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O futuro e os riscos à TV pública

Os governos Lula e Dilma foram tímidos em relação às políticas de democratização das comunicações, notadamente da radiodifusão. A revisão e modernização do ordenamento jurídico do setor, uma pauta recorrente desde 1997, ainda no governo FHC, com vistas a uma regulação técnica e econômica, nunca saiu do campo das minutas. Mas houve avanços importantes, sobretudo no campo da comunicação pública, e da radiodifusão pública mais especificamente. O legado dos governos do PT para as comunicações foi nessa área, e foi algo positivo que o governo interino de Michel Temer, por desinformação, falta de disposição ao debate ou preconceito, corre o risco de jogar fora, como está fazendo com o desmonte irracional da Empresa Brasil de Comunicação – EBC.

O principal expoente dessa política de comunicação pública é, sem dúvida, a própria EBC, estatal que tem sob sua responsabilidade a TV Brasil, a Agência Brasil, a Rádio Nacional da Amazônia, a Radioagência Nacional, e mais seis estações de rádio AM e FM com grande abrangência territorial.

A EBC é a consolidação de uma política prevista pela Constituição, que estabelece a complementariedade entre o sistema estatal, público e privado de radiodifusão, e foi criada pela Lei 11.652/2008, com amplo debate e aprovação pelo Congresso Nacional. A lei nada mais busca do que criar um instrumento público de comunicação como o existente em muitos países desenvolvidos: BBC (Reino Unido), PBS (EUA), France Télévisions (França), Deutsche Welle (Alemanha), TVE (Espanha), RTP (Portugal), RAI (Itália), NHK (Japão) apenas para citar os casos mais emblemáticos. Todas estas empresas estão sujeitas às mesmas discussões que se tem no Brasil sobre a EBC: risco de serem aparelhadas pelo governo, interferência política, dispêndio excessivo de recursos públicos. E todas elas trabalham para corrigir esses problemas e diminuir os riscos com instrumentos de governança, controle público e modelos de negócio alternativos.

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Outra ponta do trabalho feito no campo da comunicação pública, e da radiodifusão pública especificamente, vinha acontecendo de maneira mais silenciosa dentro do Ministério das Comunicações, sobretudo a partir da gestão do ex-ministro Paulo Bernardo. Trata-se da organização do campo das rádios comunitárias (criadas por lei no governo FHC, diga-se de passagem), que envolve mais de 4,7 mil emissoras em 4 mil municípios; das emissoras de radiodifusão educativa (486 rádios e 207 geradoras); dos mais de 200 canais consignados pela própria União aos poderes Legislativo (TV Câmara, TV Senado), Judiciário (TV Justiça) e Executivo (EBC); e dos canais digitais da União para Educação, Cultura e Cidadania, concebidos juntamente com o Decreto 5.820/2006, que criou o Sistema Brasileiro de TV Digital.

No campo das comunitárias, houve um esforço importante de desburocratizar e aprimorar os mecanismos de outorga e acompanhamento para evitar o uso indevido dessas rádios, assim como um Plano Nacional de Outorgas (PNO) transparente. No campo das educativas, a principal mudança foi também estabelecer o Plano Nacional de Outorgas e aplicar, efetivamente, a previsão legal de concessão desses canais a entidades ligadas ao próprio Estado (governos estaduais e municipais), universidades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFETs). Isso busca assegurar que as educativas não sejam objeto de cobiça por políticos e fundações de fachada.

Na área dos canais digitais da União, o avanço maior foi a regulamentação do canal da Cidadania, que já tem mais de 370 pedidos de outorgas e duas autorizações (Uberlândia e Salvador). Importante lembrar que esses canais não são operados pelo Governo Federal, e sim por entidades da sociedade civil e administrações estaduais e municipais. Os canais da Cultura e da Educação foram regulamentados e estavam, no processo de troca de governo, em fase de implementação por seus respectivos ministérios, juntamente com a EBC, sendo que no caso da Educação o embrião deve ser a própria TV Escola, já consagrada e estabelecida há duas décadas, mas que ainda padece com a dificuldade de distribuição aberta (hoje está na TV paga e no satélite).

O argumento mais comum para criticar a comunicação pública, ou não-comercial, é que pouca gente assiste e se consomem recursos preciosos de um Estado sem condições de manter seus serviços básicos.

