Um fato novo chamou a atenção na audiência pública realizada nesta quarta, 28, e que discutiu o PL 469/2024 na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados. O projeto tem como propósito impedir a possibilidade de cobrança, por parte das operadoras de telecom, de qualquer taxa pelo uso das redes pelas empresas de Internet, em um modelo que ficou conhecido como fair share, ou network fee. O debate da audiência trouxe um novo personagem: o ex-deputado federal Paulo Henrique Lustosa, que em sua carreira como parlamentar atuou em várias pautas de tecnologia, da regulamentação da TV por assinatura ao Marco Civil da Internet.
Lustosa é um político que se aproximou em sua carreira parlamentar de temas do setor de telecom mas, segundo apurou este noticiário, também tem atuado de maneira mais direta no aconselhamento das operadoras de telecomunicações nesse tema específico. E a mensagem de Lustosa trouxe de fato apresentou um tom novo ao debate: para o ex-deputado, em um ambiente de tantas mudanças tecnológicas e transformações, e em que vários outros debates correlatos se desenvolvem (como o da regulamentação da Inteligência Artificial e de um plano nacional de data centers, por exemplo), impor uma proibição a um dos atores do ecossistema, como faz o PL 469 ao setor de telecom, pode não ser o melhor para a sustentabilidade de todo o ecossistema.
Foi uma fala de conciliação, que avançou ao debate sobre as necessidades de investimentos em função do crescimento do tráfego, como o tema foi inicialmente apresentado pelas teles, ou sobre um eventual custo adicional ao consumidor, como sustentam as big techs.
Para o ex-parlamentar, o principal ponto da discussão não é discutir a sustentabilidade das redes de telecomunicações em si, mas sim do ecossistema de Internet como um todo.
"Precisamos ter a sustentabilidade de todo o ecossistema. Precisamos ter regras gerais para criar um ecossistema saudável para todos. Já temos uma relação de cobrança entre as empresas. A matéria aqui não é fútil. Pelo contrário, é essencial. É um desafio de como podemos conseguir um equilíbrio nesse ecossistema", afirmou. "O tema é de discenso, e cabe a essa casa coinstruir consensos, a partir de visões diferentes para um mesmo problema, construindo soluções que sirvam ao interesse público", disse.
Para Lustosa, esse debate mais amplo leva a uma discussão sobre "obrigações e responsabilidades dos difrentes agentes que compõem o ecossistema", lembrando que esses atores são ao mesmo tempo colaboradores e competidores entre si.
Lustosa lembrou que na Internet existe uma relação simbiótica, em que o consumidor busca adquirir mais velocidade de conexão a partir do momento em que ele tem acesso a mais serviços. A equação também envolve os 20 mil provedores de conexão que respondem a mais de 50% da conectividade da Internet fixa no Brasil, lembrou Lustosa.
Para ele, para além de "olhar quem paga a conta, (se é preciso) tarifar ou não tarifar, devemos olhar para as necessidades de reequilíbrio do ecossistema". Ele lembrou que já existem relações comerciais entre as empresas de Internet e empresas de telecom. "A minha visão é que a gente deveria analisar esse projeto, que é oportuno, tempestivo, global, (…) mirou no problema certo, mas está discutindo uma solução possível, vedando a alternativa de tarifação. Mas esta é a única (alternativa)?", disse.
Para Lustosa, "todos os atores investem nesse ecossistema. Por isso, para conseguirmos o reequilíbrio, precisamos partir de uma premissa: é proibido proibir. Não consigo enxergar nenhum caminho possível proibindo a cobrança nem obrigando a cobrança. Estamos em um ambiente inovador. Como incentivar um arranjo, dentro dos princípios estabelecidos nessa Casa, que junte todos os atores desse ecossistema".
Ele lembrou que a Câmara discute o PL da Inteligência Artificial e uma política de cabos submarinos, e que há um debate no governo sobre uma política de data centers. "A gente pode aproveitar essa oportunidade para construir, para além de uma proibição, um modelo para que os serviços cheguem a todos com qualidade, preço módico e de maneira universal".
Financiamento
Fernando Soares, Diretor de Regulação e Inovação da Conexis Brasil Digital, destacou que telecomunicações é um serviço essencial e que, se paralisado, afeta a todos. E para ele é fundamental garantir os investimentos em rede. Segundo ele, o PL 469/2024 limita as possibilidades de negociações entre o setor de telecom e o setor de Internet. "Se eu limito negociação, eu vou trazer impactos nos investimento, e isso tem impacto para os dois setores". Soares sugeriu que a Anatel faça a mediação dessa relação, a partir de princípios que sejam dados pela legislação aprovada pelo Congresso Nacional. "O Brasil precisa de investimentos, sustentabilidade da rede e serviços adequados", disse.
