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AVoD: um maremoto que vai varrer a relevância da TV aberta

Quer um spoiler do final deste artigo? Assim como o SVoD (vídeo sob demanda por assinatura, tipo Netflix) afetou as receitas da TV por assinatura (SeAC), o AVoD (vídeo sob demanda baseado em publicidade) irá afetar as receitas da TV aberta (radiodifusão). Agora vamos ao flashback para explicar como  chegaremos nesse ponto.

Na noite de 18 de setembro de 1950, o industrial Agenor Rabello [nome fictício] tinha no centro de sua sala de estar um dos 200 aparelhos de TV que o próprio Assis Chateaubriand havia mandado comprar e distribuir para iniciar a formação de público. Ele, a mulher e seus filhos testemunharam a primeira transmissão da TV Tupi no Brasil.

Por determinação da Lei 4.117, de 27 de agosto de 1962, em seu artigo 6º, ficou determinado que a programação de TV deveria ser ofertada de forma direta e livremente para o público em geral, uma vez que os canais eram concessões do espaço público (no caso, o espaço aéreo, por onde trafegavam as ondas VHF e UHF).

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Em 18 de abril de 2021, na mesma sala, o filho do seu Agenor assiste ao jogo do seu time no Brasileirão em uma SmartTV conectada à Internet e ao aplicativo da Amazon, enquanto o neto do saudoso industrial passa tempo assistindo a episódios de série na Netflix em seu tablet e sua irmã à última eliminação do BBB no app da Globoplay no celular.

O cenário simula o que se vê em muitos lares de classe média no Brasil e, de forma ainda mais difundida, nos países ricos. Repare que a programação da “TV aberta” foi parar em um aplicativo. Em outras palavras, a TV deixou de ser unicamente linear.

Desde a chegada da banda larga, as fronteiras entre internet e televisão começaram a ficar borradas. Em 2005, o aparecimento do YouTube amplificou a possibilidade do antigo espectador passivo virar, ele mesmo, um produtor de conteúdo.

A partir da entrada no mercado dos smartphones junto com a terceira geração da telefonia celular começou a se tornar viável consumir conteúdos em vídeo nos dispositivos móveis, o que melhorou muito com a chegada do 4G.

Enquanto a internet se fortalecia, a velha programação da TV aberta ganhou a concorrência das operadoras de TV por assinatura, chamadas pela legislação de SeAC, ou Serviço de Acesso Condicionado. Elas chegaram perto de 20 milhões de assinantes em 2014 e, desde então, só fazem perder consumidores.

Por ser paga e exigir uma infraestrutura física (cabos ou antenas), as TVs por assinatura, nunca chegaram a ser um produto de massa no Brasil. Aqui, não pense só em São Paulo, mas também em quem mora na Ilha do Bananal, no interior do Nordeste ou em alguma região de Rondônia. A penetração média da TV a cabo é de 21,9 domicílios a cada 100, segundo a Anatel. Como comparação, nos EUA ainda atinge 65% das casas, embora a curva também aponte para baixo.

O sucesso do modelo de streaming (ou SVoD) da Netflix se espalhou pelo mundo a partir de 2011. A empresa conta hoje com uma base global de 207 milhões de assinantes e a Amazon já está se igualando. Mas a perspectiva de chegada (aqui no Brasil) e difusão (nos EUA, Europa, Ásia e Oceania) da tecnologia 5G de telefonia celular detonou a Guerra do Streaming.

Quer saber o que é a Guerra do Streaming ? Leia aqui

A “appetização” da programação de TV no mundo teve ainda o empurrão da pandemia. Amazon, Disney+, Hulu, Paramount, HBO, CBS, Fox… Haja bolso! Se você for um consumidor voraz de conteúdo vai acabar com uma conta maior do que a antiga TV por assinatura e seus 200 canais. Aliás, você sabe quanto paga por assinaturas?

Seriam Netflix e Amazon os maiores “canais de TV” (provocação regulatória) da nossa era?

Qual a solução para o bolso raso do consumidor, sobretudo em tempos de pandemia? Isso mesmo que você pensou. Propaganda, o bom e velho modelo da TV aberta, em vigor desde que ela entrou nos lares das pessoas. Bem-vindo ao mundo AVoD ou Advertsing-based Video on Demand.

Essa onda que está se formando no horizonte é de grandes proporções. Um paredão de água capaz de varrer do mapa a TV aberta tradicional. 

Pode-se argumentar que esse é basicamente o modelo do YouTube, que é de graça com anúncios faz tempo e isso não afetou a TV. Há uma diferença básica: no YouTube, a curadoria de conteúdo é feita pelos usuários e não pelo aplicativo. 

