Na 3ª temporada da série Westworld, produzida pela HBO, uma das protagonistas parece sempre encontrar um carro disponível nas horas mais convenientes. Não é táxi, nem Uber. É um veículo autônomo, que atende a comando de voz, tem uma larga porta de entrada e um lounge onde sentam passageiros alheios ao redor, geralmente concentrados em smartphones.
A concepção aparentemente futurista é bem mais palpável do que o cidadão médio imagina, até mesmo àqueles que acompanham um pouco a indústria automobilística. No entanto, a ficção científica não explica que, para a cena descrita acima ser totalmente verossímil, ainda temos um problema de infraestrutura: a conectividade.
A 5ª geração da internet ou 5G será um passo gigantesco rumo ao futuro. Como já sabemos, o 5G oferece uma taxa de transmissão de dados muito superior às atuais disponíveis pelo 4G, sendo assim mais confiável para lidar com grandes quantidades de dados.
A chegada do 5G tornará viável o uso intensivo de inteligência artificial, beneficiando muitos setores, inclusive e especialmente o automobilístico. Em termos globais, os investimentos na implantação e massificação dessas redes consumirá cerca de US$ 170 bilhões até 2024, segundo a consultoria Analysis Mason.
A China assumiu a pole position nesta implantação (o que explica, em parte, a reação dos americanos contra as tecnologias chinesas). Mais de 70% dos aparelhos 5G vendidos no mundo são chineses e a cidade mais conectada até agora é Shenzen.
Se a França, que concluiu seu leilão de bandas 5G em outubro, é a retardatária dos grandes países europeus, o Brasil nem sequer marcou o leilão em meio a pressões comerciais dos EUA contra a China. Mesmo assim, a Ericsson estima que o investimento em 5G no país até 2025 será de US$ 9,2 bi.
Tech é pop, Tech é tudo
Enquanto o 5G não chega pra valer, as indústrias avançam na criação das aplicações. Se você me acompanha há algum tempo, deve lembrar de um alerta que já fiz. A tecnologia deixou de ser um meio de suporte para as empresas e migrou para o centro dos negócios. As indústrias cada vez mais dependem do digital para ofertar produtos e serviços. Tudo vira software, inclusive o seu carro.
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Estamos acelerando o passo para nos tornarmos apenas passageiros nos carros. Tanto as montadoras tradicionais como empresas de tecnologia, no caso o Google e a Tesla, não pararam nem mesmo na pandemia os testes para automatizar, por meio de machine learning, as tarefas do motorista.
Em termos de automação, os carros são classificados em 5 níveis (quadro acima), sendo que diversos modelos comerciais já atingiram o nível 2 e 3, em que o carro realiza a maioria das tarefas, mas requer intervenção humana.
Sabe o controle de velocidade ou o "piloto automático" em que o carro acelera sozinho? São exemplos rudimentares de todo potencial.
No mercado brasileiro, Fiat/Chrysler saíram na frente e anunciaram a chegada dos carros inteligentes no início do próximo ano. Como ainda não leiloamos as bandas de frequência 5G, nem escolhemos o fornecedor do equipamento, os carros usarão um chip 4G, mas já terão capacidade para alguns serviços de conveniência restritos hoje ao smartphone. Imagine localizar no mapa de navegação o fast-food mais próximo, fazer o pedido, pagar remotamente e passar no drive-thru só para retirar? Mas tirar a mão da direção, só na hora de comer.
No exterior, os modelos em teste mais avançados atingiram o nível 4. Mas o objetivo da indústria é a automação total, que dispensa toda e qualquer atenção humana, como o "táxi" em Westworld.
Para isso acontecer precisamos de três coisas: sensores, softwares e conectividade.
Os sensores dão ao carro a capacidade de "enxergar". Ainda não se chegou à conclusão sobre quantos tipos de sensores serão necessários. Há duas abordagens principais: a da Waymo (Google) e a da Tesla.
