"Não dá para abrir mão dos governos na governança da Internet", afirma Bechara

As revelações de Edward Snowden sobre as atividades de espionagem norte-americana aceleraram a discussão de uma nova governança da Internet e mostraram para o mundo que não dá para abrir mão da participação dos governos nacionais na governança da rede. Essa é a opinião do conselheiro da Anatel, Marcelo Bechara, e membro do Comitê Gestor da Internet (CGI).

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Bechara defende maior participação dos governos, tendo em vista que as revelações de Snowden provaram que a cyberguerra é uma realidade, mas descarta o modelo multilateral, simbolizado pela ONU, que tem a participação exclusiva de governos.

"Quando você fala do modelo ONU, ele tem alguns vícios porque foi construído na lógica do século XX. Precisamos construir o modelo do século XXI, porque a sociedade civil não tem voz na ONU e quando se fala em Internet o modelo precisa ser multissetorial", analisa ele.

Segundo Bechara, nos anos 90 a Internet era vista como um ambiente livre e democrático sem a mão forte e controladora dos governos. Essa Internet, que ele chama de "romântica", morre após o episódio Snowden. "Fica caracterizado que se precisa criar um ambiente com participação dos Estados, mas fora do modelo ONU", afirma.

ICANN

Embora a NCTIA (agência vinculada ao departamento de comércio dos EUA que controla a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers – ICANN) tenha divulgado que está disposta a analisar propostas de uma nova estrutura para a ICANN, Bechara lê com cuidado a "benevolência" dos norte-americanos. A ICANN é uma ONG americana, com sede na Califórnia, e que mantém um vínculo com o departamento de comércio dos EUA. Será que os norte-americanos estariam dispostos a tornar a entidade um organismo verdadeiramente multissetorial?

Para Bechara, a sinalização de que estão abertos a discutir propostas é uma resposta que precisa ser dada tanto à comunidade internacional quanto internamente. O quão abertos eles estão para aceitar um modelo que rompa com a hegemonia dos EUA ainda é uma incógnita. "O modelo multistakeholder deles vai defender o interesse deles, na linha do 'vamos mexer para que continue tudo igual'. A gente tem que saber como eles são quando entra num jogo desses", afirma.

Garantir que os interesses dos diversos segmentos da sociedade civil e dos governos nacionais sejam de fato representado num organismo como a ICANN é para Bechara, "extremamente complexo". "A saída é uma cooperação global multissetorial e isso é muito difícil de se montar. A sede física vai ser onde? Se for na Suíça vão dizer que é ONU, se for nos EUA vão dizer que não mudou nada", afirma ele.

CGI

O modelo brasileiro, que é tido como um dos mais avançados do mundo, e ao que se sabe é a base da proposta brasileira, seria um caminho. Para Bechara, entretanto, não há modelo perfeito, inclusive o do CGI. Ele relembra a trajetória do órgão, criado por uma portaria interministerial em 1995, quando a Internet ainda engatinhava. A portaria designa o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) como o coordenador do órgão. A primeira falha apontada por Bechara é uma visão excessivamente acadêmica. "A coordenação ficou nas mãos do MCTI, mas ele é mais voltado para a academia, é de uma linha mais acadêmica do que comercial", analisa.

Depois, em 2003, o CGI sofre uma atualização através de decreto presidencial que dá a ele o caráter multistakeholder de hoje, com participação do governo e da sociedade civil. Acontece que a Internet de hoje é diferente da de 2003 e, na visão do conselheiro que é membro do órgão, ele precisa de uma nova atualização. "Precisamos ter um CGI que mantenha a sua função acadêmica, mas ele tem que ter um olhar do mercado. Será que a sociedade civil na sua complexidade está representada? O modelo é falho, mas não na sua principiologia multistakeholder", afirma.

Bechara critica o processo eleitoral do membros da sociedade civil. Ele afirma que tem dúvida se o processo eleitoral atinge o objetivo para o qual ele foi criado. Bechara se refere à baixa rotatividade dos membros da sociedade civil, o que fica patente quando se analisa os "novos" membros eleitos divulgados na última quinta, 27.

Em relação aos membros do governo, ele sente falta de um representante do Ministério da Cultura, da Educação, da Justiça e também das Relações Exteriores, que participa do colegiado apenas como convidado. "Ali é só heavy user".

Proposta brasileira

Bechara discorda daqueles que criticam a postura do Brasil em não ter divulgado até agora a proposta que levará ao NetMundial. "A política é feita por sinais e o Brasil já deu todos os sinais", diz ele, lembrando do discurso da presidente Dilma Rousseff na ONU e da aprovação do Marco Civil da Internet na Câmara dos Deputados.

O conselheiro não se ressente do fato de a Anatel ter sido excluída dos debates internos sobre a proposta brasileira. Aliás, para ele, a Anatel não foi excluída, tendo em vista que o presidente do evento é o ministro das Comunicações, pasta à qual a Anatel está vinculada. Além disso, a volta da Anatel para o texto do MCTI mostra que não tem como a Anatel ficar excluída desse debate. Mas concorda que a agência poderia ter tido uma participação mais ativa. "Talvez a Anatel não esteja tão presente quanto deveria estar", admite ele.

A expectativa do conselheiro em relação ao evento é a melhor possível. Inclusive a sinalização dos EUA de que estão dispostos a discutir propostas sobre o futuro da ICANN mostra que eles não vão ignorar o evento, o que diminui as chances de que os países enviem representantes do segundo escalão, esvaziando o evento. "O NetMundial tem potencial de ser a Eco92. Tem potencial para criar a estrutura de governança do século XXI para a principal ferramenta do século XXI", afirma ele.

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