Europa vê parceria estratégica com Brasil na agenda digital, mas não quer impor modelos

Embaixador da União Europeia no Brasil, Ignacio Ybanez

O Brasil e a União Europeia seguem caminhos parecidos na agenda digital, e boa parte dos referenciais europeus têm balizado as discussões no Brasil. Mas o embaixador da União Europeia no Brasil, Ignacio Ybanez, vê a oportunidade para mais cooperação entre os dois polos nessa discussão, Ele também destaca que a agenda do governo Lula, focada nas questões ambientais, na agenda digital e na inclusão social, está bastante alinhada com os interesses europeus e com as perspectivas de investimentos das empresas europeias no Brasil. Nessa entrevista exclusiva ao Podcast TELETIME ele ainda aponta as preocupações ainda existentes em relação à agenda de cibersegurança e vê uma aproximação importante na agenda de proteção de dados. Confira um resumo com os principais pontos da entrevista, que pode ser ouvida no player abaixo ou pelas plataformas de podcast.

TELETIME – O Brasil tem na Europa um modelo para a agenda digital. Como você acredita que o relacionamento, especialmente nessa questão da agenda, pode ser fomentada?

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Ignacio YbanezSomos parceiros estratégicos. Na América do Sul apenas México e obviamente o Brasil têm esse status. E isso se espalha para todas as áreas, inclusive na agenda digital. Do ponto de vista das relações entre os governos e mais ainda no setor privado, com a presença das empresas europeias. Eu diria que desde 2007, que foi o ano que foi lançada essa parceria a relação está se desenvolvendo de forma intensa. Com o novo governo, depois da eleição do presidente Lula vimos que muitas das prioridades do governo são próximas das prioridades europeias: a aposta no Green Deal, na transformação das economias e formas de viver aos desafios das mudanças climáticas; a segunda que é a prioridade digital, da transformação digital; e a terceira que é a transformação social. São três transformações que estão entre as nossas prioridades e também são do governo brasileiro, e que podem nos ajudar a desenvolver essa relação tão estratégica entre os dois.

Como ampliar essas relações? Com troca de experiências? Troca de referenciais?

No âmbito digital temos essa aposta muito importante. Em julho teremos o encontro da cúpula União Europeia CELAC, que agrupa os países da América Latina e Caribe e por isso decidimos lançar essa aliança digital. (A aliança) foi lançada na Colômbia. Nossa ideia era lançar com o Brasil, pois faria muito mais sentido por ser o nosso grande parceiros digital, mas era o início do governo Lula, que estava em fase de instalação. A aliança é um esforço que fizemos com outros países do mundo como Índia, Japão, países asiáticos, e queremos fazer com América Latina e Caribe, que tem quatro grandes componentes: cooperação política e regulatória, confrontando os desafios que serão trazidos; a segunda é o tema da conectividade digital; negócios e inovação; e observação da Terra. Brasil é um grande mercado no âmbito digital, mas também uma grande democracia, e os grandes desafios que estamos enfrentando na União Europeia são também um desafio no Brasil. Por isso queremos essa cooperação. Fizemos um grande esforço na Europa para o Digital Act e com os Mercados Digitais e queremos fazer um trabalho conjunto com as autoridades brasileiras se o exemplo europeu pode ser acompanhado no Brasil. Na segunda (iniciativa) de conectividade digital estamos muito bem representados pelo BELLA (programa do cabo submarino entre Europa e Brasil), em que houve um esforço conjunto, o Brasil colocou dinheiro, acreditou nesse projeto de conexão para chegar diretamente na Europa, e queremos ir mais a frente. Vemos o esforço do governo para que a população em lugares remotos possam ter conectividade.

O Brasil está fazendo um grande esforço para conectar com fibra a Região Amazônica, e existe inclusive a possibilidade de conectar essa rede com o cabo submarino, ligando o Pacífico…

Essa é uma das ideias originais, e quanto mais você desenvolve um projeto de cooperação internacional como o BELLA pode continuar a estender (essa rede).