Primeiro, esse conceito de “ninguém assiste” é relativo. As rádios ligadas à EBC são, em alguns casos, a única alternativa existente. A Agência Brasil é fonte constante dos grandes veículos de imprensa, cobrindo áreas que as redações minguadas já não têm condições de acompanhar, assim como a Radioagência. A TV Brasil, com todos os problemas inerentes ao seu pouco tempo de vida, vinha construindo um portfólio de programas jornalísticos e culturais relevantes, trazia um esforço de pesquisa tecnológica no campo da interatividade que as emissoras comerciais abandonaram e abria espaço para produções nacionais e conteúdos que não interessam a emissoras comerciais, como a programação infantil (quase extinta da TV aberta).

Além disso, é preciso lembrar que existe previsão constitucional e legal para esse sistema público, que ademais é cada vez mais importante para uma população carente de outras formas de comunicação, para quem o acesso aos novos meio digitais e à banda larga ainda é uma realidade distante, e que vive em regiões do país com pouca ou nenhuma atratividade econômica para o sistema de comunicação privado de rádios e TVs.

As emissoras comerciais vivem um momento crítico para seus negócios, muitas sob o risco real de falência, o que muitas vezes compromete a qualidade de programação, com o arrendamento do horário para igrejas e canais de vendas, diminuição dos investimentos em produção nacional de qualidade ou em programas que não tenham atratividade comercial. Sem falar nos desafios que as emissoras comerciais enfrentarão do ponto de vista dos investimentos necessários para se manterem tecnologicamente atualizadas, com a digitalização dos sinais. A comunicação pública, que pode ou não consumir recursos do Estado e pode ou não ser “chapa-branca”, é uma forma de assegurar à população o acesso à informação e ao entretenimento, inclusive onde a iniciativa privada não está  presente de maneira competitiva, e de abrir oportunidade a conteúdos e experimentações que não encontrariam espaço em um mundo regido apenas pela lógica de mercado e da audiência de massa.

Tornar a comunicação pública relevante e eficiente pode e deve ser papel do Estado, independente do governo.

Jogar fora o pouco que se construiu até aqui em torno de um projeto de comunicação pública só trará mais prejuízos à sociedade, na forma de um retrocesso aos anos 90.

Um desmonte irracional da EBC, com ares de macartismo, é uma atitude que não mostra nenhum projeto a não ser o desejo de voltar tudo aos tempos da Radiobrás, em que o foco era a comunicação do próprio governo. O que por si só é um contrassenso, pois o instrumento para fazer isso já existe, no próprio canal NBR (hoje operado pela EBC).

O que faltou desde a criação da EBC foi uma visão integrada do sistema público de comunicação, incluindo os esforços coordenados pelo Ministério das Comunicações, com uma política clara e um projeto de uma empresa pública que ganhasse a independência do governo de plantão e do próprio Estado que lhe dá suporte.

A vinculação da EBC à extinta Secretaria de Comunicação da Presidência fez algum sentido na criação da estatal, mas tornou-se um problema, pois contribuiu para a imagem de uma TV oficial. Vincular a empresa à própria Presidência da República será pior ainda.

Talvez o melhor caminho seja vinculá-la ao ministério que hoje cuida das políticas para o setor de radiodifusão (o Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações), onde o trabalho de ordenamento e acompanhamento da radiodifusão pública já tem sido feito e onde estão sendo pensadas as políticas para o setor. Vincular ao Ministério da Cultura também seria uma opção. Mas a pior solução, sem dúvida, é matar a EBC e tratar a radiodifusão e a comunicação pública como algo irrelevante.

18 COMENTÁRIOS

  1. Amigo Samuca, talvez uma outra providência seja regulamentar o artigo 223 da Constituição. Ele cita os 3 sistemas de radiodifusão, público, estatal e privado, mas não há definição jurídica para cada um deles, apenas as diferenças óbvias. Enquanto a EBC sobreviver tão somente de recursos do Tesouro, ela não pode ser chamada de pública.

  2. Até que enfim alguém além da ex presidente a EBC Tereza Cruvinel, para um perfeita descrição do que pode e deve ser a EBC.
    Parabéns pelo artigo.

  3. A forma como esse governo provisório se apoderou da EBC, atropelando e desvirtuando o papel da comunicação pública, vai contra todos os princípios da Lei que criou a Empresa. Mas o que esperar de um governo golpista, senão mais um golpe?

