Nesta terça, dia 2 de abril, Ricardo Campos, advogado, docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha) e coordenador da área de direito digital da OAB Federal/ESA Nacional, lança em Brasília o livro "A nova relação entre infraestrutura e serviços digitais – fair share, neutralidade de rede e sustentabilidade digital". Como advogado e acadêmico, Campos tem sido um dos principais formuladores conceituais por trás do movimento das operadoras de telecomunicações para uma rediscussão da relação entre teles e empresas de tecnologia.
Nesta entrevista, ele propõe a tese de que a cobrança de uma participação das empresas de Internet é uma forma de promover justiça social e de garantir o acesso futuro de novos usuários e provedores de aplicações às redes.
Onde o livro se insere no contexto do debate entre operadoras de telecomunicações e empresas de Internet?
A regulação da Internet entrou em outro novo momento. Vários pesquisadores defenderam, em um primeiro momento, que se evitasse a regulação do ambiente digital, pois o que se buscava era valorizar o elemento da inovação que a Internet trazia, o que era e ainda é muito importante. Mas agora estamos em um segundo momento, em que temos que proteger instituições e direitos. Já temos uma economia estabilizada no setor digital, atores estabelecidos, e é hora de um novo olhar sobre proteção de direitos e instituições, passando a regular as relações entre eles. Olhando em retrospectiva, vemos que o princípio da neutralidade surge naquele primeiro momento. Ela impedia a discriminação de conteúdo pelas operadoras, que eram as gigantes estabelecidas. A neutralidade evitava que a Internet da inovação fosse capturada pelas operadoras. Mas esse momento não existe mais.
Em que sentido?
Na questão de conteúdo e aplicações de Internet, por exemplo, temos uma concentração do mercado que precisam ser balizadas em suas relações. Se o cabo e a antena eram os elementos mais valiosos há 10 ou 15 anos, hoje o que importa são os dados dos usuários. O motivador do livro é olhar para o setor de Internet com esse olhar. É um trabalho que estamos fazendo em outras frentes, como cartórios, fake news, proteção de dados, e é hora de refletir sobre a relação entre atores do universo da conectividade… As relações que temos são justas? Elas precisam ser reestabelecidas? É sobre isso que provocamos a discussão.
A tese central do livro traz a defesa do fair share ou da sustentabilidade das redes?
De um lado, temos hoje cinco empresas que sobrecarregam a infraestrutura em mais de 50% do tráfego. De outro, ainda temos imensos desafios de acesso no Brasil, com boa parte da população ainda a ser alcançada pela rede e pelos serviços. Esse é um modelo que cria o desafio da sustentabilidade: precisamos levar Internet a todos e precisamos assegurar um ambiente em que outros atores possam levar seus conteúdos e serviços. Esse é o tema que estamos explorando: cobrar mais de quem tem capacidade de contribuir mais para o desenvolvimento da conectividade. É uma questão de justiça social.
Essa tese é a mesma que está sendo colocada na Europa?
O que difere o debate europeu para o brasileiro é justamente esse aspecto de diminuir desigualdades sociais, já que na Europa o acesso é universalizado. No Brasil ainda há grandes desafios. O Pix não funciona sem Internet, por exemplo, os novos negócios precisam da Internet. Estamos falando de acesso à educação, saúde, serviços financeiros… E quem financia a Internet hoje são os próprios usuários, por meio das empresas de telecomunicações, e o Estado, mas com pouca participação. O que precisa acontecer é um reequilíbrio nessas relações. As relações que se consolidaram ao longo desses anos precisam de um ajuste para diminuição das desigualdades sociais, redução da desigualdade de acesso, e para viabilizar a infraestrutura que vai servir a todos, e não apenas a algumas empresas.
A questão concorrencial não é relevante aqui?
Estamos olhando para esse novo momento sob várias perspectivas. Temos um capítulo dedicado à questão concorrencial, porque na Europa o DMS trouxe essa revolução conceitual, por isso estamos olhando tudo, mas nosso foco é no direito regulatório e na capacidade do Estado de garantir o interesse público, para corrigir as questões de justiça social
As empresas de Internet alegam que as tentativas de regulação de uma contribuição podem afastá-las do Brasil e exemplificam com o caso da Coreia do Sul…
Os debates estão acontecendo em todo o mundo. O Brasil faz parte de um contexto global. De fato, a Coreia do Sul, é sempre citada pelas empresas de Internet como exemplo negativo ao fair share. Mas é preciso lembrar que o Brasil tem um peso muito maior para o continente, para a Região, e uma diversidade sociodemográfica que é uma mina de ouro para a economia de dados, pelas nossas disparidades. Coreia do Sul não é o melhor exemplo disso. Duvido que uma empresa de Internet vire as costas para o Brasil.