Fora o fato de que esse projeto está em linha com a agenda verde…

E também com a transformação social, com a inclusão social que é tão necessária. Se no passado se falava em campanhas de alfabetização para aprender a ler e escrever, agora é a alfabetização digital. É o elemento verde, digital e social. Outra parte importante para a nossa cooperação é a de negócios e inovação. Se colocarmos o exemplo particular da União Europeia e Brasil, temos as grandes empresas aqui e investimentos. Não apenas em grande volume, mas para as empresas europeias a operação no Brasil é das mais importantes no âmbito global. Não apenas no setor digital, mas também no setor bancário e em muitos setores. Para TIM, Ericsson, Telefónica, Nokia… para todas estas empresas a operação Brasil é uma parte muito relevante. E, por fim, temos a parte de observação da Terra, porque temos os programas, como o Galileu, em que podemos cooperar. E o mais importante: temos os valores em que baseamos cada uma das sociedades. O Brasil e a União Europeia podem ter relações com todos no mundo. Mas quando os sistemas de valores são compartilhados a relação é diferente, e isso existe com o Brasil e com a América Latina em geral. Os valores democráticos, que vão além do fato de termos eleições, mas como um elemento central. Os cidadãos, por exemplo, não querem que seus dados sejam de conhecimento público ou utilizados por governos. 

E onde entra a agenda digital nesse contexto?

Fizemos esse esforço de lançar a Aliança Digital, que não é só a quantidade, com investimento de 50 milhões de euros, que é uma quantidade respeitável, mas o impulso para vários setores relevantes. A ideia é ter uma participação forte de todos os países e a nossa vontade e esforço é que o Brasil seja o grande promotor, e influenciador dessa aliança.  A vice-presidente Margrethe Vestager veio ao Brasil por dois dias, em uma agenda bastante exigente, mas que cobriu todas as áreas. Tivemos uma reunião na Fiesp organizada com o setor privado em geral, explicando a Aliança Digital e normas europeias. Também esteve com o governador de São Paulo e em Brasília esteve contatos políticos importantes. Com o vice-presidente Alckmin foi feito o lançamento de um mapa de investimentos em cooperação com a Apex, sobre investimentos europeus no Brasil e dos brasileiros na Europa. São 263 bilhões de euros de estoque de investimentos. O Brasil continua a ser um dos grandes parceiros em investimentos na América Latina. É verdade que no âmbito comercial o fluxo é maior com a China, que superou a União Europeia, mas nosso comércio é muito mais variado e diversificado, e tem os investimentos. Gosto de insistir muito: existe uma tendência de pensar a relação com outras economias como comércio apenas, mas tem a parte de investimentos que é fundamental. Não se coloca seu próprio dinheiro em outro país se não pensa que (a relação) vai ter futuro.

E a decisão de investir passa pelo risco, estabilidade política, econômica… 

 Quando você investe você coloca dinheiro agora para os negócios começarem a dar resultado em alguns anos. Tenho ouvido o presidente Lula quando fala do programa de industrialização do Brasil, e eu gosto dessa mensagem. Esse programa está em curso, existem empresas europeias que decidiram investir aqui, e algumas são centenárias. A nossa vice-presidente também teve uma conversa com o ministro das Comunicações sobre o âmbito regulatório, sobre os esforços do governo de inclusão digital e sobre os projetos na Amazônia. Também tivemos reunião com a ministra de Ciência e Tecnologia, com quem retomei contato e consegui passar as mensagens da vice-presidente Vestager. E também fizemos um esforço de aproximação para a regulamentação. Na Europa fizemos o esforço do Digital Act e Mercados Digitais que buscam um equilíbrio complicado, com a preservação da competição, por isso nossa legislação é muito forte nesse sentido, e que se adapta a um mercado que está sempre mudando. Inicialmente era sobre produtos, sobre fixação de preços, e hoje está no âmbito digital.

Vocês tiveram uma conversa com o deputado Orlando Silva, que tem centrado esforços na questão da desinformação, e há a questão da competição e das assimetrias de mercado. São duas agendas?

Em países democráticos como o Brasil e os países da União Europeia, são no fundo questões que estão muito ligadas. São diferentes, precisam ser tratadas de duas maneiras, mas que se relacionam. Na Europa, quando fizemos a regulamentação dos serviços digitais, fizemos esforços ao mesmo tempo em que tratamos da legislação de serviços digitais e onde tocamos de temas como fake news e responsabilidade da plataforma, ao mesmo tempo fizemos a questão da competição. Não pode fazer uma sim e outra não, e essa foi a mensagem que a nossa vice-presidente deu na reunião com o deputado Orlando Silva e outras pessoas. Explicamos o processo de elaboração das nossas regras, as nossas ambições, e ao final lembramos que mesmo que a Europa legisle sobre isso, essa é uma questão global e é importante que outros países não copiem o nosso sistema, mas reflitam conosco para onde estão indo. As nossas experiências podem ser úteis para o Brasil mas também o contrário. Esse diálogo tem que se manter, disse a nossa vice-presidente. São debates que passam pelo Legislativo, pelo governo, pelas empresas e pela sociedade civil.