A Waymo confia basicamente em três sensores de luz, ou Lidars, o que permite trabalhar de dia ou de noite. O problema são os dias de tempo ruim em que a visibilidade é baixa. Além disso, há câmeras espalhadas pelos lados, frente e traseira e que, ao contrário dos Lidars, diferencia as cores, o que torna possível interpretar os semáforos, veículos de emergência e outros sinais de atenção. Como toda câmera, a resolução piora com menos luz.
O sistema da Waymo e o sistema de radar com luz, o Lidar / Fonte: Waymo
O radar é responsável pela medição da distância do veículo de quaisquer objetos e, ao contrário dos outros dois sensores, funciona em qualquer condição climática, embora com menor grau de detalhe. Outros sensores, como GPS e microfones, adicionam informações.
O vídeo mostra uma viagem sem motorista em um carro da Waymo
A Waymo começou a testar em Phoenix (Arizona) táxis sem motorista (e sem passageiro também, caso algo dê errado), enquanto a GM vai tirar dos seus carros de teste em São Francisco os técnicos que ficam de prontidão. Além da GM, a maioria dos fabricantes, incluindo o Uber, utiliza essa abordagem da Waymo.
Como era de se esperar, Elon Musk, fundador e CEO da Tesla, discorda. Para ele, os Lidars são caros demais e câmeras e software desempenham as mesmas funções por uma fração do custo. Um sistema de Lidar custa US$ 7 mil.
O "piloto automático" da Tesla utiliza oito câmeras que fornecem visão de 360 graus em torno do veículo, 12 sensores ultrassônicos para complementar o trabalho de detectar objetos muito próximos do carro (útil para o estacionamento e carros mudando de faixa) e um radar frontal com ondas de rádio para avaliar a distância e velocidade de objetos em qualquer condição climática.
Veja o carro da Tesla em ação
Todas essas estruturas detectam dados, mas sem um "cérebro" para interpretá-los eles seriam completamente inúteis para o objetivo pretendido. Os softwares embarcados realizam essa função por meio de inteligência artificial.
De modo geral, segundo a Waymo, o software é encarregado de três funções básicas:
1. Percepção: classificar os objetos, distinguindo animais, de pedestres, carros, ciclistas, sinais de trânsito e semáforos; estimando distância, velocidade e direção.
2. Previsão: o que os obstáculos localizados vão fazer em seguida, por exemplo, um ciclista sinalizando, um pedestre com um dos pés na via de rolamento ou se um carro parece que vai mudar de faixa.
3. Reação: baseado na percepção e previsão de comportamento, o software decide se o carro deve reduzir a velocidade, parar ou seguir e por qual trajetória.
A Waymo já rodou de forma simulada 15 bilhões de milhas e 10 milhões de milhas no mundo real com sua frota de teste. A necessidade de intervenção humana é baixíssima. Supondo que um carro autônomo estivesse cruzando os EUA num percurso de 1000 milhas, o sistema iria requerer intervenção humana menos de uma vez no percurso.
A abordagem da Tesla leva uma grande vantagem. Tem muito mais milhagem de teste no mundo real porque o software que estão desenvolvendo é embarcado em seus modelos já comercializados.
Ainda que parte das funções não esteja habilitada, os donos dos carros fazem os testes de graça fornecendo a Musk dados de bilhões de milhas rodadas em ruas e estradas reais. Seria um abuso?
Pense assim: o modelo adotado pelas montadoras tradicionais espremia as margens de custo tirando toda e qualquer funcionalidade do carro. No Brasil, até a alça do teto no lado do passageiro da frente poderia ser retirada nos modelos mais básicos.
A Tesla, em seu material promocional, promete aos proprietários de seus carros que eles poderão ter no futuro carros automáticos de nível 4 ou 5.
Para funcionar corretamente no nível 5 de automação, esses carros precisam ter uma comunicação batizada pelos americanos com mais uma sigla (eles adoram!): V2X, do carro para tudo – estruturas inteligentes das cidades, outros carros e pessoas.
