Publicidade
Início Análises | Artigos Bello ciao: é o fim do dinheiro de papel?

Bello ciao: é o fim do dinheiro de papel?

Um motorista entra no seu carro e escolhe no mapa de navegação um posto de combustível. Quando para na frente da bomba selecionada e desliga o motor, o sistema reconhece o posto pelo GPS do carro, a capacidade do tanque do modelo, o tipo de combustível e o preço. Com base nisso, reserva o valor na forma de pagamento pré-selecionada.

A pessoa sai do carro para a parte mecânica da operação, que é encher o tanque. A carteira digital só é debitada do valor correspondente à quantidade registrada na bomba após o abastecimento. O motorista recebe no aplicativo ligado ao carro ou por e-mail um recibo da compra.

Notícias relacionadas

Por enquanto, a cena acontece para quem está a bordo de um Mercedes e usa o sistema Fuel & Pay na Alemanha. Mas já há experiência semelhante aqui no Brasil com o Sem Parar – a diferença é a presença do frentista. Ambos são exemplos da velocidade com que está avançando a ubiquidade dos meios de pagamento eletrônicos.

A base de usuários das carteiras digitais deve crescer 70% até 2025, saltando dos atuais 2,6 bilhões para 4,4 bilhões de usuários únicos em todo o mundo. Os dados fazem parte de pesquisa elaborada pela Juniper Research em uma análise desse mercado.

De acordo com as previsões, China e Índia serão responsáveis por 69% de todas as transações com carteira digital em 2025. O alinhamento entre os canais de comércio físico e online eleva a performance do setor de uma maneira jamais vista.

O aumento será motivado, principalmente, pela maior utilização dos pagamentos mobile e das demais ferramentas de comércio eletrônico que receberam impulso com a pandemia, motivando mudanças no comportamento dos consumidores.

Os pagamentos por aproximação feitos com carteiras digitais ultrapassaram pela primeira vez aqueles feitos em dinheiro nas lojas físicas ao longo do ano passado. De acordo com a pesquisa Worldpay from FIS Global Payments Report 2021, os pagamentos em espécie caíram dez pontos percentuais, representando 20% das transações globais feitas presencialmente. Ao mesmo tempo, o número de pagamentos feitos com carteiras digitais nos pontos de venda cresceu mais rápido que os realizados com cartões de plástico.

No Canadá, Reino Unido, França, Noruega, Suécia e Austrália os pagamentos em cash caíram pela metade em 2020, enquanto nos EUA esse volume foi reduzido de US$ 1,4 bilhão para US$ 1 bilhão em um ano.

A vantagem que o papel moeda sempre teve sobre os demais meios de pagamento é a facilidade de acesso. Com a base de dispositivos móveis (tablets e celulares) na casa dos 14 bilhões, segundo a Statista, e a chegada de tecnologias como o 5G (e o 6G já em gestação na Ásia), as transações financeiras passarão a ser cada vez mais digitais.


Crescimento de dispositivos móveis no mundo de 2020 a 2024. Fonte: Statista

Leia mais: A revolução dos pagamentos

Em outros artigos meus, já mencionei os benefícios que o 5G vai trazer para outras tecnologias, incluindo inteligência artificial e Internet das Coisas (IoT). Geladeiras terão seu próprio meio de pagamento cadastrado e podem garantir a entrega recorrente dos produtos que as pessoas consomem com frequência. Adeus supermercados???

No setor de IoT, há uma oportunidade interessante: quem dominar os protocolos de comunicação e os softwares, tornando-os intuitivos para um consumidor cada vez menos ludita, terá um grande negócio em mãos. A tecnologia pode responder a desafios como a economia de energia através do monitoramento da temperatura de refrigeração da geladeira ao mesmo tempo que garante a integridade dos alimentos.

O custo do dinheiro

O dinheiro digital pode substituir o papel moeda sem a desvantagem dos cartões, por exemplo, produtos aos quais uma parte da população não tem acesso. Mas tudo tem seu preço, até fabricar dinheiro.

Quem viu a série La Casa de Papel lembra da estrutura imensa exigida na produção de dinheiro físico. Impressoras enormes, materiais especiais para dar resistência e dificultar a falsificação, entre outros. Após a prensa, ele ainda passa por uma complexa operação logística para chegar até agências bancárias, caixas eletrônicos e pontos de venda espalhados pelos nossos 8,5 milhões de km2.

Imagine o custo de distribuir papel moeda pelas 30 ilhas habitadas das Bahamas no Caribe, espalhadas em uma faixa de 13 mil km2 de oceano. No Brasil, o gasto com impressão de dinheiro realizada em 2020 chegou a R$ 437,9 milhões para fabricar R$ 100 bilhões em papel-moeda. Sim, fazer dinheiro custa dinheiro; e não custa pouco.

Diante dos dilemas do custo do dinheiro, da desvinculação do padrão-ouro nos EUA e na esteira da crise de 2008, Satoshi Nakamoto criou a rede bitcoin, que se tornaria a primeira experiência de moeda digital – com uma diferença fundamental: as transações são peer-to-peer, como uma mensagem de WhatsApp, e não têm intermediação de bancos.

Embora não seja realizada por terceiros, a transação é verificada por meio dos nodos da rede de usuários do sistema e gravada em um banco de dados descentralizado chamado blockchain, o que garante seu registro único e não modificável.

