As leis de TICs, PD&I e a indústria de transformação

Roberto Pinto Martins ex-Secretário de Política de Informática e Secretário de Telecomunicações

O expressivo crescimento da indústria de transformação de Tecnologia da Informação e Comunicação – TICs no País, alinhando uma tributação mais racional e investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), o equilíbrio da produção na Zona Franca de Manaus com o restante do País, o desenvolvimento de projetos e o domínio de tecnologias no estado da arte e da técnica por instituições públicas e privadas voltadas à PD&I e as denominadas ICTs, são alguns indicadores dos notáveis efeitos positivos advindos das Leis de TIC – Leis Nº 8.248 e Nº 8.387, ambas de 1991.

Para seguir avançando na Economia Digital devemos pensar em novos desafios, o que implica novas abordagens e ajustes. Para entendermos os novos caminhos, vale conhecer um pouco da história desses mecanismos.

Em 1980 nosso PIB alcançou a marca de 4,3% do PIB mundial; em 2022 encolheu para 2,3%. Boa parte desta redução pode ser creditada à expressiva redução da participação da indústria de transformação; os números convergem para seu ápice em 1985 – 27% e a partir daí declinaram para menos da metade em 2021 – 11%, atingindo seu nível mais baixo desde 1947, quando iniciamos a expansão do processo de industrialização pós Segunda Guerra Mundial.

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A década de 80 marca o ponto da virada ou do declínio do desempenho econômico virtuoso brasileiro, sucedendo o intitulado "milagre econômico", e sofreu as consequências do primeiro choque do petróleo em 1973. Esse período foi marcado também por dificuldades com relação às reservas externas e alta da inflação. A década se encerra com a maior inflação anual já registrada no País, superando a marca dos 1.700%; já nos três primeiros meses de 1990 a inflação já ultrapassava a marca dos 400%.

Com uma indústria tecnologicamente defasada e embalado pelo denominado Consenso de Washington, o Brasil iniciou o governo Collor com um amplo processo de abertura da economia, eliminando várias restrições não tarifárias.

Uma das medidas baixadas já no dia da posse do novo governo foi a Portaria MEFP Nº 56, de 15.03.1990, que revogou o famigerado Anexo C do Comunicado CACEX Nº 204/1988, com seus mais de 1.200 produtos cuja importação era proibida; também eliminou a exigência de anuência prévia de órgãos federais para importação.

Foi também extinta a necessidade de consulta às entidades de classes empresariais para importação de bens novos e aplicada uma redução gradual do imposto de importação, de forma a ter sua média reduzida em 50% em cinco anos.

A exigência de anuência prévia foi mantida como instrumento de controle de importações para os bens de tecnologia da informação e comunicação (TIC) até 29 de outubro de 1992, respeitando dispositivo contido na Lei Nº 7.232, de 1984.

Foi nesse contexto que o País aprovou duas novas legislações associando a capacitação e a competitividade para o setor de TICs em um mesmo instrumento: a Lei Nº 8.387, de 1991, aplicada à Zona Franca de Manaus (ZFM), e a Lei Nº 8.248, de 1991, aplicada ao restante do País (Lei Nacional).

Basicamente, estas duas legislações foram construídas segundo uma modelagem em que as empresas incentivadas assumiriam o compromisso de investir pelo menos 5% (cinco por cento) de seu faturamento em atividades de PD&I. Para o cálculo desse faturamento foi considerada a comercialização de todos os bens produzidos com determinado valor agregado, denominado processo produtivo básico (PPB). Como benefício auferido esses produtos estavam isentos do pagamento do IPI.

Ao longo do tempo estas legislações vêm sendo adaptadas; a legislação nacional, por exemplo, passou a exigir investimento de 4% em PD&I reduzindo o benefício para 70% de redução do IPI. Recentemente essa redução foi substituída por crédito tributário.

Assim, criou-se uma desoneração visando reduzir o preço ao consumidor final, com o compromisso de agregação local de valor e investimento em PD&I. Estas duas legislações são pioneiras em associar incentivos a investimentos em PD&I.

Um elemento importante da abordagem política adotada foi a estruturação dessas duas legislações de modo a resultar no equilíbrio para a produção na ZFM e nas demais regiões do País, o que tem sido razoavelmente alcançado.

Desde a vigência dessas legislações constata-se um certo equilíbrio do ponto de vista de alocação de investimentos e produção entre a ZFM e o restante do País para os bens de TICs. Neste sentido, qualquer alteração em uma dessas legislações deve considerar necessariamente o impacto sobre a outra.

Considerando a recente aprovação da Lei Nº 14.788, de 2023, que ratifica o prazo previsto na EC 83 para os benefícios fiscais aplicados à ZFM e às áreas da Amazônia Ocidental (AMOC) até 2073, dentre eles  os previstos na Lei Nº 8.387, de 1991, é urgente que se dê tratamento semelhante aos benefícios previstos na Lei Nº 8.248, de 1991, sob pena de se alterar o equilíbrio estre estas duas legislações.

Com faturamento em bens incentivados que montam a cerca de 125 bilhões de reais em 2022 (R$50 bilhões na ZFM e R$75 bilhões no restante do País), o setor tem experimentado crescimento bem acima da média da indústria brasileira; de 2016 a 2022 o faturamento nominal cresceu 125%. O destaque é a produção na ZFM que cresceu 260%, enquanto no restante do País foi de 80%.

Um ponto que chama a atenção é a concentração da produção em três produtos: aparelhos telefônicos celulares, microcomputadores e placas de circuito impresso montada. Esses 3 produtos representam cerca de 65% do referido faturamento. Apesar dos expressivos volumes, esses produtos são direcionados basicamente ao mercado interno.

