O debate da Condecine e a próxima assimetria

Foto: Pixabay

A cada adiamento da votação do PL 2.331/2022, que trata da regulamentação e cobrança da Contribuição para o Desenvolvimento do Audiovisual (Condecine) sobre os atores que atuam no mercado de streaming, mais perto o projeto fica de deixar de fora de seu escopo uma parcela significativa de sua atividade, e também de suas receitas. Estamos falando de parte significativa das receitas geradas por conteúdos distribuídos por plataformas de streaming como Youtube, TikTok e Reels/Instagram/Facebook e similares que, com exceções, não vendem assinatura, mas que estão entre os maiores players do setor em relevância, receita e audiência.

Para se ter uma ideia, Youtube e TikTok sozinhos representaram 75% da audiência dos conteúdos não-lineares assistidos nos domicílios brasileiros em outubro. Estes conteúdos não-lineares, por sua vez, representaram 30% do total de conteúdo consumido nos dispositivos de uso doméstico. Não se pode dizer se esta audiência se traduz em receitas na mesma proporção, pois Youtube e TikTok são bancadas por publicidade e ninguém, a não ser as próprias plataformas e a Receita Federal, sabe quanto elas faturam. Mas, obviamente, nenhuma delas faz filantropia. A publicidade digital no Brasil é estimada, pelo IAB, em R$ 32 bilhões.

O fato da maior parte das receitas vir de publicidade não reduz o papel destas plataformas no mercado. Ao contrário, torna eles ainda mais relevantes, porque elas brigam diretamente com a TV aberta e se posicionam como players dominantes justamente onde Netflix, Amazon e Globoplay e os canais FAST miram, que é crescer nos planos de entrada, subsidiados pelas verbas dos anunciantes.

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Do audiovisual, para o audiovisual

O princípio básico do PL 2.331 é cobrar uma contribuição dos ganhos das plataformas de streaming para ser reinvestida em políticas públicas de fomento ao audiovisual. Ou seja, repetir a lógica que vigora desde a MP 2.228/2001 e que vale para os demais mercados audiovisuais (TV por assinatura tradicional, vídeo doméstico, publicidade, telecomunicações e radiodifusão): a exploração audiovisual paga uma contribuição para o desenvolvimento do próprio audiovisual.

Sem entrar no mérito da eficácia desse modelo, de sua adequação aos dias atuais e sobre a destinação dos recursos, a lógica do mercado é essa há décadas. Se o mercado e governo ainda não tiveram maturidade para rediscutir essa lógica (ou se acham que ela não precisa ser revista), é justo que ela seja, ao menos, isonômica e se aplique a toda a cadeia.

Esse é o princípio do debate no PL 2.331: dizer como o mercado de streaming vai pagar a Condecine. A primeira ideia, quando esse debate sobre o tema começou, ainda em 2015, era taxar as plataformas de streaming pela mesma lógica da radiodifusão ou das salas de cinema: cada título registrado na Ancine para ser exibido pagaria um valor fixo. Mas o modelo logo se tornou complicado em função dos acervos imensos das plataformas e de bibliotecas de streaming, que poderiam, ou não, ser consumidas, conforme a demanda e o interesse dos usuários. Decidiu-se aplicar uma segunda lógica: o percentual de faturamento. A proposta do PL 2.331 foi taxar as plataformas de streaming, originalmente, em 3% da receita bruta.

Ao longo da tramitação da matéria, emendas foram apresentadas para diminuir esse percentual, ou atenuar a sua incidência. Os 3% passaram a não contabilizar aquelas receitas de publicidade vendida sobre conteúdos produzidos por usuários e que não remunerassem seus produtores. E aqui cabe um parênteses para explicar um detalhe importante do funcionamento de plataformas como Youtube, TikTok e Instagram: a monetização de conteúdos. Como alguns conteúdos geram mais tráfego do que outros, e como interessa às plataformas que estes conteúdos continuem lá gerando audiência (para que elas possam vender mais publicidade), parte desses conteúdos, a partir de uma determinada quantidade de espectadores e sob determinadas condições, recebe um pagamento, uma remuneração.

Esse pagamento vem da audiência gerada (e, portanto, da publicidade vendida), da quantidade de pessoas que eventualmente assinam planos sem anúncios e que subscrevem determinados canais, das contribuições diretas de outros usuários etc. É o chamado conteúdo monetizado. Note-se que quem estabelece como funcionam estas regras de monetização é exclusivamente a plataforma, sem nenhum agente regulador. É um acordo entre privados. E quem pode ser monetizado?

Na teoria, qualquer um: desde um canal de uma criança que passa o dia a abrir pacotes de presentes, passando por oportunistas que criam conteúdos falsos para se explorar da audiência gerada pelos algorítimos até influenciadores profissionais com milhões de seguidores e com grandes estruturas de produção. Nenhum deles, aos olhos do agente regulador do audiovisual, a Ancine, se equipara a conteúdo "profissional" conforme as regras do setor audiovisual. Nenhuma destas "obras" exibidas, mesmo as monetizadas, precisa obrigatoriamente, por exemplo, tirar o Certificado de Produto Brasileiro junto à agência se não for exibida nos mercados já regulamentados (radiodifusão, cinema, TV paga, home-video, video-sob-demanda). Quem decide quem ganha e quanto é exclusivamente a plataforma (Youtube, Instagram, Tik Tik etc).

