Se alguém dissesse a uma pessoa no início do século passado que as petrolíferas não seriam as maiores empresas do planeta em cem anos seria considerado lunático. Em 2021, apenas uma companhia saudita figura entre as 20 maiores e a Exxon Mobile aparece depois de um licor chinês (fabricado pela Kweichow Moutai) e da Netflix.
O cenário é amplamente dominado pelas chamadas Big Techs. Os cinco leviatãs Apple, Microsoft, Amazon, Google e Facebook juntos somavam valor de mercado de US$ 9,3 trilhões em outubro. O tamanho dessas empresas deixou boquiaberto até o jornal The New York Times. Um exemplo: o orçamento do Facebook com seus escritórios e hubs de inovação supera o da prospecção de petróleo pela já citada Exxon. Se Jeff Bezos endoidasse e presenteasse na Black Friday 200 milhões de iPhones do próprio bolso continuaria bilionário.
E se eu te dissesse que, enquanto essas estatísticas divertidas podem ser levantadas aos montes, está em ebulição uma nova tecnologia que vai colocar em xeque esse domínio quase anedótico de tão absurdo das grandes empresas de tecnologia? E o nome nem parece tão imponente: Web 3.0.
À primeira vista parece mais ou menos como falar da telefonia 5G ou das imagens em definição 8K. Sim, parecem maravilhosas, mas o que a gente tem hoje já é bastante incrível. O que essa nova versão da Web promete de tão disruptiva?
Bom, para início de conversa é bom a gente deixar claro o que definiu a geração anterior e a atual da internet. O protocolo www ou world wide web criado por Tim Berners-Lee tornou visual a rede de computadores pensada ainda na Guerra Fria. A maior parte do atrativo era LER conteúdo em blogs, sites e portais. Podemos usar como símbolo a Wikipedia.
O estouro da bolha das pontocom no início dos anos 2000 fez emergir a Web 2.0, a que vivemos hoje. Em vez de consumir conteúdo de sites de referência (mídia e portais), ganhou força o conteúdo feito pelo próprio usuário. Os meios tradicionais apelaram para o citizen journalism (sabe aqueles quadros nos telejornais em que as pessoas relatam algo que aconteceu com imagens de seus celulares?), mas não colou. Começava a era das plataformas.
O próprio conceito de plataforma é centralizador e as ideias concorrentes foram sendo depuradas com o tempo.
São basicamente dois sistemas de celulares (iOS e Android), uma rede de networking profissional (LinkedIn), uma de pessoal (Facebook), uma rede para fazer de álbum de recordações (Instagram), uma rede para vídeos (YouTube), um buscador desse conteúdo todo (Google). Todas empresas norte-americanas. Coincidência ?
A China quebra essa regra, mas lá também a tendência é centralizar. Sai a Amazon e entra a Alibaba.
A nova Guerra Fria que se aproxima será travada pelos EUA e China.
Leia artigo que escrevi sobre plataformas no ano passado.
O que essas plataformas fazem, em resumo, é (tentar) oferecer uma experiência o mais completa possível para desincentivar você a sair dela, os tais jardins murados ou walled gardens. Elas são quase sempre gratuitas porque a maior geração de valor que produzem são exatamente os nossos dados para venda de publicidade. No fundo, é o mesmo modelo da velha TV aberta, só que centenas de vezes mais sofisticado na possibilidade de conhecer a audiência.
Na 3ª geração, a web será descentralizada. Ou seja, os muros dos jardins de Apple, Google e Facebook serão derrubados. As Big Techs deixarão de ser guardiãs dos dados da internet. Quem os substituirá? Aí que está: eles vão ser controlados e armazenados pelos próprios usuários de forma coletiva.
Isso só começou a se tornar possível com o desenvolvimento da tecnologia do blockchain, que são como livros-caixa digitais com uma criptografia avançada e muito mais difícil de adulterar. Imagine uma corrente. Sempre que alguém quer adicionar um elo, pelo menos 50% dos usuários precisam reconhecer essa alteração e aí todos têm uma cópia exata da nova versão. Sim, no começo demorava um pouco. Hoje esse tempo é irrelevante.
A arquitetura do blockchain possibilitou a descentralização da moeda (os bitcoins e todas as coins subsequentes). Elas podem circular de maneira descentralizada, já que qualquer transação vai parar numa sequência imutável e rastreável, dispensando os bancos. Sua aplicação, no entanto, vai muito além do universo financeiro.
Não é à toa que os fundos de Venture Capital estão investindo pesado no mundo cripto e nas empresas de blockchain, criando um ecossistema importante e que interessa vários setores da "economia real". As montadoras conseguem localizar qualquer ineficiência em sua cadeia de suprimentos de forma rápida. As indústrias de seguros e de saúde também têm interesse em arquivos de clientes que tenham sua privacidade e integridade preservadas.
O ecossistema de empresas de blockchain, conforme o gráfico acima, mostra os campos de atuação que estão sendo explorados, desde infraestrutura a games, de carteiras digitais a mineração, geração de tokens, pagamentos, segurança, as NFTs e colecionáveis.
