Impactos do PL das Fake News vão além da liberdade de expressão

Foto: Pixabay

O Projeto de Lei nº 2.630 de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e relatoria de Angelo Coronel (PSD-BA), se propõe a ser a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. A proposta ficou conhecida como PL das Fake News, inferindo um mérito louvável – o combate à desinformação na Internet e em aplicativos de mensagens. Os meios para se chegar a esse fim é que preocupam, inclusive ao setor de telecomunicações.

Sob críticas, o último relatório de Angelo Coronel esteve em vias de ser votado nesta semana, mas a votação foi adiada para a próxima terça-feira. Talvez seja necessário mais tempo do que isso. Entre várias das questões já levantadas, a necessidade de cadastro de números de celular traz desafios e possibilidade de ônus não apenas para operadoras, mas aos próprios usuários. 

Celular

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A sugestão para que operadoras recadastrem usuários da base e enviem checagens periódicas mostra um profundo desconhecimento de como funcionam não apenas as teles, mas também as plataformas de Internet. Um cuidado maior com o cadastro de novos clientes é salutar, evitando o uso de CPFs de pessoas já falecidas ou sem a checagem de duplicidades. Mas a operação de recadastro periódico seria trabalhoso e oneraria a operadora, que possivelmente repassaria os custos ao consumidor.

A limpeza de base periódica das teles já é feita com o critério inatividade de recargas de um chip. Mas executar o recadastro exigiria uma estratégia de atendimento humano para verificação de documentos, ou no mínimo o investimento em inteligência artificial como reconhecimento facial – o que, por si, já representa outro problema de privacidade que já levantou questionamentos em outras ocasiões. 

O uso de CPFs inválidos e/ou roubados é crime de falsidade ideológica, previsto no Código Penal. Não é preciso uma lei específica para sugerir a ilegalidade (ainda que não seja a tipificação como crime) da utilização desses documentos em cadastros junto a operadoras para um fim fraudulento. 

Além desses pontos, o compartilhamento de informações de clientes de operadoras é um tema sensível. Basta ver o caso do compartilhamento de dados entre operadoras e o IBGE. A ministra Rosa Weber em seu voto proferido na sessão do Supremo Tribunal Federal que aconteceu no dia 6 de maio manteve a medida cautelar que suspendeu os efeitos da Medida Provisória 954/2020, que obriga o compartilhamento de informações entre o órgão e operadoras.

O relatório de Angelo Coronel prevê, no seu artigo 8º, que os serviços de mensageria privada deverão solicitar os números desabilitados às operadoras de telefonia para validar a suspensão ou não de contas no serviço. Sem uma Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mesmo sendo números desabilitados, o processo em si tem um histórico que o torna sensível.

Vinculação

Conforme aponta no Art. 8º da proposta de lei, a vinculação da numeração do celular a cadastros em redes e aplicativos de mensagens como WhatsApp também levanta uma questão: se todas as empresas de redes sociais e aplicativos passarem a vincular oficialmente o número, como isso seria sincronizado com o processo de portabilidade numérica? O texto pressupõe um diálogo entre os provedores de aplicação e as teles, uma burocratização que, a depender da agilidade das empresas, poderia levar mais tempo que os usuários estariam dispostos a esperar. É importante lembrar que as operadoras já se manifestaram no passado com ressalvas contra o uso de números de celular no WhatsApp. Recursos de numeração são escassos e regulados pela Anatel. Criar uma vinculação obrigatória entre esses números e aplicativos pode suscitar discussões sobre o alcance da atribuição regulatória da Anatel sobre serviços OTT.

Haveria também a necessidade de algum sistema para intermediar e/ou integrar uma plataforma para a verificação dos números. Colocar à Anatel esse trabalho seria equivocado, uma vez que a agência não atua na regulação de serviços de valor adicionado (SVAs). 

Até que ponto poderia ser a atuação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, criado pela proposta da lei, para lidar com números vinculados ao serviço celular (SMP) é outra questão em aberto. Curiosamente, a formação de membros desse conselho prevê apenas um representante do setor de telecomunicações, mas nenhum da Anatel ou do Ministério das Comunicações.

Preocupa também a redação vaga nesse artigo. Existe a possibilidade de se perder o acesso às redes e aplicativos quando a operadora desabilita o número. Essencialmente, a tática existente de sequestro de contas por hackers seria potencializada por meio de mais essa possibilidade, algo ainda mais grave em caso de roubo do aparelho. 

Outras questões

Uma das críticas levantadas nesta sexta-feira, 26, pela Coalizão Direitos na Internet, de que plataformas pudessem retirar qualquer conteúdo denunciado como crime para evitar punições, já existe na prática com a retirada de conteúdos que podem ser legítimos em redes como o YouTube. A mecânica de direitos autorais facilita a denúncia de suposto uso indevido, o que pode fazer o algoritmo do site suspender automaticamente um vídeo. É possível pedir disputa da denúncia, mas o site de vídeos do Google avisa que uma judicialização poderá levar ao pagamento total de honorários dos envolvidos caso o usuário perca o processo. Ao dificultar a defesa, acaba inibindo criadores de conteúdo.

Um dos princípios da disseminação fácil das fake news é justamente porque há pouca checagem do conteúdo – as pessoas repassam sem ler ou investigar se é verídico. O PL 2.630 ganhou tração em redes sociais, junto a celebridades e até parlamentares justamente da mesma forma: com um título chamativo, mas com conteúdo duvidoso.

O documento recebeu 152 sugestões de emendas, e pode ser conferido clicando aqui. (Colaboraram Marcos Urupá e Samuel Possebon)

2 COMENTÁRIOS

  1. Prezado Bruno,
    suas pontuações são interessantes, mas não entendo que seria o caso de algo tão aprofundado que chegue a ter uma interferência sob a portabilidade numérica. Pelo que entendi é uma forma de criar um histórico sobre o número de telefone e uma responsabilidade sobre a sua utilização, não vejo tão negativa a iniciativa. Precisa ser encontrado um mecanismo de organizar isso, a proposta pode ser sim uma solução.

    • Olá Scheila, obrigado pelas suas considerações. Na minha interpretação do PL, o número vira um mecanismo autenticador comum para vínculo em todas as redes sociais e aplicativos de mensagem. Com esse vínculo oficial das empresas, o que me preocupa é haver uma burocracia a mais na hora de migrar. O cliente precisaria se recadastrar na migração, e isso valeria para todas as redes sociais vinculadas? Ou ele poderia fazer como hoje: migra e não há nenhuma necessidade de segunda ação nas plataformas digitais? Isso é uma barreira – a autenticação de dois fatores não é um recurso comumente utilizado. Ao meu ver, do jeito que está a redação, está vago.

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