Leia o artigo sobre computadores quânticos e como eles podem ajudar as criptomoedas

Apesar da sofisticação do conceito, o blockchain retorna a transação de moedas ao estágio original, em que cada operação era registrada numa caderneta – só que agora digital.

No âmbito financeiro, semelhante ao ouro, o Bitcoin pode ser enquadrado como ativo especulativo (bem material), dinheiro commodity (mercadoria), unidade de conta (bem de troca) – por ser empregado como meio de troca e possuir uma escassez relativa, além de cotação própria, tenta enquadrar-se na ISO 4217, código que representa moedas correntes.

Mesmo passando por períodos de volatilidade, as criptomoedas não estão sujeitas às regras dos Bancos Centrais, o que as torna de certa forma “perigosas” para os governos, pois a administração do valor da moeda nacional é instrumento de política econômica.

Surge uma dúvida pertinente: afinal, DOCs, TEDs, PIX não são moedas virtuais também?! Sim, mas intermediadas pelos bancos, que integram um intrincado sistema global de sucessivos empréstimos entre instituições. Cria-se dinheiro que não existe (mas existirá no futuro, como no caso de um financiamento, por exemplo). A esse mecanismo se dá o nome de reservas fracionárias e é o que permite aos bancos emprestarem dinheiro e gerarem valor para a economia.

Livres da intermediação bancária, as criptomoedas têm pouca circulação como meio de pagamento na economia real, exceto pelo PayPal e a promessa de Elon Musk de aceitar bitcoins para a compra de carros da Tesla. Assim, ainda não se equivalem ao papel moeda. 

Os governos nacionais buscam enfrentar a ameaça das criptomoedas (bitcoin, Etherium, etc) com o CBDC, ou Central Bank Digital Money.

A China é um dos países mais avançados na substituição do dinheiro de papel. O yuan digital tem a mesma apresentação do físico e não é uma criptomoeda. Está sob controle do BC chinês e as agências que operam as carteiras digitais são obrigadas a enviar os dados à autoridade monetária para prevenir crimes como lavagem de dinheiro.

Outro país que avançou bastante foi a Suécia. Os locais já são familiarizados com pagamentos digitais por meio do app Swish, tão onipresente nas transações comerciais dos suecos que comerciantes acham pitoresco quando alguém saca uma nota de papel.

a e-krona, a CBDC sueca, está em fase de testes até 2022. As autoridades pedem que as pessoas mantenham uma reserva de dinheiro físico para casos de crises ou guerras.

Os bancos centrais precisam estar preparados para um cenário hipotético em que todas as pessoas decidam, de uma hora para outra, converter suas criptomoedas e outros recursos virtuais em dinheiro oficial. A impossibilidade de todos fazerem a conversão minaria a confiança da população nos sistemas financeiros, que poderiam entrar em colapso.

Por isso, argumentam, é importante que o dinheiro permaneça acessível a 100% das pessoas e não inteiramente na mão de companhias privadas, como Tencent, Alibaba, PayPal, Google, etc.

Outro risco inerente ao ambiente digital diz respeito à segurança. Por mais sofisticado que seja, o blockchain será mais afetado na medida em que as criptomoedas se espalhem pelo planeta. O mesmo vale para as CBDCs. O cenário de um colapso financeiro global por causa de hackers que derrubaram o sistema foi retratado na série Mr. Robot, mais ou menos o mesmo alerta feito pelo Riskbank (BC sueco). Se todo seu dinheiro for digital, no caso de uma pane você fica sem dinheiro nenhum.

Além disso, há um problema extra: os deep fakes, vídeos gerados por inteligência artificial em que uma pessoa pode ser inteiramente substituída por outra. Entre 2019 e meados de 2020, havia mais de 50 mil desses vídeos na web. Eles podem ser usados para forjar um discurso político, implicar alguém em um crime, produzir memes ou imagens pornográficas. Há evidências de que eles conseguem enganar sistemas de biometria facial – que, entre outras coisas, garantem acesso às contas bancárias ou carteiras digitais.

O dinheiro físico está conosco desde o século VI A.C. e as notas surgiram na China no século X, popularizando-se a partir da Suécia no Ocidente, em 1661. Na época, tornou-se uma tecnologia revolucionária para facilitar transações comerciais. Estamos chegando a um novo ponto de disrupção para aposentar uma solução humana muito engenhosa.

Para ter sucesso nessa jornada, o dinheiro digital precisará garantir sua disponibilidade, acessibilidade e a confiança que o papel moeda trouxe. Como escreveu o historiador Yuval Harari em Sapiens, o dinheiro não é uma realidade material, e sim uma construção psicológica e, portanto, um sistema de confiança mútua. “As pessoas estão dispostas a fazer essas coisas quando confiam no produto da imaginação coletiva. A confiança é a matéria-prima com que todos os tipos de dinheiro são cunhados”.

* Sobre o Autor – Omarson Costa atua como Conselheiro de Administração, com formação em Análise de Sistemas e Marketing, tem MBA e especialização em Direito em Telecomunicações. Em sua carreira, registra passagens em empresas de telecom, meios de pagamento e Internet. As opiniões manifestadas nesse artigo não necessariamente refletem a posição de TELETIME.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

Sair da versão mobile