Os aplicativos construídos com blockchain – pode ser uma rede social, um marketplace, um mecanismo de busca, um site de músicas – vão permitir que os usuários interajam e participem sem os intermediários que amamos odiar. Ou seria odiamos amar? De certa forma, é a vingança dos nerds contra os jardins murados. Todo o poder à conexão ponto a ponto, ou peer2peer, tão comum para consumo de música antes da invenção do iPod.
Além do blockchain, a Web3 vai florescer junto com a evolução da inteligência artificial, que tornará a interação entre pessoas e máquinas mais rápida e relevante funcionando em computadores quânticos. Hey, Siri. Alexa…
Por que isso é poderoso?
Pode parecer utópico, mas a Web3 é a promessa de dar poder ao usuário e não às instituições. Em vez do Big Brother controlando todo mundo como em 99% da produção de ficção científica desde Admirável Mundo Novo, um lugar onde você não pode ser enganado, roubado ou falido. É praticamente uma inovação filosófico-política tanto quanto tecnológica. Se na Web 1.0 você lia e na 2.0 você também ESCREVIA, a Web3 devolve o CONTROLE DOS DADOS a cada um de nós.
Até agora os mecanismos da Web3 estão em uso para construir aplicações descentralizadas robustas que removam os intermediários, aquele que tinha o servidor com todos os dados. E não estou falando de pequenos nichos de mercado. Estão aparecendo DApps (leia o conceito abaixo) para compartilhamento de caronas, mercado imobiliário, comércio eletrônico, jornalismo, música, venda de energia!
Para quem não ouviu ou não está totalmente familiarizado, vale fazer um pequeno glossário da Web3. Mais cedo ou mais tarde vamos ter de nos acostumar com termos como:
- Criptomoedas – O bitcoin e depois o Ethereum foram as primeiras aplicações construídas sobre blockchain. Foram pensadas para funcionar exatamente como dinheiro (moedas fiduciárias). Aos poucos vão ser aceitas como meios de pagamento.
- Token – qualquer bem que possua valor de mercado, como um objeto, contrato, moeda, ou até mesmo uma propriedade; quase tudo pode ser transformado em token, ganhando uma representação de valor digital.
- NFTs – sigla em inglês para tokens não fungíveis, ou seja, únicos. É como se toda e qualquer moeda tivesse um aspecto que a diferencia e, por isso, a tornasse única. Os NFTs já estão sendo utilizados por artistas gráficos, plásticos e músicos, colecionadores, etc.
- DeFi – significa finanças descentralizadas, o que vem acontecendo por meio das criptomoedas, dos tokens, que emulam as funções do sistema financeiro tradicional por uma fração do custo e com muita agilidade. Se em 2020 havia US$ 10 bilhões alocados em smart contracts, quase dois anos depois a quantia pulou para US$ 100 bi, segundo a The Economist.
- DAOs – empresas descentralizadas, ou seja, sem conselho de administração ou CEOs; seria uma empresa de gestão compartilhada em que todas as pessoas que atuam nela teriam direito a voto na proporção de tokens que possuíssem.
- DApps – os aplicativos descentralizados, que funcionam com blockchain e por isso desafiam a lógica atual da internet de guardiões de dados. Já tem uma loja desses aplicativos, chamada de Dapp Radar.
Dá para perceber que estamos falando de um universo de temas novos com capacidade de mudar profundamente a maneira de navegarmos, de interagirmos com e produzir conteúdo. A revista britânica aposta que a DeFi vai achar sua vocação exatamente aí. Um músico pode interagir diretamente com seu público, sem necessidade da gravadora. Sai o Spotify, entra o Audius. Escritores lançam seus livros sem editora. Será o encontro da plataforma com seu uso.
A Web3 promete uma internet mais sofisticada, customizada, segura e na qual você é recompensado inclusive por seu tempo online. Será que por meio de regulação governamental (como aconteceu com a Standard Oil no século 20) ou pela dinâmica do mercado, as Big Techs vão se diluir em DAOs? Claro, vai ter muita especulação, interesses feridos, analistas furiosos. Mas parece sensato se preparar para esta tal de Web 3.0.
Quantas vezes você ouviu algo sobre o conselho de administração de sua empresa ter debatido e se posicionado sobre a Web 3.0 ?
*-Sobre o Autor: Omarson Costa é executivo C-level e atuou na América Latina desde startups até empresas da Fortune 500 nas áreas de telecomunicações, internet, mídia, entretenimento, varejo e finanças. Ajudou a estruturar a operação da ROKU (Diretor Geral) no Brasil e atuou como Diretor de Desenvolvimento de Negócios da Netflix. Trabalhou em grandes organizações como Mastercard, Microsoft, Telefónica, Nokia e HP. Atualmente é Diretor de Negócios na Accenture e conselheiro de administração para empresas dos setores de telecomunicações, serviços, publicidade e educação, além de colunista para IstoÉ Dinheiro, Teletime e SBT Interior. As opiniões expressas pelo autor não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.