IA: Será o fim das estrelas de cinema e TV?

Foto: Pexels

Estamos diante de um plot twist – termo que os roteiristas usam para indicar uma virada no rumo de uma história e, neste caso, a da produção audiovisual.

A popularização da Inteligência Artificial generativa, seu uso na criação de imagens e sons traz consequências para os orçamentos de produtos de ficção: filmes, novelas, programas de humor e séries.

A IA está em desenvolvimento desde a década de 1970 e seu mais famoso tipo, a generativa, usa aprendizado de máquinas para ensinar algoritmos a produzirem conteúdo a partir de informações que já existem e estão guardadas em um determinado banco de dados.

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O grande salto quântico da IA generativa aconteceu em novembro de 2022, com o lançamento do ChatGPT, que oferece respostas textuais. A aplicação gratuita teve adoção em massa do consumidor comum, o que alavancou seu primo-irmão Dall-E, lançado seis meses antes, que cria imagens a partir de descrições textuais.

Há cinco anos, quase ninguém apostava que a computação avançada influiria na sétima arte, na TV e na produção musical. Porém, desde que o Chat GPT ganhou o noticiário, há um debate frenético sobre o uso de IA generativa em âmbito corporativo, político e social, por conta das aplicações e desdobramentos da tecnologia.

A desconfiança generalizada se instalou depois que uma carta aberta foi publicada pelo Future of Life Institute e assinada por mais de 100 entidades. Ela pedia uma pausa de seis meses no desenvolvimento de IAs que superem o ChatGPT-4 e reúne nomes de Elon Musk a Yuval Noah Harari.

No último dia 3 de maio, começou por aqui a tramitação do que pode vir a ser o marco legal da IA no Brasil. Trata-se do projeto de Lei 2338/23, apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que visa responsabilizar empresas que desenvolvem e aplicam a tecnologia, enquanto protege as pessoas dos possíveis riscos.

Que riscos seriam estes?

Recentemente, um dos maiores especialistas em internet no Brasil, Ronaldo Lemos, publicou um artigo anunciando que "Nossos clones digitais estão chegando". Ali o advogado e professor alerta sobre potenciais problemas de autenticação biométrica, uma vez que há casos documentados de vozes geradas por IA que confundiram sistemas de segurança biométricos de bancos, por exemplo.

Se a IA consegue gerar sons, imagens e textos que confundem outras máquinas, como ficará a percepção da realidade por nós, pobres mortais?

Eu me propus a refletir a fundo sobre o assunto sob a perspectiva da criação e distribuição de conteúdo e de como a indústria audiovisual será impactada.

Pouco espaço para cachês fabulosos

Como disse no meu artigo, "Profit is the New Black", as plataformas de streaming precisam se tornar lucrativas e por isso frearam o gasto desenfreado com produção. Em simultâneo, os canais tradicionais, que também alimentam o streaming com conteúdo, refazem as contas de licenciamento e comissões, e deixam os catálogos mais caros.

Dado o cenário, a previsão é de que em 2023 o crescimento geral dos gastos com conteúdo original caia de 6%, número visto no ano passado, para apenas 2% em 2023, de acordo com o grupo de pesquisa Ampere Analysis.

A notícia de que, em março, Silvio de Abreu desligou-se da área de dramaturgia da HBO Max, após um ano e meio pode corroborar mais de uma teoria – aperto financeiro, inadaptação de linguagem e até mesmo de que "acabou a mamata". Como ex-chefão da Globo, o autor de novelas como Guerra dos Sexos (1983 e 2012) e Rainha da Sucata (1990) não esquentou lugar na casa nova. Na emissora do Jardim Botânico, foram 43 anos!

Na minha opinião, a possível quebra do modelo de produções ancoradas por nomes de peso no mercado tem muito a ver com a onda de autenticidade dos criadores e influenciadores – que já faturam tanto ou mais que "estrelas" fixas de emissoras, por exemplo – e da maneira como "pessoas comuns" foram bem sucedidas ao se apropriarem da linguagem audiovisual na internet.

