de ser a reguladora para os muitos desafios que se colocam ao ambiente digital. Falamos dos múltiplos desafios, e não apenas da questão da desinformação, que é relevante, mas é um pedaço do problema.

Basta passar o olho no organograma do governo que ficará claro que não existe nada nem perto da agência de telecomunicações para a função, nem um órgão que esteja tão perto do ambiente da Internet. Na verdade, até existe: a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), mas por uma infelicidade conjuntural, a ANPD nasceu anêmica, quase como um departamento da presidência da República, sem a estrutura que merecia pela sua relevância institucional, e só no ano passado ganhou o status de agência. Ela está, aos poucos, se estruturando, mas em um caminho dentro da burocracia pública que a Anatel começou a trilhar 20 anos antes.

O outro ente cogitado para a tarefa, o Comitê Gestor da Internet, é um excelente exemplo de um órgão paraestatal multissetorial, que funcionou bem nos últimos anos na formulação de princípios, estudos e pesquisas, com algumas funções executivas pontuais. Seu principal atributo é o multissetorialismo. Mas para se tornar uma agência com papeis de fiscalização e execução, teria que ser reconstruído do zero, da sua base legal à sua representação multissetorial. Faria sentido, por exemplo, empresas participarem de seu conselho, por exemplo, sendo elas reguladas? E, sem as empresas, como fica o multissetorialismo? 

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Vamos falar claramente: as críticas que se faz à Anatel se devem a um vício de origem. Começou no processo de desestatização das telecomunicações em 1998, que deixou cicatrizes e críticas que acabaram se estendendo para a agência, na época liderada pelos mesmos atores que comandaram a privatização. Nos anos seguintes ao seu nascimento, a Anatel abrigou consultores e profissionais que acabaram migrando para o setor privado. Mas a partir de 2005, com o primeiro concurso, a Anatel começou a ganhar um corpo técnico próprio, inclusive absorvendo muita gente que estava na iniciativa privada mas que buscava a estabilidade do serviço público. São poucos os casos de profissionais que tenham deixado a Anatel para exercer função no setor privado nos últimos 15 anos, e certamente isso não aconteceu em proporção maior do que na Ancine e em outras agências com carreiras próprias. Também conta em favor da Anatel o fato dela ter fontes robustas para seu orçamento, originadas em fundos setoriais específicos, e praticamente  "incontingenciáveis", por decisão do TCU.

A Anatel errou inúmeras vezes na sua função como reguladora nos últimos anos, mas errou para todos os lados. Se de um lado se critica o fato de a agência ter sido relapsa por tantos anos com a questão dos bens reversíveis, por exemplo, ela também deve ser criticada por ter perdido completamente a razoabilidade na aplicação de multas, criando passivos bilionários para as empresas sem nenhuma relação com a realidade. De um lado, a Anatel é criticada pela sociedade civil por permitir os planos de dados bancados por acordos de zero rating, mas também é criticada pelas empresas reguladas por manter há anos, por cautelar, a proibição de franquias na banda larga fixa. De um lado, a Anatel permitiu processos de consolidação do mercado que podem ter limitado as opções ao consumidor, como foi o caso da Oi Móvel. De outro, a Anatel enfrenta um processo de arbitragem movido pelas mesmas empresas, que cobram mais de R$ 30 bilhões em reparações.

Se a Anatel falhou em não ter mantido as portas abertas para o diálogo com a sociedade por meio de um conselho consultivo ativo (cujo funcionamento não era de sua responsabilidade, mas poderia ter recebido a atenção), é necessário reconhecer que a agência sempre foi transparente com a imprensa: os processos são públicos como regra, as reuniões do conselho são abertas, o corpo dirigente da agência nunca se negou a falar publicamente, dar entrevistas e se expor ao contraditório quando chamada. A presença da Anatel no Congresso e em eventos públicos e privados é permanente.

