O setor de telecom e a Segurança Pública

Sede do Ministério da Justiça em Brasília Foto: Agência Brasil

Nesta terça, dia 19, o Ministério da Justiça anunciou o programa Celular Seguro, que visa integrar bases de dados de operadoras móveis, bancos e secretarias de segurança em uma tentativa de evitar que aparelhos de celular roubados possam ser revendidos ou sejam utilizados em fraudes. É uma resposta do governo aos inúmeros problemas de segurança pública do Brasil, entre os quais está a onda de furtos e roubos de celular.

O lado bom da iniciativa do governo é buscar na tecnologia uma forma de combate à criminalidade. As redes de telecomunicações e a conectividade são fortes aliadas sem dúvida, e o uso coordenado de informações é positivo. O lado ruim é que se isso não se tornar uma política perene, estruturada, com proatividade do Poder Público, corre o risco de se tornar apenas uma medida midiática. E, pior, passa a ser uma mera terceirização para as operadoras de uma responsabilidade do Estado, que é garantir a segurança do cidadão.

O bloqueio de celulares roubados é mais complexo do que parece. Apenas o bloqueio por meio do IMEI (uma espécie de número de identificação  do celular) não basta, como já evidenciaram medidas anteriores, como SIGA, que era justamente o bloqueio de celulares não homologados. Primeiro porque o celular continua sendo utilizado pela rede WiFi. Depois, porque esse número pode ser alterado com alguma facilidade por golpistas e quadrilhas especializadas. Para ser efetivo, segundo os especialistas, o bloqueio de IMEI precisaria ser combinado com uma segunda camada de bloqueio, por meio sistemas operacionais dos dispositivos, mas isso dependeria não apenas da colaboração das teles, mas também das empresas de Internet e dos fabricantes de equipamentos.

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Mas o combate mais efetivo é, sem dúvida, na frente da demanda: se não houver mercado para celulares roubados, o roubo diminui. Para isso, só tem um caminho: reduzir o custo dos celulares e peças vendidos regularmente. O benefício seria não apenas para a segurança pública, já que desestimularia não apenas o roubo, mas também o contrabando, que segundo a Abinee disparou em 2023, com a conivências dos grandes marketplaces digitais, que se recusam a participar de medidas conjuntas de combate a esse tipo de crime. Além do combate a um crime, o que é sempre positivo, e do aumento da arrecadação com a inibição do contrabando, o maior benefício de uma política de barateamento dos handsets regularmente comercializados no Brasil seria a própria inclusão digital, já que os smartphones são, hoje, disparado, a principal forma de acesso à Internet da população.

Roubos de cabos

O fato de o setor de telecomunicações ter sido chamado a colaborar com uma política de segurança é uma boa ocasião para lembrar ao governo das inúmeras questões de segurança que afetam o setor, e que mereceriam por parte das autoridades alguma reciprocidade de atenção: roubos de cabos e equipamentos; vandalismo de redes; pirataria de sinais de TV; fraudes… Vamos aos exemplos.

Há anos o setor denuncia o problema crescente de roubos de cabos de cobre. É um problema seríssimo, que coloca a infraestrutura, trabalhadores que acessam as redes e os próximos serviços em risco. Dados reunidos pela Conexis Brasil Digital revelam que foram roubados e furtados 2,89 mil km de cabos de telecomunicações em todo o Brasil durante o primeiro semestre de 2023. O número corresponde a um aumento de 23,5% em relação ao primeiro semestre do ano passado. O volume de cabos roubados e furtados no primeiro semestre deste ano aumentou ainda 21,4% em relação ao segundo semestre de 2022, quando foram roubados 2,38 mil km. A Oi estima que já tenha perdido algo em torno de 15% da sua rede com furtos e cabos.

São inúmeros os casos de redes de telecomunicações em comunidades carentes "sequestradas" por milícias e facções criminosas que controlam essas áreas, colocando trabalhadores em risco e comprometendo os serviços. Nesta segunda, 18, mais um caso: a Claro e a Vivo tiveram uma torre depenada em São Gonçalo/RJ, com todos os equipamentos, inclusive para a estrutura física da torre, roubados, com um funcionário feito refém sob a mira de uma arma. É mais um de centenas de casos que se acumulam há anos e que acontecem quase diariamente nas redes de telecom.

