A neutralidade de rede e as novas dinâmicas concorrenciais dos mercados digitais

Alexandre Freire e Ricardo Campos

Em seu artigo 9º, o Marco Civil da Internet introduz o princípio da neutralidade de rede, que prevê o tratamento isonômico dos pacotes de dados que trafegam online, e estabelece que, na hipótese excepcional de discriminação ou de degradação de tráfego, o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento deverá "oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais". Trata-se de uma regra cujo objetivo é promover a igualdade e a concorrência, com foco na livre iniciativa e na defesa do consumidor, em resposta às crenças de que os operadores das infraestruturas físicas constituíam a grande ameaça nos mercados de provedores de serviços e, portanto, poderiam alavancar verticalmente seu poder de mercado por meio da diferenciação da qualidade de sinal ou dos fluxos de dados por provedor ou por tipo de conteúdo.

Até 2014, ano em que o texto foi promulgado, as preocupações com condutas discriminatórias no setor de telecomunicações, muitas vezes acompanhadas de medidas contra empresas com poder de mercado significativo, apareceram tanto na atuação da Anatel quanto na atuação do CADE. Um exemplo disso é a inclusão expressa, pela primeira vez, do conceito de poder de mercado significativo no provimento de infraestrutura de telecomunicações, por meio da Resolução nº 402/2005, atualizada e substituída em 2012 pela Resolução nº 590, e da Resolução nº 426/2005.

No mesmo sentido, o CADE, no Ato de Concentração n. 08012.005789/2008-23 já reconheceu o acesso às redes (ou seja, a posição das operadoras de telecomunicações) como barreira para o mercado de acesso à internet e o papel da regulação setorial na prevenção de condutas discriminatórias por meio de previsões específicas[1]. Já no caso da cisão da Telco (Telefônica, Assicurazioni Generali e Intesa Sanpaolo) e da aquisição da GVT pela Telefônica Brasil, destacou-se que o acesso à rede local legada da Telefônica constituía uma barreira para os mercados de STFC e SCM, pois as características de essential facility desta infraestrutura constituiriam incentivos à discriminação e à recusa de acesso[2]. Esses casos, ainda anteriores à introdução do princípio da neutralidade de rede pelo Marco Civil, já demonstram as preocupações existentes à época quanto às potenciais condutas discriminatórias por parte dos ISPs, que poderiam resultar em abuso de poder de mercado para ganhos em mercados downstream.

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Ocorre que tais preocupações não mais subsistem. No cenário da nova economia digital, a diminuição da importância do controle dos ativos físicos como fator competitivo e a centralidade do controle de dados como fator impulsionador de vantagens competitivas levaram a um deslocamento do poder de mercado, antes concentrado nos detentores da infraestrutura física, às grandes plataformas digitais. Nesse sentido, basta observar as mudanças nos rankings de maiores empresas do mercado ao longo das últimas décadas[3].

Conforme estudo publicado em 2022, no início dos anos 2000, a lista, baseada em valor de capitalização de mercado, era composta por diversas empresas de telecomunicações e fabricantes de equipamentos de telefonia (NTT Docomo, Cisco, Nippon Telegraph, Nokia e Deutsche Telekom) e apenas uma empresa de tecnologia (Microsoft). Na década seguinte, o cenário começa a se alterar, com queda relativa das telecoms e crescimento dos grupos do setor de óleo e gás e dos bancos. Por fim, em 2022, as big techs compõem quatro das cinco maiores empresas do mundo (Apple, Alphabet, Microsoft e Amazon). Somadas à Meta, essas empresas, já em 2017, possuíam uma avaliação combinada de mais de 3 trilhões de dólares, correspondendo a mais de 40% do valor total do índice Nasdaq 100[4].

Atualmente, das dez maiores empresas do mundo em capitalização de mercado, sete estão ligadas ao setor de tecnologia[5] (com inclusão Tesla e NVIDIA nesse rol), a saber[6]: 1º) Apple (USD 2,3 tri), 2º) Microsoft (USD 2,5 tri), 4º) Alphabet (USD 1,7 tri), 5º) Amazon (USD 1,5 tri), 6º) NVIDIA (USD 1,1 tri), 7º) Tesla (USD 873 bi), e 9º) Meta Platforms (USD 797 bi), e apenas três estão relacionadas a outros setores: Saudi Aramco – petróleo e gás, em 3º lugar, com capitalização de USD 2,2 tri; Berkshire Hathaway – holding, em 8º lugar, com capitalização de USD 805 bi; e Eli Lilly – farmacêutica, em 10º lugar, com capitalização de USD 565 bi. As sete empresas de tecnologia, somadas, possuem uma capitalização de mercado de USD 9,6 tri e respondem por cerca de 23% (vinte e três por cento) do total do índice SP500.