As políticas

Mas antes de entrar no debate sobre o regulador, é preciso questionar o que se espera de formuladores de política e do regulador do ecossistema digital, e isso está acontecendo. Todo o debate que se coloca há anos na sociedade civil sobre conectividade significativa, por exemplo, está sendo incorporado pelo governo e pela agência nesse início da gestão Lula 3, em um movimento de inflexão importante na forma de pensar políticas públicas. Se a Anatel e o Ministério das Comunicações não tinham necessariamente o cidadão no centro das políticas, mas apenas a infraestrutura, é inegável que isso não mais poderá ser a regra. Mas as políticas de conectividade seguirão sendo desenhadas pelo ministério e executadas pela Anatel, porque é assim que está na lei.

A despeito das mudanças de governos e das escolhas de ministros, foram os servidores da agência de telecomunicações que, cedidos aos ministérios ou outras agências, mantiveram uma certa perenidade nas políticas públicas setoriais, evitando mudanças drásticas de rumo, como se viu na Cultura, por exemplo.

O ecossistema digital não se resume apenas à desinformação ou ao PL das Fake News, ainda que esse seja o tema da vez. Ecossistema digital é um emaranhado muito mais complexo de temas que envolve ainda questões competitivas, tributárias, passa pelo debate sobre um projeto industrial do Brasil para o mundo digital, pela transformação econômica e pela construção de capacidades tecnológicas, chegando até ao já necessário debate sobre Inteligência Artificial. São questões que não poderão ser decididas por uma única agência porque dependem de políticas públicas de diferentes órgãos do Executivo e do Congresso, obviamente. Mas que quando entrarem em fase de execução dependerão de análises econômicas, estudos de impacto, capacidade de fiscalização e enforcement, formulação de normas e interação diária com diferentes atores do setor público, da sociedade civil e da iniciativa privada.

O governo poderia estruturar uma agência para o mundo digital do zero, mas como fazer isso com as limitações que o Estado tem hoje? Vai nascer anêmica como a ANPD? Vai passar na frente das inúmeras demandas de pessoal na Esplanada? Vai contar com servidores de outros órgão? Quantos? Possível até é, mas parece pouco viável.

O problema de fundo são as políticas públicas que serão elaboradas, não a agência que vai regular a Internet. A agência precisa ser um reflexo de um projeto maior. A Lei das Fake News é um dos debates, talvez o mais prioritário para o governo Lula mas, como dissemos, o ecossistema digital traz outros desafios igualmente complexos e que não podem, mais uma vez, serem negligenciados pelo governo da vez.

Esses desafios já estão há anos sendo discutidos pela Anatel, desde o tempo em que se chamava isso tudo de "regulação da convergência". Em 2003, primeiro ano de Lula como presidente, por exemplo, foi a Anatel quem propôs um debate sobre um serviço público e universal de acesso à Internet, na época chamado de Serviços de Comunicações Digitais. Não vingou, mas não por falha da agência, e sim porque o Executivo não levou a ideia adiante e o Legislativo não se mexeu para alterar as leis necessárias.

O termo "convergência", que durante tantos anos pautou debates na Anatel, está em desuso, mas traz em sua origem uma ideia importante: a de que múltiplas redes, diferentes serviços e conteúdos fazem parte de um mesmo ambiente digital, com implicações sociais e econômicas. Essa realidade não é nova e faz parte do setor de comunicações há anos, e é isso que volta a ser discutido agora, com a diferença que as empresas de Internet, outrora focadas apenas em fazer o bem, como dizia o slogan de uma delas, hoje são vistas como vilãs.

Não se pode mais olhar a agência de telecomunicações com olhos de 25 anos atrás, até porque as telecomunicações não são mais o que eram em 1998. É preciso entender que a agência é outra, assim como o ambiente tecnológico e econômico. Com boas políticas públicas, a Anatel (com ajustes) está algumas casas na frente nesse debate. Se os preconceitos forem deixados de lado, ela pode ser um instrumento valioso.

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