Precarização e vandalismo

Fora esses casos, boa parte da infraestrutura de redes no Brasil é precária, construída a partir da rápida expansão do mercado de fibra no Brasil a partir de 2014 sem profissionais e empresas qualificadas, como denunciou inúmeras vezes a Feninfra. No caos que se tornaram os postes brasileiros, não são raros os relatos de empresas que, para prejudicar concorrentes, simplesmente danificam a infraestrutura de outra operadora. Sem falar de acidentes que causam danos a todos os operadores.

Até hoje, contudo, não existe nenhuma política que exija, no mínimo, contratos regulares de uso de postes para funcionamento das pequenas operadoras de telecomunicações, certificação dos profissionais que são autorizados a subir nos postes para dar manutenção nas redes, sem falar da responsabilização das empresas de energia para manterem os postes que elas alugam em ordem.

Pirataria

Outro caso crítico de segurança que afeta o setor de telecomunicações é a pirataria de conteúdos de TV por assinatura. Foram anos em que as caixas piratas (TV boxes) foram comercializadas livremente no Brasil, por meio de sites e marketplaces, contribuindo para a rápida erosão de base de um serviço altamente regulado, que é a TV paga tradicional.

O combate à pirataria se restringia a apreensões pontuais de cargas contrabandeadas. A Anatel finalmente passou a adotar, em 2023, uma estratégia de combate inteligente a esse problema, atuando em coordenação com as operadoras para o bloqueio dos endereços IPs pelos quais os equipamentos clandestinos funcionam. Se a estratégia ainda não acabou com a pirataria, mostra resultados promissores e pelo menos desestimula o uso de caixas clandestinas, pois torna o serviço instável e imprevisível.

Esta estratégia pode ganhar um importante aliado: o combate a sites e aplicativos que distribuem conteúdos de maneira ilegal. Para isso, a Anatel precisa atuar em parceria com a Ancine (agência que regula o setor audiovisual), para que sejam indicados com precisão aqueles serviços que estão infringindo conteúdos com direitos autorais protegidos. A previsão legal para que a Ancine possa exercer esse papel, reforçando o que está estabelecido na legislação desde a sua criação, está no PL 3.696/2023, que aguarda a sanção presidencial. Mas por mais efetiva que possa ser essa estratégia de usar a tecnologia para bloquear a pirataria, como as ações da Anatel parecem estar demonstrando, há uma surpreendente divergência dentro do governo sobre o tema.

O Ministério da Cultura, por exemplo, está preocupado que tal medida possa limitar o acesso da população ao conteúdo, e provavelmente indicará ao presidente Lula o veto a essa previsão legal para a Ancine trazida no PL 3.696. É uma dúvida que sequer deveria existir: acesso a conteúdos pirateados não é uma política lícita de ampliação do acesso audiovisual, até porque não existe nenhum produtor de conteúdo, artista ou trabalhador da indústria audiovisual que se beneficie de ter seus conteúdos roubados para ser exibido em uma TV box contrabandeada.

Fraudes

Outro problema crônico de segurança que aflige o setor de telecomunicações é o cometimento de fraudes, como centrais telefônicas clandestinas, emissão de boletos falsos, sequestros de contas de Whatsapp… Note-se que na maior parte desses casos o setor de telecomunicações pouco, ou nada, pode fazer, e em muitos casos é vítima tanto quando o consumidor final. No caso do sequestro de contas de Whatsapp, por exemplo, a responsabilidade é do próprio aplicativo, que permite a mudança de aparelhos sem a verificação. As redes das operadoras podem ser aliadas quando recursos como a verificação em duas etapas é ativado, mas o combate passa pelo engajamento das empresas de Internet. 

Idem nas fraudes por boleto ou pix falsos: os mecanismos de proteção precisam ser estabelecidos na camada do sistema de pagamentos, mas não são raros os casos em que o nome das operadoras de telecomunicações é usado para o cometimento dos golpes. O Poder Público faz bem se agir coordenando os diferentes setores em busca de solução, mas não pode achar que só as operadoras de telecom têm dever de resolver o problema. Recentemente, a Anatel "recomendou" às operadoras que recadastrassem todos os usuários de número 0800. O recadastramento é uma medida saudável, mas é preciso cuidado para não atribuir a uma empresa de telecomunicações que provê o serviço 0800 a culpa pelo uso indevido do serviço. É preciso lembrar que a própria legislação estabelece que as operadoras de telecomunicações não podem sonegar recursos de rede aos prestadores de Serviços de Valor Adicionado. 

A conclusão de todo esse arrazoado é: o setor de telecomunicações é certamente parte das soluções necessárias para o combate aos problemas de segurança pública que afligem o Brasil. Mas é também vítima, e não causa, e isso merece atenção do Poder Público. 

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