Mas pense o seguinte. Pode-se argumentar também que o internet banking não exterminou as agências bancárias ou que os sites de notícia não eliminaram de vez os jornais de papel. Mas ambos foram severamente afetados e tendem a ter sua viabilidade financeira afetada ao longo prazo. 

Em artigo recente, a diretora de Marketing Experience da Coca-Cola para América Latina, Adriana Knackfuss, narrou ter recebido um convite para testar a versão beta do “Hulu Ads Manager” – uma plataforma self-service de advertising para pequenas e médias empresas.

O Hulu foi o primeiro a trazer para o universo do streaming o que as redes sociais fazem há algum tempo, ou seja, oferecer a possibilidade de atingir um target especializado na propaganda, o que tem o condão de ser mais eficiente na conversão de vendas.

O grosso do dinheiro da publicidade vinha resistindo à internet por uma questão de escala. A TV aberta sempre atingiu o público de forma massificada, embora a segmentação seja por amostragem (cluster de audiência) a partir das pesquisas em torno da audiência.

Na medida em que cresce o número de assinantes dos serviços, que ficam conectados mais tempo às plataformas e também com os orçamentos de marketing mais curtos por conta da pandemia, o dilema TV aberta/internet começa a fazer menos sentido.

A verba de publicidade global recuou 10% em 2020 e torna o momento propício para o desenvolvimento das soluções de “addressable TV”, ou seja, o anunciante atinge uma família assistindo a um mesmo programa de TV com publicidade segmentada.

No intervalo do jogo do filho do seu Agenor, o anúncio que passa para ele é da Coca-Cola. Mas outra família assistindo à mesma partida, verá um anúncio de equipamentos esportivos, porque ali, as pessoas costumam ver mais programas sobre bem-estar e vida saudável. Entendeu o tamanho da mina de ouro que é esse modelo? Com o tempo você terá o melhor dos dois mundos: amplitude de audiência e segmentação.

Nos EUA, a Pluto TV, streaming operado pela ViacomCBS, deve faturar US$ 786,7 milhões com anúncios em 2021, o que representa um aumento de 77,7% sobre o ano anterior. Para 2022, espera-se que os ganhos ultrapassem a marca do bilhão. De acordo com pesquisa do Interactive Advertising Bureau (IAB), mais da metade do dinheiro investido em publicidade nos streamings e TVs conectadas esse ano vai sair do orçamento previsto para a TV aberta (Veja gráfico abaixo).

Mas esse tema não é apenas sobre dinheiro. O maremoto AVoD vai balançar as estruturas de poder do país. Vamos lembrar que os canais de TV e de rádio, cujas ondas de transmissão utilizam frequências, são considerados pela Constituição como bens públicos e, por isso, as emissoras são concessões renovadas a cada 15 anos – a concessão da Globo, por exemplo, vence em 2022.

Até 2018, segundo a Anatel, o Brasil tinha 583 geradores de TV e 13.692 retransmissores espalhadas pelo país. Tirando a Rede Brasil e a TV Cultura, que são ligadas ao governo federal e ao Estado de São Paulo, o país conta com cinco redes de TV privadas, que têm entre próprias e afiliadas 211 emissoras, fora as repetidoras.

Apesar do artigo 54 da Constituição proibir que políticos possuam concessões de rádio e TV como forma de garantir independência e impedir que esses grupos econômicos legislem em causa própria, a regra é bastante violada. Levantamento do grupo Intervozes apurou que nas eleições gerais de 2018, pelo menos 34 políticos em dez Estados possuíam concessões de rádio ou televisão em cidades com mais de 100 mil habitantes. Desses, 28 se elegeram.

O ex-presidente Fernando Collor, eleito em 1990, vinha de uma família que tinha concessões de rádio e TV. A prática é comum em todo o país.

O horário eleitoral gratuito, tão criticado pelas TVs abertas, obteve audiência de 34 pontos, segundo o Ibope, na campanha de 2018, e, mesmo com a concorrência das redes sociais, ainda serve para consolidar opiniões sobre candidaturas.

Com a migração maciça do público (e da publicidade) para plataformas AVoD, as concessões de TV aberta perdem em grande medida seu poder de formação da opinião pública e isso provocará mais cedo ou mais tarde mudanças nas bases da política tradicional.

O AVoD torna ainda mais urgente que os países discutam e façam regulamentações em nível nacional para evitar excessos como o da campanha vencedora em 2018 com o WhatsApp e casos como os de Viktor Orban, Donald Trump e do Movimento 5 Estrelas na Itália, tão bem narrados no livro “Engenheiros do Caos”.

Afinal, algoritmos são bons para personalizar a propaganda para o perfil de cada consumidor, mas as consequências deles para o debate político, como tem sido observado ao redor do mundo, clamam por debate e regulação.

* Sobre o autor – Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet. As ideias manifestadas neste artigo não necessariamente refletem a posição de TELETIME

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