Hoje, na prática, as próprias plataformas passaram a intermediar o acesso à internet, com base em modelos de negócios baseados em dados, em uma lógica de mercado de dois lados. Isso significa que tais mercados contam com dois ou mais grupos de consumidores, relacionados em alguma medida, cujas interações são intermediadas pela plataforma que, por sua vez, exerce algum controle sobre os preços. Além disso, tais mercados são marcados por efeitos de rede, de modo que a utilidade para um determinado grupo de consumidores varia conforme o número de consumidores nos demais lados.

Essas e outras características beneficiam as empresas provedoras de conteúdo e serviços e têm sido apontadas como barreiras à entrada, visto que, ao contrário do que se imaginou nas últimas décadas, permitiram uma grande concentração de mercado. É o que foi destacado, por exemplo, pela OCDE, no Handbook on Competition Policy in the Digital Age, de 2022: "Digital markets exhibit a range of characteristics that may lead to concentration, market power, and winner-takes-most dynamics, including network effects, consumer lock-in, and economies of scale and scope, among others"[7]. Também a Comissão Europeia, no relatório Competition Policy for the Digital Era, reconhece as profundas transformações desses mercados, cada vez mais dinâmicos, e admite a necessidade de se pensar novas ferramentas de análise antitruste que sejam adequadas à atual realidade[8].

Essa nova realidade tem sido a base, por exemplo, para o movimento, impulsionado pela União Europeia, para uma regulação ex ante que busque conter os mecanismos de abuso de poder de mercado por parte desses novos atores. É o caso, por exemplo, do Digital Services Act (DSA) e do Digital Markets Act (DMA), que compõem o pacote regulatório aprovado pelo Parlamento Europeu em 2022. Especificamente no caso do DMA, objetiva-se estabelecer critérios para identificar os gatekeepers do ambiente digital que, dada sua posição entrincheirada, devem observar regras e obrigações particulares[9]. Da mesma forma, o PL n. 2.630/2020, no Brasil (também chamado de PL das Fake News) e o PL n. 2.768/2022 voltam-se à definição de medidas e responsabilidades sobretudo às big techs que, atualmente, controlam os ecossistemas digitais.

Essa nova dinâmica vem impactando não apenas políticas regulatórias, mas também a prática de defesa da concorrência, o que pode ser observado a partir de diversos casos emblemáticos que tratam de avaliar condutas anticompetitivas por parte das gigantes da tecnologia, seja por venda casada, abuso de dependência econômica, self-preferencing, dentre outros. Apenas nos últimos anos, cabe citar as condenações dos casos Google Shopping[10] e Android[11] na União Europeia, o caso Facebook/WhatsApp pela autoridade antitruste alemã[12] e, no Brasil, os casos Ifood[13] e Google Shopping[14]. No primeiro, o Tribunal do CADE celebrou um Termo de Compromisso de Cessação, no início de 2023, que impediu o Ifood de elaborar pacotes de exclusividade ou adotar medidas contratuais que pudessem induzir exclusividade com grandes redes de marcas (que tivessem no mínimo 30 restaurantes).

Tratou-se de medida para impedir o abuso de posição dominante no mercado nacional de delivery online de comida, estimulando, com isso, a competição e a entrada de novos players. No segundo caso, que terminou em decisão pelo arquivamento, buscou-se apurar se a Google teria colocado seu Google Shopping em posição privilegiada nos resultados de seu buscador, em infração à defesa da concorrência. Cabe destacar, por fim, que está em curso investigação – provocada pelo Mercado Livre – acerca de possíveis práticas anticompetitivas da Apple, que impede os aplicativos de distribuírem bens e serviços digitais de terceiros[15].

A partir do exposto, é possível observar a contraposição entre o cenário que serviu de pano de fundo para as discussões e a promulgação do Marco Civil da Internet e o panorama atual concorrencial dos mercados digitais. Naquele momento, eram centrais as preocupações com a neutralidade de rede, fundamentadas na possibilidade de discriminação pelos provedores de conexão por meio da imposição de pacotes diferenciados ou por meio da degradação de tráfego, o que poderia limitar a inovação na camada de conteúdo e prejudicar a competição justa[16] entre os desenvolvedores de aplicativos, especialmente se houvesse integração vertical entre conexão e aplicativos. Ao longo das últimas décadas, contudo, o controle de dados e de informação exercido pelas grandes empresas de tecnologia posicionou-as no centro das preocupações concorrenciais, alterando profundamente a dinâmica do mercado.

