Publicidade
Início Análises | Artigos Proibir franquias por lei: o pior caminho

Proibir franquias por lei: o pior caminho

O segundo semestre pode ser marcado por uma das mudanças mais significativas no modelo de telecomunicações desde que o modelo atual foi implementado, há 20 anos. E não estamos falando sobre o PLC 79/2016, em tramitação no Senado e que prevê a possibilidade de conversão das concessões de telefonia fixa em autorizações. A mudança que pode alterar significativamente a forma como o acesso de Internet vai ser prestado nos próximos anos decorre do PL 7182/2017. Trata-se de um projeto que altera não a Lei Geral de Telecomunicações, que acabou de completar duas décadas de vida, mas sim o Marco Civil da Internet, que tem três anos de existência (Lei 12.965/2014). O projeto, que vem do Senado, já passou pela Comissão de Defesa do Consumidor e está na reta final de final de tramitação na Comissão de Ciência e Tecnologia, acrescenta mais um item no rol de direitos assegurados aos usuários de Internet: a direito à “não implementação de franquia limitada de consumo nos planos de internet banda larga fixa”. Trata-se de mais um inciso aos 13 itens já previstos no artigo 7 do Marco Civil, que classifica o acesso à Internet como “essencial ao exercício da cidadania”. Originalmente, o Marco Civil já nasceu com a garantia, ao usuário, de “não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização” e “manutenção da qualidade contratada da conexão à internet”.

A razão pela qual essa alteração legal é tão significativa do ponto de vista da oferta de serviços de conexão à Internet é o fato de que, na prática, só haverá uma forma legal de vender banda larga fixa: diferenciando a velocidade do acesso. O mesmo Marco Civil já havia limitado a discriminação por qualidade, ao estabelecer os princípios da neutralidade de rede. Ficará, agora, proibida também a discriminação por quantidade.

A proposta de alteração da lei não especifica o tamanho das empresas provedoras que deverão obedecer esta regra, nem a tecnologia com que a banda larga fixa será oferecida, de modo que o efeito é geral. Não por acaso, todas as empresas que vendem banda larga, de empresas de TV por assinatura, banda larga via satélite, provedores de acesso por rádio, pequenos e médios provedores regionais e, obviamente, as grandes empresas de telecom, se manifestaram preocupadas com essa alteração legal. No limite, a restrição à franquia afetará qualquer um, do provedor de WiFi numa praça pública do interior (a não ser que WiFi seja considerado banda larga móvel), passando pela lan-house, aos serviços da estatal Telebras e chegando à multinacional provedora de fibra ótica em um grande centro urbano. Ou à gigante de Internet que queira colocar a sua banda larga em um balão (ou banda larga em balão será considerada banda larga móvel?). Sobra para todo mundo, pois não há sequer previsão de que o assunto seja regulado depois.

Notícias relacionadas

Além disso, a Internet é um ser em constante transformação. Não se pode prever hoje quais serão os serviços que serão criados e demandados amanhã, nem que qualidade de rede eles exigirão, que tipo de infraestrutura demandarão. Estabelecer hoje que algo nunca poderá acontecer amanhã, com raras e especiais exceções, é pura perda de energia. Ainda mais quando o limite se aplica a apenas um ponto do ecossistema.

É esse tipo de problema que surge quando se resolve colocar em lei, de maneira genérica e ampla, algo que precisa ser tratado com atenção às diferentes nuances e variações. Por esta razão existe um ente regulador.

O fato é que não existe uma única banda larga fixa. Existem dezenas de tecnologias, diferentes tamanhos de empresas, tipos de clientes, cenários competitivos e, obviamente, diversos modelos de negócio. A atividade de telecomunicações, até o momento, não é considerada um crime. Ao contrário, a liberdade de iniciativa é um direito assegurado pela Constituição tanto quanto a liberdade de expressão, a manifestação do pensamento ou a inviolabilidade das comunicações de dados.

