Lula e a promessa de acesso digno à Internet

Alunos utilizando computadores em escola pública

O presidente eleito Lula, apresentando as promessas de campanha, disse publicamente o seguinte, em entrevista ao Flow Podcast, em 18 de outubro deste ano: que pretende "revisar a lei de banda larga para extinguir o limite do consumo de dados e melhorar a velocidade da conexão".

Flávia Lefèvre, Advogada especializada em telecomunicações e direitos digitais

O olhar de Lula foi preciso ao identificar que, entre os maiores problemas que a sociedade brasileira enfrenta hoje para exercer de forma efetiva e ampla o direito à comunicação, à informação e à liberdade de expressão, bem como para utilizar mais de 1.500 serviços públicos, que só se acessam online, estão a insuficiência de infraestrutura de telecomunicações que dá suporte ao serviço de conexão a Internet, que nos trouxe ao atual cenário. Essas deficiências caíram como bombas durante o período de isolamento por conta da COVID-19, aflorando a perversidade da ausência de políticas públicas capazes de atender a demanda reprimida por acesso a  Internet e de dar suporte às vulnerabilidades dos cidadãos de baixa renda.

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O acesso desigual e precário a Internet

Hoje, como nos mostram as pesquisas mais recentes do CETIC.br, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, parte significativa dos brasileiros não têm acesso a Internet – são 25% da população ou 36 milhões de não usuários, e a grande maioria dos usuários pagam caro para ter um acesso precário, exclusivo por dispositivos móveis e pela rede móvel, com limites baixíssimos de dados contratados por franquias mensais – são mais de 80 milhões de brasileiros, de acordo com os dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com violações incontestáveis ao direito à neutralidade da rede e ao princípio da continuidade do serviço.

Desses planos que predominam no modo de contratação de acesso a Internet no Brasil, decorrem desigualdades graves entre ricos e pobres, injustificáveis diante das garantias constitucionais e legais existentes, que estabelecem o caráter universal das infraestruturas de telecomunicações e do acesso ao serviço de conexão a Internet.

Sendo assim e considerando a transição dos governos em fase de diagnósticos setoriais em curso, é fundamental que erros do passado sejam reconhecidos para que, nesta nova oportunidade que os eleitores ofereceram ao Presidente eleito, trajetórias sejam corrigidas, como inclusive Lula tem admitido publicamente.

O caráter universal dos serviços de telecomunicações e de acesso a Internet

O principal erro, como tem sido apontado há anos pela sociedade civil organizada em torno da Campanha Banda Larga é um Direito Seu! e hoje pela Coalizão Direitos na Rede, está a resistência por sucessivos governos, inclusive dos do Partido dos Trabalhadores, de estenderem o regime público e universal tanto para a contratação e financiamento de novas infraestruturas de telecomunicações, quanto para regular a contratação de serviços de interesse coletivo e essenciais.

Foi essa resistência, incompreensível frente às ferramentas que a Lei Geral de Telecomunicações conferiu ao Poder Executivo Federal, para estender por decreto o regime público às redes de transporte e acesso, assim como aos serviços essenciais, que nos impediu de utilizar o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) desde 2001 para promover a inclusão digital.

Vem se perpetrando desde então uma das maiores injustiças sociais: dezenas de milhões de consumidores de baixa renda pagando tributos altíssimos por mais de 21 anos sobre contas caras – no total são 42% da fatura, por serviços caros, limitados e de qualidade precária, com violação do Marco Civil da Internet e do Código do Consumidor, sem ter a contrapartida correspondente ao recolhimento ao FUST, para o qual contribuíram à duras penas.

Nessa linha, na tarefa de fechar um diagnóstico que possa orientar as políticas a serem adotadas a partir de agora, é obrigatório que se reconheça o enorme erro que se deu com a aprovação da Lei 13.879/2019, que acirrou as mazelas decorrentes da privatização, propiciando a reversão de bilhões de patrimônio público para as empresas transnacionais privadas, que hoje dominam os mercados de telecomunicações no Brasil.

A privatização da privatização e injustiça social

Esta lei promoveu a privatização da privatização, com constitucionalidade duvidosa, sob o pretexto de pacificar as incertezas que pairam sobre como se dará o fim das concessões previsto para dezembro de 2025. Entretanto, o grau de insegurança e conflitos a respeito dos aspectos econômicos envolvendo os acervos patrimoniais relativos os contratos permanecem e se revelam por disputas no Poder Judiciário, no Tribunal de Contas da União e em procedimentos arbitrais instaurados contra a Anatel pelas concessionárias da telefonia fixa, que pretendem receber indenizações de mais de $ 36 bilhões por alegados prejuízos.

Estamos falando de disputas sobre mais de R$ 100 bilhões que correspondem a bens reversíveis – redes de transporte, acesso, backhaul e última milha e seus respectivos milhares de quilômetros de dutos implantados por todo o país, equipamentos e mais de 650 imóveis, que integram o acervo de bens das concessões públicas, cujos valores, de acordo com a lei, deveriam reverter para o interesse público e inclusão digital.

Além disso, é inevitável que o diagnóstico que está em curso pelas mãos das equipes de transição reconheça que foi o descompromisso dos órgãos competentes com o caráter universal tanto da infraestrutura quanto do serviço de conexão a Internet, como está expresso e inequívoco na Constituição Federal e no MCI respectivamente, que nos trouxe à atual situação de insuficiência profunda de infraestrutura e sua distribuição injusta e gritantemente desigual, desatendendo não só áreas remotas e isoladas, mas também  as periferias dos grandes centros, onde se concentram a maior parte da população.

E que se reconheça também o desrespeito pelos Poderes Públicos competentes, como é o caso da Agência Nacional de Telecomunicações e da Secretaria de Defesa do Consumidor,   ao admitirem que o modelo predominante de contratação de acesso a Internet no Brasil se dê com base na escassez injustificável de infraestrutura, depois de 24 anos de privatização do Sistema Telebrás, com planos com franquias baixíssimas –  a média é de 3GB por mês, e que, depois do esgotamento dos dados contratados, haja bloqueio a Internet, permitindo-se apenas o tráfego dos dados relativos a aplicações específicas, no caso do Facebook e do WhatsApp, com efeitos deletérios também para a competição.

O desequilíbrio entre ganhos e contrapartidas atribuídas às vencedoras no leilão do 5G

Esperamos que o diagnóstico reconheça, ainda, os lesivos erros cometidos pela Anatel no desenho da modelagem que orientou os leilões das frequências para a exploração do 5G, como apontou em relatório robusto a Secretaria de Infraestrutura e Comunicações do Tribunal de Contas da União, subvalorizando as quatro frequências licitadas e, pior, impondo contrapartidas desproporcionais aos benefícios auferidos pelas empresas vencedoras do leilão.

Resumindo, se de fato Lula pretende cumprir sua promessa de campanha para democratizar o acesso a Internet e de por fim ao fosso digital, o rigor na apuração dos valores  correspondentes às concessões é imperativo, como tem sido apontado pelo TCU, por se tratar de recursos públicos essenciais para que se evite a malversação de patrimônio público, especialmente num cenário de crise econômica global, e se respeite o equilíbrio econômico-financeiro das concessões, em benefício da universalização e democratização do acesso às redes e serviços de telecomunicações, assim como ao serviço de conexão a Internet, de modo que o Ministério das Comunicações e a Anatel atuem para a soberania nacional sobre as redes e para a inclusão digital.

*Sobre a autora – Flávia Lefèvre é advogada especializada em telecomunicações e direitos digitais e integrante da DIRACOM – Direito à Comunicação e Democracia. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.

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