Me parece que as empresas europeias estão especialmente preocupadas com esse ecossistema digital. Por exemplo, o presidente da Telefónica (José Alvarez-Pallete) sempre fala sobre esse tema, e mais recentemente surgiu o tema da inteligência artificial.

Sem dúvida, existem questões dos grandes desafios futuros, como a Inteligência Artificial, e algumas que são do futuro e também do presente, como a cibersegurança. No modelo que estamos a desenvolver isso é uma opção diria que existencial. Os esforços que estamos fazendo internamente, com o Cyber Security Act, e cooperações internacionais, como foi com o Brasil, são para desenvolvermos juntos. Nós valorizamos muito a competição, temos reserva quando o poder público toma decisões para excluir alguém do mercado. Isso deve ser apenas o limite. Mas é verdade que há situações, como cibersegurança, em que é necessário legislar para evitar. Tivemos que conversar muito com os Estados membros, que têm competências próprias, e fizemos um trabalho que foi o 5G Toolbox, com elementos comuns que assegurem que o sistema de cada um seja seguro, por que estamos todos conectados. É nessa parte que queremos intercambiar experiências. Nas conversas ficamos com a impressão de que temos os mesmos interesses. O elemento diferencial da nossa cooperação é que são países com valores similares.

A questão do 5G Toolbox veio durante o debate do edital de 5G. Hoje as operações já estão avançadas. Vocês avaliam que nessa questão o Brasil conseguiu chegar a um modelo equilibrado ou ficou faltando alguma coisa?

Achamos que sim, eram temas abertos, o Brasil trouxe a discussão sobre a rede privada do governo, e nesse aspecto foi bem, e para nós essa é uma questão que está aberta. Temos falados com o setor privado europeu sobre essa questão, pois é algo importante. Temos grande presença das empresas, operadoras e fornecedores. Temos ainda uma dúvida sobre como isso vai ser feito. Para nós sempre tem que analisar o conceito de segurança e as opções que se faz pode ter um efeito. Como somos um mundo interconectado, os efeitos de segurança sobre você se interrelacionar com seu vizinho aumentam. Para nós não é tão importante quem vai ser, quem vai levar, mas se o sistema que vai ser desenhado e o sistema de cada empresa assegura ou não a segurança. Esse foi o grande desafio na Europa. O que falamos é que a segurança de cada um é importante, assim como a segurança do outro e os efeitos que poderão ter na relação entre países. Essa é a questão das redes privativas.

Ao contrário dos EUA, a Europa parece muito mais preocupada com questões principiológicas nessa questão de cibersegurança, não?

Isso tema ver com o nosso modelo de União, com princípios gerais. O fato de não termos proibição para entrada não significa interesse menor pela segurança. A segurança é essencial, e se temos a percepção de que um ator no serviço ou sistema é aí que vamos evitar (esse ator). Mas concordamos com os norte-americanos que a preocupação de segurança é importante para todos, e isso é importante para o Brasil. Como resolvemos, é verdade que é diferente.

Vejo o governo brasileiro muito mais preocupado hoje com questões de privacidade e direitos digitais, e nesse sentido o modelo europeu foi um exemplo, com o GDPR. Isso amplia a possibilidade de cooperação?

Quando você estabelece os marcos, não tem que copiar um ou outro, mas estabelecer  sistemas. O fato  de vocês terem uma regulamentação  sobre proteção de dados faz com que isso (a cooperação) seja muito mais possível. Se vocês tivessem optado por um sistema totalmente diferente do nosso e não tivéssemos confiança sobre o tratamento de dados, a cooperação não teria acontecido. Por isso é importante discutir antes as regulamentações dos diferentes países e ver onde podem se conectar. (NR: A União Europeia e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, a ANPD, estão negociando um acordo de cooperação para o reconhecimento mútuo das legislações de proteção de dados do Brasil e Europa)

E agora existe a discussão sobre quem vai regular o ecossistema da Internet. 

É verdade que fizemos uma regulação que pensamos que pode servir de inspiração, mas não temos a solução para todas as questões. Sozinhos no mundo não podemos solucionar muitos desafios. Nossa presidente diz que países como o Brasil vão orientar e dar muita força à discussão.

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