Aí você pensa, mas eu gosto de dirigir! Para que vão me tirar esse prazer? Aliás, já começou. Em uma das atualizações recentes de software da Tesla, os motoristas perderam a capacidade de ultrapassar o limite de velocidade. O sistema lê a sinalização de trânsito e se ajusta automaticamente a ele.
Esse é um exemplo da vantagem dos carros autônomos. Segundo a Organização Mundial de Saúde, em 2018, acidentes automobilísticos foram a principal causa mortis de jovens até 29 anos. Em 94% dos acidentes, que provocaram 1,35 milhão de mortes, a causa foi erro humano. O tuíte abaixo mostra a diferença entre um carro analógico e o digital.
Original video, authorisation from the owner. Essential, no one could predict the accident but the radar did and acted by emergency braking. pic.twitter.com/70MySRiHGR— Hans Noordsij (@HansNoordsij) December 27, 2016
O piloto automático da Tesla em um teste de frenagem de emergência em uma situação real
A questão ética
Os testes, de maneira geral, ainda são inconclusivos quanto a ser 100% seguro. O dilema ético está nas decisões que o software vai tomar na hora de reagir aos dados de que dispõe. Se tiver que optar entre proteger o carro e seus ocupantes e um pedestre, ciclista ou animal, de quem é a prioridade?
Oliver Cameron, CEO de outra fabricante, a Voyage, ainda vê um caminho relativamente longo pela frente. Ele acredita que humanos sóbrios e atentos ainda reagem melhor a eventos inesperados. O que fazer diante de um bando de perus cruzando a pista? Um humano buzina, dá uma acelerada em falso para espantar os pássaros com o barulho do motor. Os computadores só sabem parar.
Imagina-se que os preços dos seguros de carro, baseados em perfis genéricos do principal motorista, vão cair, com o fator humano fora da equação. Também pode ajudar o fato de que o carro pode ser menos vulnerável a roubos. Uma proprietária de um modelo 3 da Tesla na Austrália conseguiu recentemente recuperar o carro porque começou a mexer no app e controlar o carro a distância, desacelerando, tocando a buzina e abaixando os vidros. Os ladrões, assustados, abandonaram o veículo e ainda foram gravados pela câmera interna.
Mas há também a questão legal. No caso de haver um acidente com um carro autônomo sem o volante, quem deveria ser responsabilizado? O proprietário? Um passageiro eventual? A montadora? O dono do algoritmo que alimenta o piloto automático? O pedestre?
De volta para o futuro
Com toda a cautela e bilhões de milhas de teste, uma hora a tecnologia vai estar madura. Quais serão os efeitos? Veja esse quadro, que interessante!
Vai perder também sentido ser dono de um carro. A Canoo anunciou em janeiro e a Tesla em setembro um programa de assinatura de carros. Por uma quantia mensal, o usuário tem acesso ao carro com seguro e manutenção e pode cancelar quando quiser. Para que ser proprietário? O design interior do Canoo, aliás, lembra o carro de Westworld.
Um efeito benéfico adicional será a inviabilidade da suposta "indústria da multa". Afinal, se os carros interpretam e respeitam os sinais de trânsito, a arrecadação dos municípios com essa fonte vai despencar.
Mas há efeitos colaterais menos óbvios: se um caminhoneiro ou um motorista qualquer viajando a noite não precisa se manter acordado, para que tomar energético?
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Outro efeito positivo que leva a um efeito negativo: há estudos prevendo que a redução dos acidentes por causa dos carros autônomos provoque uma depressão ainda maior na oferta de órgãos para transplante (uma fila de espera já angustiante). E isso pode alimentar as máfias de tráfico de órgãos.
Quando os carros apareceram no final do século 19 e início do 20, eram chamados de carruagens sem cavalos. Hoje nós nomeamos essa nova tecnologia de carros autônomos. Para as novas gerações, que não vão precisar tirar carteira de habilitação, esse termo pode soar tão estranho quanto.
- * Sobre o autor: Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet. As posições manifestadas pelo Autor não necessariamente representam as posições desta publicação.