"Precisamos fazer a discussão da sustentabilidade da rede, que venha a garantir a manutenção dos atuais serviços e dos vindouros. Este tema está na pauta do dia. Quem irá financiar a expansão das redes de telecomunicações? Eu quero o apoio, tão somente das big techs, para garantir o funcionamento de serviços como telemedicina, cidades inteligentes. É dever de todos compartilhar investimentos", disse Soares, na audiência pública.
Sem problemas
Já o diretor-executivo da Aliança pela Internet Aberta (AIA), o também ex-deputado Alessandro Molon, reiterou a tese de que o modelo atual é equilibrado e não precisa de ajustes. Ele voltou a destacar os estudos feitos pela entidade que mostram que mesmo com o crescente tráfego de dados projetado, não há risco da Internet brasileira colapsar, e também insistiu que as operadoras de telecomunicações não enfrentam problemas financeiros para manterem os investimentos, lembrando que as empresas de Internet também investem em infraestrutura de data centers, cabos submarinos e servidores de conteúdo (CDNs).
"Sobre os retornos das empresas, o rendimento das empresas de telecomunicações tem sido ótimo. O que tem caído de retorno financeiro delas são serviços em desuso, como com a telefonia fixa e com a TV a cabo. Ou seja: o retorno financeiro dessas empresas com banda larga é compatível com os resultados do setor", disse Molon.
Ele também afirmou que se uma taxa de rede for criada, o Brasil terá uma tentativa de cobrar duas vezes pela mesma coisa. "É como eu pagar para receber algo pelo Correio, sendo que quem enviou já pagou. Quem vai receber, também terá que pagar. Isso é uma cobrança dupla", disse.
Ao entrar em suas considerações finais, já depois da fala de Lustosa, Molon buscar deixar claro que a AIA não busca conciliação, porque não entende haver problema. "Gostaria de entender que problema uma taxa de uso da rede busca resolver. As empresas de telecomunicações são lucrativas e não existe problema com o aumento do tráfego. Então me parece que as empresas de telecom apenas querem resolver um problema de lucratividade".
Ele lebrou que as empresas de telecomunicações já ganham dinheiro com Serviços de Valor Adicionado, prestando serviço. "A proposta do deputado Davi Soares veio como uma reação a uma tentativa de colocar a Anatel para criar uma taxa de uso da rede. O projeto do deputado Davi Soares foi uma reação a isso". Agora, provocou Molon, as operadoras falam em criar uma mediação com a Anatel.
Mas, segundo Molon, "não existe possibilidade de mediação entre algo certo e algo errado. Proibir uma coisa errada, não é errado", disse o representante da AIA, elogiando o PL 469, sendo apoiado por Mauricélio Oliveira, diretor administrativo da Abrint, que representa os pequenos provedores a cobrança da taxa de rede não se justifica tecnicamente. "Atualmente, os contratos funcionam eficazmente entre empresas de conexão e usuários. O usuário paga a empresas de telecomunicações para acessar esses conteúdos. Criar uma taxa, como o fair share, é colocar em risco a engrenagem que faz funcionar tão bem a Internet brasileira", disse.
E prosseguiu: "Hoje, quem financia a rede são os usuários. Estão querendo pegar o sistema capitalista de telecomunicações e transformar em um sistema socialista, querendo dividir os custos", disse.
Monopólio
Lucas Gallitto, Diretor para América Latina da GSMA, destacou que atualmente, 70% do tráfego móvel de download no Brasil vem de apenas empresas: Meta, Alphabet e TikTok, e que 30% desse tráfego vem de conteúdos não solicitados, como anúncios e vídeos de reprodução automática.
"Existem mitos neste debate, como o de que uma cobrança com base na distribuição de tráfego é cobrar duas vezes pelo mesmo serviço. A verdade é que as redes são um mercado de dois lados: os consumidores usam para acessar o conteúdo, assim como os provedores de Internet [usam] para alcançar os consumidores", disse Gallitto na audiência pública.
Radiodifusores
No sentido contrário, Flávio Lara Resende, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), destacou a mudança de hábitos de consumo de vídeo pelos usuários da Internet foi determinante para a disponibilização dos conteúdos das emissoras na rede. Isso foi complementar aos serviços de radiodifusão, especialmente no Brasil, um País de grandes dimensões e de diversidade econômica, social e cultural.
"Essa é uma realidade imposta pela convergência tecnológica, com o desenvolvimento de novos modelos de negócio, que a longo prazo terá impactos na própria sustentabilidade do modelo de radiodifusão aberto, livre e gratuito para a população brasileira", disse o presidente da Abert.
Ele também destacou que a TV 3.0 pretende trazer uma experiência nova para seus usuários, integrando broadcasting com a Internet, com uma arquitetura baseada em aplicativos.
"Nesse sentido, qualquer remuneração pelo uso das redes causaria uma assimetria concorrencial entre as plataformas de streaming, uma vez que as empresas estrangeiras têm mais condições de arcar com os custos, causando riscos à indústria audiovisual brasileira", disse. (Colaborou Samuel Possebon)