Se a Internet é essencial ao exercício da cidadania, é essencial a todos os direitos. E em alguns momentos é necessário mediar e modular os diferentes direitos individuais. A própria Constituição estabelece que o ordenamento da forma de explorar as telecomunicações caberá a uma lei. No caso, a Lei Geral de Telecomunicações, que dá à prestação dos serviços em regime um elevado grau de liberdade (“a liberdade é a regra”, diz a LGT) e estabelece um regulador para modular estes serviços. O Marco Civil da Internet também prevê a atuação empresarial ao assegurar a “liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei”. O que está em debate agora é justamente alterar a lista de princípios previstos para criar uma limitação legal à atividade das empresas de infraestrutura, por conta de uma alegada ameaça aos direitos do consumidor no caso de adoção das franquias. Um tema cujo debate está longe de estar esgotado.

As empresas de telecomunicações falharam ao deixar de apresentar à sociedade um conjunto razoável de informações e propostas de boas práticas quando a discussão sobre a abrangência do modelo de franquias começou, há pouco mais de um ano. Assumiram que o assunto iria esfriar, e perderam. Teria sido razoável discutir ali quais seriam os limites de franquia adequados, em que condições, qual a demanda de infraestrutura gerada pelos diferentes serviços e perfis de usuários, qual o status das redes hoje e projeções futuras, quais os investimentos necessários etc. Mas o tempo passou e nada aconteceu. Sem uma proposta vinda a partir da indústria, tudo indica que vai prevalecer a (pior) solução, vinda de fora: uma restrição legal, pura e simples, que virará bandeira eleitoral para meia dúzia de parlamentares e vai jogar o problema para uma inevitável e infindável disputa judicial.

A Anatel também falhou. Ao emitir a sua primeira cautelar sobre o tema, em abril de 2016, chegou a pedir a apresentação dos planos comerciais das empresas e os procedimentos de comunicação para que fossem discutidos com a agência. Parecia um encaminhamento adequado, mas em seguida, no calor das repercussões negativas sobre a questão das franquias, uma nova cautelar optou por simplesmente proibir a prática e o resto do debate ficou de lado. A agência ainda abriu uma “consulta informal” sobre o tema, sem nenhum resultado até agora, e depois afirmou que não iria mais tratar do assunto, lavando as mãos. Fato é que até então, a agência nunca havia visto franquias de dados como um problema regulatório, tanto que a prática é aceita nos serviços móveis sem nenhum tipo de óbice. Se o entendimento vai ser mudado, ela precisa explicar as razões e fundamentar sua decisão.

O ministro Gilberto Kassab também emitiu opiniões divergentes sobre o tema, mostrando-se mais preocupado com a opinião pública do que com uma discussão técnica e legal sobre o assunto. Falhou ao não ter deixado claro, desde o começo, que esse debate deveria se dar na esfera regulatória, pela sua complexidade e especificidades.

Também os órgãos de defesa do consumidor e entidades militantes das causas da Internet, que comemoram como uma vitória a provável introdução das restrição às franquias no Marco Civil, falharam. Falharam ao aceitarem que o Marco Civil seja alterado pontualmente quando sabem que o tema requer cuidado técnico e intervenção mediada. Não se espera de quem sempre defendeu o Marco Civil como uma conquista da sociedade que se aceite mudanças pontuais na lei, porque se hoje é para restringir a atuação das empresas, no futuro poderá ser para afetar qualquer outro direito assegurado pelo mesmo Marco Civil. E existem dezenas de projetos alucinados em tramitação no Congresso que podem chegar facilmente a este ponto.

Não é de hoje que as empresas de telecomunicações são demonizadas pelos órgãos de defesa do consumidor, pelos movimentos de militância na Internet e pelos próprios parlamentares. Parte dessa imagem ruim pode ser atribuída à qualidade dos serviços ou à ausência de infraestrutura em grande parte do país, mas qualquer pessoa que conheça mais de perto a realidade e a dimensão dos serviços prestados (e não abra mão da honestidade intelectual), sabe que a culpa não pode ser atribuída apenas às empresas. A burocracia para instalação de infraestrutura é surreal (quando não corrupta), a carga tributária e regulatória é desproporcional aos benefícios trazidos pelos serviços e aos riscos oferecidos, o país tem uma limitação de renda que vai muito além da falta de banda larga e há uma ausência completa de políticas públicas setoriais que incentivem a expansão da infraestrutura e correção destas distorções de acesso. Um pouco de alteridade e vontade de encontrar objetivos comuns (que possam ser alcançados na prática) ajudaria a todos nesse debate.

