À medida que a consciência ambiental cresce entre pessoas e o mundo corporativo, o futuro acena com brilho para o comércio de créditos de carbono, mecanismo monetário que financia iniciativas de redução de CO2 (no conceito técnico, uma tonelada métrica de dióxido de carbono equivalente) da atmosfera. Surgidos a partir do Protocolo de Kyoto[1], visam à diminuição a presença dos Gases de Efeito Estufa (GEE), associados às mudanças climáticas.
A comercialização desses créditos, principalmente em mercados regulados, sofreu recentemente um abalo com a megaoperação da Polícia Federal brasileira contra fraude venda irregular de créditos de carbono em área invadidas na Amazônia Legal[2]. Não foi a primeira vez que o mercado tem esse tipo de abalo, afetando a credibilidade de quem certifica e, principalmente, a reputação de quem compra. No passado empresas sofreram com a ocorrência do double counting, prática ilegal em que um mesmo crédito acaba sendo "vendido" para duas ou mais empresas e, consequentemente, contabilizando erros na apuração dos resultados e alcance do offset (termo usado para representar zero emissões de GEE pela compensação da parcela residual não passível de redução). De fato, o crédito gerado a partir de áreas de preservação ambiental, mais utilizado até o momento, ainda é difícil de ser controlado, rastreado e verificado pelo comparador mesmo com os certificados (REDD e REDD+), até por serem realidades distantes e distintas daquelas do setor de TIC.
Por que o paradigma de offset para as empresas do setor não pode ser estabelecido a partir de sua própria cadeia de valor? A partir de suas operações e do uso da tecnologia para ter os mecanismos de governança mais confiáveis?
Quase 50% das emissões de GEE estão associadas à gestão da matéria-prima usada para produção industrial [3]. Reduzindo as emissões relacionadas aos materiais, entre 20 e 30% através de estratégias de Economia Circular (modelo econômico que visa a eliminar o desperdício por meio da reutilização e da eficiência de recursos), seria possível completar a metade da lacuna entre os compromissos de redução de emissões já assumidos e a meta do Acordo de Paris em manter o aquecimento global em até 1,5oC quando comparado em níveis pré-industriais, até 2030[4].
Em 2022, o mundo gerou mais de 62 bilhões de quilos de lixo eletrônico (e-waste[5]). Desse total, 77,7% tiveram destino incerto, podendo representar até 70% dos resíduos perigosos que vão para aterros. A reciclagem do lixo eletrônico é complexa, pois eletroeletrônicos podem ter mais de 1.000 substâncias em sua composição e mais de 60 elementos da tabela periódica. O valor econômico dos metais presentes no lixo eletrônico deste mesmo ano foi estimado em US$ 91 bilhões, requerendo tecnologias de reciclagem altamente especializadas para recuperar metais nobres e minerais críticos, como ouro e silício.
Apesar de 81 países em 2023, incluindo o Brasil, já terem algum tipo de política, legislação ou regulamentação endereçadas ao lixo eletrônico, sua geração cresce 5 vezes mais rápido do que a reciclagem documentada[6] e, nesse contexto, projetos de redução de emissão de GEE com geração de créditos de carbono poderiam acelerar o aumento das taxas de reciclagem e contribuir com as metas de descarbonização.
Rastreabilidade
Nessa nova proposta de valor para a reciclagem, créditos de carbono únicos e rastreáveis por meio de ferramentas de Web3 (próxima evolução da internet, caracterizada pela descentralização, privacidade e controle do usuário), podem ser o novo paradigma que o setor precisa para maior governança do offset. As informações que garantem a rastreabilidade do processo podem ser armazenadas utilizando um sistema de armazenamento descentralizado, como o InterPlanetary File System (IPFS), que gera uma identificação (content identifier, CID) para cada arquivo. Se um arquivo for enviado mais de uma vez, ele sempre receberá o mesmo CID. Caso, seja feita alguma modificação no arquivo, um novo CID será atribuído.
Dessa forma, o uso do IPFS permite a criação de uma prova imutável e descentralizada da reciclagem dos resíduos eletrônicos, que fica disponível publicamente e pode ser verificada pelos órgãos competentes e pela sociedade em geral, reduzindo a burocracia do sistema e, ao mesmo tempo, garantindo a unicidade de resultados difícil de ser verificada nas soluções baseadas na natureza. É possível também, utilizar tokens não fungíveis (NFTs) para representar um lote de créditos de carbono e registrar em blockchain a transferência dos créditos do vendedor ao comprador, até a sua contabilização final quando o token então será "queimado" e retirado do mercado, no momento em que offset ocorrer.
Inovação que resulta em um crédito de carbono estável, seguro e confiável!
Nesse novo paradigma, o setor pode endereçar ao mesmo tempo dois importantes temas para a sustentabilidade: os resíduos eletrônicos gerados na operação e nas cadeias de upstream e downstream e; o offset seguro para atingir suas metas de carbono (ou, até ser net positive) a partir de sua própria cadeia de valor.
* Sobre os autores: Marcio Lino é sócio fundador da Colin Consultoria, executivo do setor de tecnologia e colabora periodicamente com TELETIME sobre temas da agenda ESG; Thalita Braga é neta de recicladores, especialista em reciclagem, logística reversa, gestão de resíduos e Economia Circular. Engenheira de Materiais e Manufatura, EESC/USP. CEO e founder da GAIA GreenTech, startup que conecta o e-lixo a recicladores especializados. Fundou a GAIA na graduação depois de não encontrar soluções de reciclagem para seus eletrônicos. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME
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[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/protocolo-de-kyoto
[2] https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/policia-federal-realiza-operacao-para-investigar-venda-irregular-de-creditos-de-carbono
[3] Circle Economy, 2016. https://www.circle-economy.com/resources/implementing-circular-economy-globally-makes-paris-targets-achievable
[4] 240UNDP. 2020. Rapid Assessment Seport on the enefits of Circular Economy on Mitigation of GHGs Emission in the Waste Sector: Republic of North Macedonia. Ministry of Environment and Physical Planning of North Macedonia, GEF and UNDP. https://api.klimatskipromeni.mk/data/rest/file/download/a6aebd5fbc39eb38094ab488c9ffd4c96b408a35d0d33abe126425ab7b4a1ad8.pdf
[5] https://ewastemonitor.info/wp-content/uploads/2024/03/GEM_2024_18-03_web_page_per_page_web.pdf
[6] https://ewastemonitor.info/the-global-e-waste-monitor-2024/