Dentro dessa nova realidade, deixa de fazer sentido a imposição de tratamento igualitário entre agentes em condições e com consumo de infraestrutura muito diferentes. Não faz sentido, igualmente, associar as discussões atuais sobre poder de mercado ao conceito de neutralidade de rede, que se refere, no final das contas, à relação entre provedores de internet e usuários finais, e não à relação entre provedores de internet e provedores de conteúdo. Portanto, associar discussões sobre o princípio da neutralidade de rede aos debates de caráter concorrencial torna-se um esforço contraproducente, que acaba por "blindar" as big techs e por aprofundar seu poder econômico, criando distorções e produzindo efeitos contrários aos que foram pretendidos inicialmente: a proteção da inovação, do consumidor e a defesa da concorrência.

*- Sobre os autores: Alexandre Freire é conselheiro diretor da Anatel; presidente do Centro de Altos Estudos em Comunicação Digital e Inovação Tecnológica da Anatel – CEADI; doutor em direito pela PUC-SP e mestre em direito pela UFPR. Ricardo Campos é docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha); doutor e mestre pela Goethe Universität; coordenador da área de direito digital da OAB Federal/ESA Nacional; diretor do Instituto Legal Grounds (São Paulo); e sócio do Warde Advogados. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente representam o ponto de vista de TELETIME.

Notas

[1] Ato de Concentração nº 08012.005789/2008-23, Requerentes Telemar Norte Leste S.A. – Oi, Banco de Investimentos Credit Suisse (Brasil) S/A, Brasil Telecom S.A. – BRT, Invitel S/A, Relator Conselheiro Vinicius Marques de Carvalho, j. 20.10.2010 (Doc. SEI CADE nº 0036821, fls. 3286).

[2] Ato de Concentração nº 08700.009731/2014-49, Requerentes Telefónica S.A., Assicurazioni Generali S.p.A., Intesa Sanpaolo S.p.A. e Mediobanca S.p.A., Relator Conselheiro Marcio de Oliveira Junior, j. 06.04.2015 (Doc. SEI CADE nº 0043953).

[3] DU, Truman. Animation: The Largest Public Companies by Market Cap (2000-2022), 2022, disponível em https://www.visualcapitalist.com/cp/largest-companies-from-2000-to-2022/ (acesso em 01.08.2023).

[4] Sen, Conor. The 'Big Five' Could Destroy the Tech Ecosystem. Bloomberg, 2017, disponível em https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2017-11-15/the-big-five-could-destroy-the-tech-ecosystem (acesso em 01.08.2023).

[5] Considerando a cotação da ação na abertura do pregão de 14 de setembro de 2023 da Nasdaq e da NYSE.

[6] Disponível em: https://www.tradingview.com/markets/stocks-usa/market-movers-large-cap/

[7] OCDE, Handbook on Competition Policy in the Digital Age, Paris: 2022, disponível em https://www.oecd.org/daf/competition/oecd-handbook-on-competition-policy-in-the-digital-age.pdf (acesso em 01.08.2023).

[8] CRÉMER, Jacques, MONTJOYE, Yves-Alexandre de, SCHWEITZER, Heike, Competition Policy for the Digital Era, Directorate-General of Competition da União Europeia, 2019.

[9] AKMAN, Pinar. Regulating competition in digital platform markets: A critical assessment of the framework and approach of the EU Digital Markets Act. European Law Review 85, 2022.

[10] Disponível em https://competition-cases.ec.europa.eu/cases/AT.39740 (acesso em 01.08.2023).

[11] Disponível em https://competition-cases.ec.europa.eu/cases/AT.40099 (acesso em 01.08.2023).

[12] Disponível em https://www.bundeskartellamt.de/SharedDocs/Meldung/EN/Pressemitteilungen/2019/07_02_2019_Facebook.html (acesso em 01.08.2023).

[13] IA nº 08700.004588/2020-47 e TCC nº 08700.005597/2022-17.

[14] Processo Administrativo 08012.010483/2011-94.

[15] IA nº 08700.009531/2022-04.

[16] WU, Tim. Network neutrality, broadband discrimination. J. on Telecomm. & High Tech. L., v. 2, 2003, pp. 145-146.

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