7 COMENTÁRIOS

  1. Texto impecável. O Brasil é um país adolescente, suas instituições não funcionam nem em defesa do nosso bem maior a democracia. Na questão da regulação de telecom o velho já morreu mas o novo ainda não nasceu. Quanta estupidez.

  2. Excelente análise, muito lúcida e sem ideias pré concebidas.
    As grandes operadoras,a Anatel e o MCTIC se omitiram dessa discussão e a Internet no Brasil correr o risco de voltar 10 anos no passado.
    Os “defensores” dos consumidores aceitam candidamente que na banda larga móvel a franquia é aceitável e esquecem que os provedores usam ainda muitos rádios que tem limitações naturais de capacidade e existem muitos gargalos de backhaul no Brasil (que diga-se de passagem é muito maior que os bairros previlegiados que tem fibra óptica e onde estão os principais criticos a franquia).
    As redes de satelite também dependem da franquia para se viabilizarem.
    O Brasil tem apenas metade de suas residencias com internet fixa e apenas 4% de previlegiados tem fibra óptica e reclamam da aplicação da franquia.
    A boa intenção de defender o consumidor vai prejudicar todos os consumidores, especialmente os mais carentes e os que ainda não tem internet e ficariam mais tempo excluidos.

  3. otimo texto,fica claro que o problema é dessa corja de parlamentares imundo ao lado das empresas que nao oferecem suporte e nem opcoes dignas ao consumidor

  4. Que artigo bem escrito. Parabéns! Políticos oportunistas existem en qualquer país, mas aqui assim como a corrupção a coisa é exponencialuzada. Damos um passo à frente e dois para trás. Os burocratas também não ajudam em nada. Preocupados com a meia duzia barulhenta e com sua pele, fazem qualquer coisa e dane-se o futuro do país. São, via de regra, irresponsáveis e, despreocupados com o futuro da nação. Deviam envergonhar-se!

  5. De repente, os políticos viraram os maiores vilões para o negócio da internet, como se a internet como negócio estivesse acima de tudo, inclusive da garantia à cidadania e ao direito à comunicação proporcionada pela banda larga.

    O projeto de lei, na minha visão de leitor e pesquisador das políticas de comunicações, acertou ao não estabelecer uma assimetria regulatória, excluindo da lei os pequenos e médios provedores e/ou determinadas tecnologias. Criaria uma discriminação, uma desigualdade entre os usuários, que poderia reforçar diferenças regionais e de renda já enormes atualmente em se tratando de acesso à banda larga.

    Quanto a possíveis ameaças aos direitos dos usuários na MCI – uma que vez que “ameaçam” a liberdade de iniciativa com a proposta de lei em questão -, tenho plena certeza que a sociedade logo se manifestará contrária e se mobilizará, assim como fez com a ameaça da limitação no consumo de dados. Tanto é que a Anatel agiu (após ser duramente criticada na pessoa de seu ex-presidente) por medida cautelar contra a franquia de dados.

    A banda larga se tornou essencial para o exercício da liberdade de expressão e da cidadania. Se antes o papel de informar, entreter e educar era atribuído (e ainda é, mas por pouco tempo!) à TV e ao rádio, agora é a internet banda larga que toma para si essa tarefa. Seja na forma de vídeos, áudios e textos, o indivíduo se torna protagonista do processo de comunicação, e não mais um simples receptor de conteúdo elaborado e escolhido por grandes empresas.

    Estão aí alguns dos motivos para que a limitação no consumo de dados seja proibida no Brasil. A banda larga sem esse tipo de barreira pode ser usufruída em sua plenitude, embora não resolva o problema das desigualdades do acesso, em parte por conta da ausência de infraestrutura em várias regiões, da falta de conhecimentos básicos de boa parte da população para manejar dispositivos eletrônicos e, ainda, da renda escassa de boa parte dos brasileiros.

    Talvez se a banda larga fosse ofertada em regime público, o Estado poderia implementar políticas públicas mais consistentes e duradouras, aliadas ao estabelecimento de obrigações legais de universalização, modicidade tarifária, qualidade e continuidade do serviço, como é na telefonia fixa (serviço, há 20 anos, considerado como essencial). Mas, infelizmente, parece-me que o regime público na prestação de serviços de telecomunicações chegará ao fim caso o PLC 79 seja aprovado no Congresso.

Deixe um comentário para Basilio Rodriguez Perez Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Sair da versão mobile