  4. Acabou o governo dos coitadinhos. Finalmente vão terminar com esse esgoto que é a ebc e as outras tvs publica que so serviram para encher bolso de petralha. Ridiculo comparar a tv brasil com pbs ou bbc.
    Melhor essa turma que gosta de bolsa cinema comecar a trabalhar de verdade.

    • Muito bom artigo, parabéns!

      Estamos sofrendo um enorme risco de perder o pouco que evoluímos. Ver nos comentários pessoas odiosas ao PT que estendem seus sentimentos escusos para a EBC me deixa triste, pois uma coisa nada tem a ver com a outra.

      Talvez façam essa relação pois de fato foi o governo que a EBC pôde crescer, mas não deverá ser o único. Espero que um novo governo (que não é o atual do Sr. Temer) possa continuar com os progressos na EBC e não fazermo-nos regredir aos anos 90 como essas mesmas pessoas que cegas pelo ódio partidário não enxergam o mal e a tosca mentalidade que é falar algo como “bolsa cinema”.

      Obs: Não sou PT, mas sou racional. Não dá pra negar quando algo é feito e quando há desmonte.

  5. Há uma série de erros na EBC. Vamos lá e baseado em algumas coisas citadas no texto*:

    1- tv pública na Europa
    Na Europa, a tv pública veio antes da privada. Ou seja, elas disputam audiência de igual pra igual com as não públicas.

    Claro que foram apenas citados alguns exemplos, mas posso encaixar mais uma tv pública de qualidade: a sueca SVT. Quem aqui assistiu ao último Eurovision, concordará comigo com o show de transmissão que deram, que aliás ela até presta consultoria a outras emissoras tanto na Suécia como em outros países da Europa.

    2- tv pública nos EUA e no Brasil
    Nesses dois locais foi o inverso: a tv pública veio depois das privadas. E a ideia de tornar a TV Brasil numa BBC, desculpem (a crítica não é ao autor da reportagem acima), foi um engano imenso. Injetaram bilhões nessa emissora, pra ser traço enquanto que a Cultura continua sendo um exemplo.

    Posso citar um exemplo de canal público que realmente é educativo? TV Escola. Esse canal sim cumpre seu dever, sem ‘puxar a sardinha’ pra nenhum lado.

    * parabéns pela matéria aliás, sem as torcidas que vemos por aí de gente (as mesmas caras de sempre) achando que a revisão da EBC foi um ‘golpe’.

  6. Concordo em partes com o artigo. O governo do PT se apoderou sim da EBC para difundir sua ideologia. Quem acompanhou a TV Brasil e a Voz do Brasil, principalmente, nesse período de fim de governo percebeu que a estrutura de comunicação, que deveria ser pública e idependente, serviu como mecanismo de propagandear a ideia de golpe. Sem falar no gabide de empregado de emprego de companheiros aliados de longa data. Acho que o governo Temer deve fazer agora o que i governo do PT não fez nos últimos anos

    • Era isso que eu ia falar. O PT não fez nada pela comunicação pública e aparelhou a EBC até os dentes. Ao entrar o novo governo o presidente valorizou os da casa colocando-os em cargos de chefia antes de petistas. A esperança voltou aos funcionários. Além disso reviu os altos custos de companheiros que tinham contratos milionários de programas e serviços. Pode até ser temporário mas já fez diferença.

  7. Não vi em nenhum desses anos nenhuma análise séria, científica – auditada – digamos assim, da qualidade dos programas ou programação dos veículos da EBC – apenas opiniões parciais claramente oposicionistas – aliás como toda a narrativa que levou à destituição da Presidente – as gravações livra-jato que o digam. A TVE/RJ – base da TV brasil – já existia há 40 anos e com excelentes serviços prestados à população e a classe trabalhadadora da radiodifusão brasileira – independente da importancia da TV Cultura. Acreditar que personagens tão nefastos e antidemocrático como Temer e seus 40 protegidos – possuem alguma noção ou sensibilidade para entender a importancia da pluralidade da comunicação pratica ali, é piada de marionete – desses que se alimentam dos canais comerciais e repetem bordões com zumbis cegos. Basta assistir programa a programa e comparar com as outras. Triste Brasil!

  8. Tenho dúvidas se sua vinculação ao ministério das comunicações não geraria um conflito Samuel…afinal a anatel está ali debaixo.Parabéns pela matéria.