No filme "Cidade de Deus" (2002), de Fernando Meirelles, é inegável que o casting de desconhecidos foi um diferencial. O humorista Paulo Vieira, em entrevista a Marcelo Tas, no Provoca, em julho de 2021 vai além: "O problema da televisão é o mesmo do povo brasileiro – o ódio a si mesmo. Acho que a televisão, em muitos momentos, parece odiar o povo. Ela não quer ser televisão aberta. Boa parte [do conteúdo] da televisão aberta feita para o pobre, é feita por gente que não gosta nem de televisão aberta e nem de pobre! Por isso que o pobre ama o humor da internet. Porque é feito por alguém como ele, numa casa parecida com a dele. Com memes com a mãe dele e que se parece com ele. Durante muito tempo a gente acreditou nessa mentira de que o povo não queria se ver. A internet derrubou isso".

O pior erro estratégico que uma empresa de entretenimento pode fazer é pensar e agir como se "ter uma plataforma de streaming resolve tudo". Basta olhar para Hollywood, que possui diversas plataformas e, ainda assim, tem dificuldade enorme de fazer seus estúdios recuperarem a lucratividade de outrora. Estamos diante de uma disrupção digital do modelo de receitas-custos.

Bem vindo ao entretenimento do século 21

Como já disse e escrevi outras vezes, a irracionalidade exuberante do setor OTT, onde imperava a lógica "mais usuários = mais receita" desabou. O modelo de receitas estabelecido nos anos 1980 no mercado brasileiro, sob a visão da mídia era: manter os investimentos em conteúdo apenas com publicidade e merchandising.

As plataformas de streaming subverteram a ordem geral ao incluir a assinatura na fórmula matemática. Porém, hoje, baterá cabeça a plataforma que não entender que o novo cálculo que se impõe é: publicidade + merchandising + assinatura + transacional + micropagamentos. Se a indústria de entretenimento não tiver pessoas que entendem profundamente disto… adeus!

Do lado dos criadores uma readaptação para além da remuneração está por vir – o uso de IA generativa em audiovisual será tendência? A tecnologia pode roubar espaço dos atores e roteiristas mais bem pagos?

Vamos por partes… primeiro, a questão da remuneração.

Os roteiristas de TV americanos enfrentam vários problemas existenciais na era do streaming, incluindo: o rápido declínio dos salários; a falta de valor mínimo para roteiristas de variedades e de comédia que trabalham para serviços de streaming; o surgimento de "mini-salas de roteiro" que oferecem menos vagas de emprego; a redução dos cheques residuais – pagamentos feitos quando os programas eram vendidos a outras redes para serem retransmitidos; e temporadas mais curtas com menos episódios e até cancelamento de produtos. Isso levou a uma crescente sensação de instabilidade e incerteza no setor, com o resultado líquido sendo uma queda média de 23% nos salários na última década.

Por isso, após 15 anos, o WGA (Writers Guild of America, sindicato que representa roteiristas de TV e cinema) apoiou uma greve que se iniciou em 1º de maio. Os profissionais argumentam que suas propostas custariam aos grandes estúdios apenas cerca de 2% dos lucros operacionais. Apesar dos lucros crescentes dos estúdios de cinema nos últimos 20 anos, os escritores sentem que não estão sendo compensados de forma justa ou incluídos no sucesso financeiro da indústria.

A situação coloca em cheque o paradigma de se reconhecer o papel dos criadores nas indústrias de televisão e cinema para dar vida aos projetos com criatividade versus a ideia de que a IA generativa pode vir a substituir esses profissionais.

No estágio atual, nenhuma IA cria conteúdo inédito. Ainda. Tudo indica que esse desenvolvimento vai avançar de forma exponencial. A previsão é de um crescimento anual na casa dos 23% nos próximos sete anos. Só entre março e abril de 2023 cerca de 1 mil ferramentas foram lançadas.

Vi outro dia uma ferramenta chamada RunwayML que edita vídeos com uma facilidade assustadora e na sua geração 2 promete criar filmes a partir de comandos de texto, com o sugestivo slogan: "Sem luzes, sem câmera, só ação". Isso significa que você consegue pegar uma foto de uma pessoa qualquer e transformar a foto num vídeo!

O grande Quentin Tarantino já disse: "O trabalho do diretor de cinema não é criar uma visão. É ter uma visão e saber como expressá-la para pessoas talentosas que você vai contratar".

Possivelmente, os primeiros impactados pela IA generativa sejam exatamente as plataformas de vídeos curtos e a publicidade – que por sinal, já usa IA para direcionar anúncios sob medida para cada um de nós. Mas o temor é o anúncio gerado por IA ser convincente o suficiente para nos manipular. Isso dependerá da educação das pessoas em como usar a tecnologia construtivamente daqui pra frente.