As obrigações de investimentos em PD&I, combinando as duas legislações ultrapassou, em 2022, o expressivo valor de 5 bilhões de reais, sendo 2,2 bilhões na ZFM e 2,8 bilhões no restante no País. Apesar deste significativo investimento, menos de 10% do faturamento advindo da Lei Nº 8.248, de 1991, é decorrente da comercialização de produtos com tecnologia nacional, nos ternos da Portaria Nº 950, de 2006, do MCTI. De fato, a grande maioria dos investimentos tem sido fortemente direcionada para o desenvolvimento de sistemas e software, com participação bem menor de atividades relativas a componentes e produtos (hardware).

Os significativos investimentos em PD&I combinado com a estrutura industrial levou o Estado do Amazonas a liderar o Índice IFEC de Inovação dos Estados no indicador Intensidade Tecnológica, seguido pelo Estado de São Paulo. Esta é outra evidência dos benefícios propiciados pelos investimentos em PD&I advindos da Lei de Informática aplicada à ZFM.

Considerando a existência de estudos que apontam a classe de bens de TIC com grande potencial para promover a inserção internacional da indústria local, dado que a competição com base na inovação pode mitigar ou mesmo neutralizar desvantagens concernentes a custos, essa é uma rota sobre a qual os gestores públicos deveriam envidar esforços para melhor explorar as competências locais que têm sido construídas.

Este arcabouço legal permitiu não apenas a atração de grandes empresas internacionais, mas também propiciou o surgimento de diversas Instituições Científica, Tecnológica e de Inovação – ICTs, nos termos da Lei de Inovação, que hoje desempenham papel relevante nos investimentos em PD&I.

Apesar das limitações de informações, estima-se que hoje mais de 25 mil empregados de nível superior atuam diretamente em atividades relacionadas aos investimentos em PD&I decorrentes das duas leis; desses, cerca de 11 mil na Amazônia Ocidental e Estado do Amapá, especialmente na Zona Franca de Manaus.

O setor eletroeletrônico na ZFM empregou 35 mil funcionários em 2022 e o setor de TICs representou naquele ano 60% desse setor; tais números sugerem que a produção de bens de TIC empregue cerca de 21 mil pessoas. Neste sentido, o número de empregos diretos de nível superior envolvidos em PD&I na ZFM é mais da metade daqueles gerados pela indústria de TICs local, com a diferença de que tem remuneração média bem superior.

A dimensão dos investimentos em PD&I na ZFM vem ganhando relevância ano após ano; em 2022 já representava 140% da arrecadação do Estado com ICMS recolhido de todo o Polo Industrial e 640% do subsetor eletroeletrônico.

A recente recomposição do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT, principal instrumento de financiamento público à ciência, tecnologia e inovação do País, fará com que esse fundo alcance 10 bilhões de reais em 2023; deste valor 5 bilhões são destinados a investimentos não reembolsáveis.

Para se ter uma ideia da dimensão dos investimentos em PD&I induzidos pelas Leis Nº 8.248/1991 e Nº 8.387/1991, o valor destinado ao FNDCT não reembolsável é equivalente ao realizado pelas empresas com base nas duas leis de TICs.

Os resultados alcançados por estes investimentos realizados pelas empresas de TICs ainda necessitam ser mais bem captados, especialmente pelos agentes responsáveis pela administração dessas duas legislações: MCTI, MDIC e SUFRAMA. As informações atualmente disponíveis são limitadas e defasadas no tempo.

Recentemente, houve uma alteração significativa no modelo de fixação dos PPB, alterando de etapas fixas no processo de produção para uma forma flexível por pontuação. Entretanto, o desenvolvimento local, com agregação de engenharia nacional, ainda não é devidamente captado e incentivado como uma etapa de agregação de valor nos PPBs; este é um outro tema que poderia ser inserido entre as preocupações dos gestores públicos que tratam do assunto.

Embora a legislação aplicada à ZFM vise o desenvolvimento regional, seria bem mais produtivo se os instrumentos infralegais aplicados fossem alinhados para que as duas legislações convergissem nos conceitos e aplicações. Esse alinhamento, inclusive, já ocorre na fixação dos PPB, mas está distante no caso dos investimentos em PD&I, como bem ilustra a publicação da Portaria ME/SUFRAMA Nº 9.835, de 2022.

Completados mais de 30 anos destas duas leis originais, aperfeiçoadas ao longo do tempo por outras leis e instrumentos infralegais, temos hoje uma indústria com produtos competitivos e atualizados disponíveis no mercado local, uma infraestrutura de PD&I e recursos humanos capazes de apresentar soluções com uso intensivo de conhecimento no estado da arte e da técnica aplicado aos mais diversos setores, contribuindo para o enfrentamento dos nossos desafios econômicos e sociais.

Continua a nos desafiar a inserção de bens e serviços de TIC brasileiros no mercado internacional, a integração de nossa cadeia de insumos de forma a tornar competitiva a produção local com maior agregação de valor, a inserção de tecnologia local nos produtos aqui produzidos e a formação de recursos humanos notadamente nesses setores portadores de tecnologia do futuro.

Contribuiria enormemente para superar esses desafios, pelo menos em parte, uma melhor alocação dos recursos de PD&I decorrentes das leis de TICs, de forma a apresentar resultados mais expressivos tendo em vista os vultuosos recursos aplicados anualmente (R$5 bilhões em 2022), valor equivalente a todo o FNDCT não reembolsável em 2023.

*- Sobre o Autor: Roberto Pinto Martins foi Secretário de Política de Informática – MCTI e Secretário de Telecomunicações e Secretário de Radiodifusão – MCom (As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente representam o ponto de vista da TELETIME)

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