Cobrança desidratada

Nas últimas emendas ao PL 2.331/2022 em discussão na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE), a Condecine já não incidiria sobre quase nada das receitas das plataformas que funcionassem como "serviços de compartilhamento de conteúdo". Além disso, ficam de fora a tributação sobre comissões, gastos com atendimentos, infraestrutura de produção e mais uma infinidade de exceções ininteligíveis ao cidadão comum (e ao regulador). Mas, em essência, dá para antever o final da história: o grosso das receitas, que é a publicidade sobre as milhões de horas visualizadas sobre conteúdos não monetizados (que, de novo, podem ser desde uma festa familiar ou um programa altamente profissional), não se enquadraria para fins de Condecine. Não seria, portanto, taxada.

É justo? Depende. À luz de quem produziu um vídeo e nada recebeu por isso, compartilhar seu conteúdo em uma plataforma de Internet deve ser, em tese, um ato livre e gratuito. Mas e se esse produtor ganha dinheiro de outras formas, como merchandising? E se a plataforma que distribui o conteúdo consegue uma audiência expressiva e ganha com publicidade muito mais do que o custo de disponibilização daquela plataforma gratuita de distribuição? E os outros modelos de remuneração, como assinatura do canal? E o peso dessas milhões de horas de audiência na disputa pelo mercado publicitário, alterando significativamente o equilíbrio do mercado e fazendo com que todo o mercado de mídia (incluindo radiodifusão) seja afetado?

E ainda há um complicador: os modelos dinâmico de uso. A um clique, o usuário pode assinar ou deixar de assinar uma plataforma. Como exemplo, o upgrade para o plano Youtube Premium custa um clique e R$ 250 por ano. Por esse dinheiro você pode não assinar nenhum conteúdo ou canal da plataforma, e simplesmente ter o benefício de assistir a todo conteúdo da plataforma sem publicidade (inclusive aqueles gerados por usuários), ou você pode assinar quantos canais específicos quiser (que passam a ser remunerados conforme as políticas internas do YT) e ainda consumir conteúdos profissionais criados pela própria plataforma. Quem vai controlar a Condecine sobre remuneração e sobre o que foi segregado na forma de conteúdos gerados por usuários? Como o regulador poderá acompanhar, de maneira efetiva, as receitas em um modelo tão dinâmico, que depende apenas de um clique?

Mais uma assimetria

Enquanto a sociedade debate em cima de ideias simplificadas como "as plataformas de streaming vão ficar mais caras", existe uma discussão muito mais complexa no Senado em torno do PL 2.331/2022 e outros semelhantes, com a intensa atuação intensa dos grupos de pressão. A falta de coordenação e planejamento do Governo sobre o que quer e onde quer chegar, aliados à falta de informação entre os parlamentares que estão atuando na causa e aos seguidos atropelos regimentais, tornam todo o processo hermético e distorcido. O risco é fazer um lei que vai cobrir apenas alguns pontos da cadeia, deixando uma parcela muito mais relevante de fora, o que só contribuirá para ampliar as já conhecidas assimetrias regulatórias e tributárias entre os diferentes atores que atuam no mercado.

Essa assimetria já acontece hoje: as operadoras de telecomunicações, sobretudo as operadoras móveis, contribuem com 95% do valor arrecadado com a Condecine (cerca de R$ 1 bilhão ao ano) sob o argumento referendado pelo Supremo de que "as pessoas usam o celular para consumir conteúdos". Existe, portanto, referibilidade na contribuição, ou seja, ela reverte para a própria atividade. Não deixa de ser verdade: as pessoas consomem conteúdos pelo celular. Predominantemente conteúdos do Youtube, Instagramn e TikTok. E ironicamente, no momento em que se discute uma legislação para criar isonomia tributária na contribuição audiovisual, Youtube, Instagram e Tik Tok podem ficar isentos na maior parte de suas receitas. Seria justo, então, que as operadoras de telecomunicações deixassem de pagar a Condecine na proporção do tráfego gerado a estas plataformas?

Apesar de extremamente complexo, o mercado de streaming não é filantrópico. Alguém ganha dinheiro com ele. A pergunta inicial é: quem ganha, e como? A segunda pergunta é: de fato queremos que o mercado de streaming seja taxado em sua integralidade ou apenas em parte? Parece que o Senado ainda não conseguiu responder a nenhuma dessas duas questões.

1 COMENTÁRIO

  1. Tinha de debater, antes de embutir no preço desses serviços de streaming essa "contribuição", a real pertinência dela na sociedade brasileira. O YouTube veio para mostrar que quando o conteúdo é bom e/ou interessante, ele sobrevive por suas próprias pernas, seja por meio de repasse do Youtuber, seja através de merchandising no próprio material cinematográfico. Muitos da área sabem e até reconhecem isso, porém é muito forte o lobby dos apadrinhados produtores de mediocridades e de conteúdo com viés político-partidário que cobram o aumento dessa boquinha como contrapartida de seus apoios em campanhas eleitorais.

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