No ritmo que as coisas vão, logo os próximos Tarantinos poderão fazer filmes em casa sem conhecer atores, equipe técnica ou mesmo compositores de trilha sonora. Vai estar tudo à distância de alguns "prompts de texto".

Modelo de Receitas impacta no investimento em conteúdo

Um segundo ponto é algo que eu digo desde 2004 – o conteúdo digital passaria 100% pelas operadoras de telecom que teriam participação nesses negócios de conteúdo. Riram de mim na época. Continuo a acreditar que isso será um imbróglio a ser contabilizado nas planilhas de custos das produções audiovisuais.

Em 16 de maio saiu o relatório TIC Domicílios 2022 do Comitê Gestor da Internet no Brasil, que indica que a maior parte dos usuários de Internet brasileiros (62%) acessa a rede exclusivamente pelo celular, realidade de mais de 92 milhões de indivíduos.

Por aqui, até o momento, o modelo de receitas sob a visão das telecoms foi cobrar: pela quantidade de minutos/voz usados nos tempos do 1G; voz e mais envio de SMS no 2G; uso de dados durante o 3G e 4G.

De acordo com a Anatel, hoje, o Brasil conta com mais de 88 mil Estações Rádio Base (antenas de celular), das quais apenas cerca de 8 mil com 5G. Isso pode postergar por aqui maiores conflitos entre a indústria do entretenimento e as teles.

Eu creio que as operadoras irão criar planos por dispositivos, algo como plano para 5 dispositivos – smart TV, smartphone, tablet, desktop ou notebook, que para elas será, aliás, muito mais rentável porque em geral você usa um ou dois no máximo.

Lá fora, já há indícios de mudança. A Omdia reporta a cada trimestre uma análise muito detalhada sobre como as teles precificam os serviços 5G. Durante o primeiro trimestre deste ano, o relatório mostra um movimento mais forte das empresas para oferecer um modelo de preços diferenciado, em comparação com o plano de camada de dados puro tradicional.

Além disso, mais duas operadoras de telecomunicações passaram a oferecer pacotes relacionados a metaversos aproveitando plataformas de realidade virtual. Para a maioria dos outros gamers, seus preços de diferenciação estavam focados no fornecimento de pacotes de aplicativos avançados, incluindo jogos em nuvem, streaming de vídeo e serviços de música. A oferta de níveis de velocidade permaneceu estável em comparação com o ano passado.

O recente lançamento do Apple One, uma oferta ao consumidor que inclui Apple Music, Apple TV+, Apple Arcade, iCloud, Apple News e Apple Fitness, está criando oportunidades para as operadoras de telecomunicações fazerem acordos de distribuição de exclusividade e reduzirem a rotatividade de clientes de alto valor. EE (operadora de rede móvel inglesa) e Verizon Media lançaram planos dedicados Apple One com sucesso promissor em vendas e crescimento de receita por usuário (ARPU). Ao mesmo tempo, a Amazon anda em estágios iniciais de negociação com operadoras dos EUA para oferecer planos de celular a US$ 10 ou até gratuitos para os assinantes Prime. O que nos espera daqui cinco ou dez anos? Em 2030, nos venderão 6G a velocidade da luz ou planos com ou sem acesso a óculos de realidade mista no melhor estilo Apple Vision Pro?

Nos encontraremos no próximo debate para conversar sobre o declínio do modelo da TV aberta no Brasil (e no mundo) e todos os desafios tecnológicos, culturais e regulatórios ainda por vir. Aliás… Reed Hastings, CEO da Netflix, disse isto primeiro e eu apenas tenho a lista de detalhes da mudança que se aproxima.

Quantos executivos em sua organização conhecem profundamente (com experiência de trabalho nestas indústrias) computação + telecom + meios de pagamento + entretenimento?

*Omarson Costa é executivo C-level e atuou na América Latina desde startups até empresas da Fortune 500 nas áreas de telecomunicações, internet, mídia, entretenimento, varejo e finanças. Ajudou a estruturar a operação da ROKU (Diretor Geral) no Brasil e atuou como Diretor de Desenvolvimento de Negócios da Netflix. Trabalhou em grandes organizações como Mastercard, Microsoft, Telefónica, Nokia e HP. Atualmente é Diretor da TNB e conselheiro de administração para empresas dos setores de telecomunicações, serviços, publicidade e educação, além de colunista para Exame, IstoÉ Dinheiro, Teletime e SBT Interior. As opiniões expressas nesse artigo não refletem necessariamente o ponto de vista da TELETIME.

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