  9. Desculpa discorda, a TV Brasil atual não faz o papel de Tv. Pública. Paga altos salários a alguns poucos e não atinge o público alvo. Ou seja dinheiro gasto (meu, seu, de todos) a toa. Com raros, repito, raros programas o resto é pura propaganda indireta política.
    Que saudades de Gilson Amado que quando criou com parcos recursos, produziu muito mais.

  10. Parabéns pela reflexão, Samuel. Acrescentaria apenas, para questões conceituais, que a TV Pública diz respeito ao cidadão. E a TV Comercial diz respeito ao consumidor. O papel estratégico da TV Brasil no ambiente das redes abertas é extremamente estratégico num país pobre onde a TV é o grande entretenimento da população. Cabe a ela ampliar as perspectivas de pensamento, formação de opinião e conhecimento ao mesmo tempo que entretém. A faixa infantil “A Hora da Criança”, a faixa de Reflexão, e as várias produções nacionais e internacionais, de altíssima qualidade e diversidade, realizadas com a produção independente brasileira, que só caberiam numa emissora pública estavam contempladas e atendiam a demanda de uma parcela da sociedade que buscava algo mais na programação da TV. Seria um desastre perder o que se construiu até aqui. Que seja bem sucedido o novo Presidente da EBC.

    (*)a audiência da TV Brasil é pertinente à das programações de canais da operação de TV paga. E depende de construção, hábito, e fortes doses de investimento em marketing. Criar hábito, desfazer hábitos arraigados é uma tarefa permanente e perseverante.

  11. Olá Samuel,

    Parabéns pela análise. Fiquei feliz em ver a Tela Viva com tal conhecimento da TV pública e concordo totalmente com suas informações e opiniões. Só não concordei com o comentário do Sérgio, pois, além das causas que você apontou, um dos bons motivos que colocou a EBC onde está foi justamente a empáfia e o desprezo com que trataram aqueles que a fizeram um projeto viável no seu surgimento: as TVs universitárias, comunitárias, educativas e legislativas. Quantos programas delas hoje existe na grade? E esse distanciamento foi uma política implantada pela própria Teresa, que via nesses e outros parceiros os tradicionais ‘afiliados’ das TVs comerciais, uma relação do ‘eu mando’, ‘vocês obedecem’, se quiserem, senão não tem conversa! Obviamente, a TV Brasil precisava mais deles do que o contrário. A gestão do Nelson Breve (sem trocadilho) tentou mudar, mas tal política estava impregnada, inclusive no Conselho. Daí, o resultado mais nefasto é que, ao contrário do Ministério da Cultura que teve defensores ferrenhis, quando a EBC entrou em risco, a rede social que possibilitou sua existência já havia se cansado de servir de massa de manobra.

  12. Contratar ex-reporter da globo por quase 600 mil em meio a uma crise terrível no brasil demonstra todos os erros do governo e da EBC.

  13. A EBC, como órgão público difusor da cultura e do perfil social dos brasileiros, deverá ser sempre tratada como prioridade estratégica do Estado brasileiro e não de Governos e seus Partidos, não se deve deixar a comunicação audiovisual brasileira relegada exclusivamente aos interesses privados, mas prover um canal que atenda à comunicação sócio-cultural dos brasileiros.
    Sua missão não é nem poderá ser JAMAIS a disputa pela audiência e sim a relevância de sua programação e a presença territorial.
    Todavia, a exemplo das empresas Estatais mencionadas acima (NHK, PBS, BBC, DW, Etc…), a excelência técnica, a qualidade de transmissão e inequívoca relevância de sua programação deverão ser os parâmetros de orientação desta comunicação tão fundamental para a identidade do Brasil.
    Assim, e uma vez que estratégias e recursos públicos vem sendo fortemente aplicados na produção audiovisual INDEPENDENTE brasileira, me parece no mínimo equivocado que se promova qualquer diminuição da presença deste Canal no País.

  14. É claro que o saneamento administrativo e a isenção ideológica devem ser aplicados o quanto antes à EBC, para que todas as questões acima possam ser avaliadas e implementadas com a honestidade de propósitos necessária, pois, conhecendo uma quantidade de profissionais que lá estão há anos, tenho certeza de que esta relevância e excelência os motivariam muito mais do que salários ou benesses. A EBC deverá, de uma vez por todas, ocupar-se do papel de ser a referência do Brasil em comunicação pública.

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