A ideia do fair share, que as empresas de Internet chamam de network fee, também é criticada por, supostamente, trazer o risco potencial de aumento de custos dos serviços ao consumidor.
Precisamos estabelecer uma linha de corte: médios e pequenos players de Internet não devem entrar nessa partilha de investimentos, justamente porque é preciso fomentar a inovação sempre. O serviço Globoplay, por exemplo, se tornou um player relevante brasileiro por isso, mas não está no mesmo patamar das empresas estrangeiras em termos de tráfego gerado. Meu entendimento é que precisamos manter o ambiente de inovação sempre e estabelecer um corte, em que quem se beneficia mais com a Internet contribua mais com ela. Ninguém está falando de um recorte regulatório visando empresas que ainda nem existem ou que estão crescendo agora. É preciso aumentar a capacidade das redes para que surjam estas e outras empresas. Mas a infraestrutura não pode ser estrangulada por quem não financia a rede e explora a maior parte de sua capacidade.
Mas no final, quem paga a conta é sempre o consumidor, correto?
Precisamos diferenciar os serviços. A grande parte dos usuários de serviços como Facebook, Instagram, Twitter não paga pelos serviços, e uma contribuição para a rede seria apenas um custo a mais para as empresas. As empresas de telecom têm uma distribuição de dividendos da ordem de 13% e as de Internet, 30%. Ou seja, as empresas de Internet teriam que ajustar suas margens. No caso dos serviços em que os usuários pagam, entendo que o repasse não é automático quando existe um mercado com concorrência real. No caso do streaming, há concorrência entre vários serviços, acho pouco provável que todos aumentem preço. Se não houver cartel, o que seria ilegal por si só, é justo supor que eles vão reduzir as margens.
E temos a questão da extração de dados que é muito maior no Brasil do que em outros países. Na Suíça, esse debate entre teles e Big Techs pode ser um debate de uma briga entre dois setores econômicos. Mas aqui tem uma questão de justiça social, e quem ganha tem que contribuir com a expansão da Internet, pois toda a vida econômica e social está em cima da Internet e ainda não universalizamos o acesso, infelizmente. Não temos capacidade para lidar com isso sem equilibrar esse jogo.
Você defende a revisão do conceito de neutralidade de rede?
A neutralidade serve para proteger a discriminação do tráfego, mas as empresas de Internet não vão ser discriminadas por contribuírem para a rede. Não haveria degradação, bloqueio ou priorização de tráfego, apenas a contribuição para o desenvolvimento da infraestrutura. Ainda assim, sobre neutralidade como conceito, penso que eles precisam ser interpretados de acordo com a carga histórica de cada momento. A neutralidade tem que ser sempre interpretada à luz de sua realidade, como são outros instrumentos legais, como o casamento, que hoje admite manifestações diferentes daquelas previstas no começo do século XX. A neutralidade foi criada para garantir a inovação e garantir que não houvesse bloqueio ao fluxo de conteúdo. A realidade é diferente hoje, e as teles não tem mais o poder de barganha nas negociações. O Marco Civil da Internet sempre foi visto como uma instituição "sacrossanta". Mas essa leitura soa algo artificial hoje. Precisa-se olhar para relações concretas. Existem distorções, que precisam ser corrigidas.
Isso pode ser feito sem uma reforma no Marco Civil da Internet?
Na questão de que todos contribuam para a rede, penso que sim. Depende de regulação e vejo a Anatel com essa prerrogativa legal. Acredito que a Anatel possa estabelecer critérios a uma negociação direta, evitando que se crie um imposto ou um fundo, que no final possam ser desviados do propósito. A forma mais rápida e mais eficiente seria de uma negociação entre os diferentes atores, como faz a Austrália no acordo entre plataformas e empresas jornalísticas. Se não houver acordo ou houver impasse, a Anatel arbitraria. Acreditamos que é possível fazer isso sem uma grande reforma legislativa no Congresso e sem precisar passar pelo Tesouro.
O lançamento do livro de Ricardo Campos acontece nesta terça, 2, às 18:00 no Salão Nobre da Câmara dos Deputados, em Brasília.