Diante de incontestáveis indicadores de universalização e qualidade dos serviços fixos e móveis de acesso à internet em banda larga, o encerramento das concessões de telefonia fixa tem transcorrido sem maiores repercussões, demostrando que a Anatel tem méritos na condução desse segmento da infraestrutura. É preciso dizer, no mínimo, que as telecomunicações mostraram aos demais setores regulados que a evolução tecnológica e a livre iniciativa – aqui entendida como a ausência de controle de natureza política sobre a entrada e o investimento privado, algo ainda muito presente nos demais segmentos da infraestrutura nacional – tornaram possível abandonar o modelo tradicional de regulação de monopólios ou oligopólios não competitivos. Construiu-se uma estrutura de mercado competitiva, com reduzidas barreiras à entrada e à saída, em que os riscos normais da atividade passaram a ser de fato arcados pelos agentes privados que a exploram, ao invés de compartilhados pelo Estado com toda a sociedade, como costuma ocorrer quando grandes operações colapsam.
A despeito do ambiente competitivo que se construiu, a "tecnologia" de regulação que pode perpetuar esses bons resultados, baseada na livre iniciativa, ainda é permanentemente desafiada por uma visão de Estado interventor, comum em nossa sociedade. A regulação adequada a um setor de infraestrutura que opera como uma atividade econômica competitiva é o tema deste artigo, que pretende provocar reflexões dirigidas à revisão do Plano Geral de Metas de Competição (PGMC).
Com o anacronismo das concessões, o PGMC tornou-se o principal mecanismo de regulação de uma atividade econômica que, embora ainda permaneça sob titularidade do Estado, passou a ser explorada exclusivamente sob o regime privado. Nem todos percebem que esse regime jurídico se tornou o único fiador da segurança socioeconômica que atingimos nas telecomunicações. A responsabilidade estatal só é limitada porque o regime privado promete ampla liberdade de agir às firmas, impedindo que eventuais perdas venham a ser indevidamente "socializadas". É esse regime, inclusive, que oferece segurança aos milhares de pequenos empreendedores que imobilizaram capital próprio em redes de fibra ótica por todo o país, tanto quanto às operadoras de redes móveis que, entre 1998 e 2015, desembolsaram cerca de R$ 88 bilhões (em valores corrigidos pela inflação) apenas pelo direito de uso dos blocos de radiofrequência licitados nas formas e condições estabelecidas pelo Poder Concedente.
Intervenções do PGMC
Preocupa, portanto, a falta de motivação e de pertinência em certas intervenções propostas no PGMC porque abalam a confiança no regime jurídico que ampara toda a operação em telecomunicações. O indiscriminado e descalibrado controle de preços que pode ser imposto nos mercados de atacado relacionados ao serviço móvel é o exemplo mais evidente da falta de motivação e pertinência nas intervenções sugeridas. Explica-se.
A própria Anatel atesta que cerca de 95% da população já está coberta com, no mínimo, um sinal 4G. O cronograma de entrada do 5G está adiantado em relação ao contratado. Aferidores independentes da velocidade de transmissão dão conta que o Brasil dispõe de infraestrutura capaz de atender satisfatoriamente à demanda, destacando-o em relação à qualidade medida nas redes 5G. Segundo a UIT, os preços de varejo representam menos de 1% da renda per capita nacional, em comparação a uma variação de 1,5% a 2,3% no mundo. A Anatel constatou que a saída da Oi Móvel do mercado gerou melhorias na qualidade do serviço consumido pelos antigos usuários da empresa. Não há, portanto, nenhuma evidência de falta de competição no serviço móvel, diante dos bons indicadores de cobertura, qualidade, preço e consumo. Não obstante, a área técnica da agência sustenta que o acesso às redes móveis deve ser franqueado a preços reconhecidamente incompatíveis com as despesas operacionais e de capital que têm sido incorridas pelas operadoras. Os remédios não têm qualquer pertinência com o diagnóstico do mercado.
Essa falta de preocupação em motivar a imposição de novos condicionamentos em serviços privados está relacionada a uma interpretação equivocada do art. 130 da LGT, segundo o qual as prestadoras não têm direito adquirido à permanência das condições vigentes quando da expedição da autorização ou do início das atividades. De fato, não há essa garantia. O que o regime privado assegura sim aos investidores (art. 128) é que a Agência não imporá condicionamentos sem uma consistente fundamentação. Segundo a lei, os condicionamentos devem ter vínculos, tanto de necessidade como de adequação, com finalidades públicas específicas e relevantes. Como não há dados sobre a operação do SMP – nem mesmo o índice de concentração (HHI) – que consigam se compatibilizar com esse critério legal, entendo como ilícito o descalibrado controle de preços proposto no PGMC para esse mercado.
Espectro
Chama a atenção também o apelo retórico na linha do "use ou ceda o espectro ocioso". O simples bom senso, neste caso, não é capaz de amparar a decisão de realocar para quaisquer interessados os blocos de RF adquiridos licitamente em leilões públicos, sem a devida compensação pecuniária ao titular do direito de uso durante o período de vigência da autorização. Segundo a lei, haverá relação de equilíbrio entre os deveres impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos.
Essas diretrizes que caracterizam o regime privado de exploração de serviços de telecomunicações oferecem a segurança jurídica necessária para perpetuar a estabilidade operacional do setor. Não me considero um legalista e nem pretendo centrar meus argumentos em aspectos jurídicos, mas é preciso reconhecer que o papel do Estado e o tipo de política pública que prevalecerá nessa nova fase do setor serão moldados pelo entendimento que venha a se consolidar não apenas sobre os limites legais da atuação regulatória, mas também sobre os efeitos esperados desse tipo de intervenção.
Nessa reflexão em busca da abordagem mais adequada para o PGMC, é preciso avaliar, com honestidade, se o sucesso em expandir a oferta de banda larga com competição se deve mais às medidas assimétricas vigentes nos últimos anos ou à livre iniciativa permitida a milhares de operadores, de variados portes, que tomaram o risco de investir em infraestrutura para atender à demanda por acesso à internet diante da inércia e incapacidade da então maior concessionária do país. Sob a ótica apenas da regulação, considero mais efetiva para a evolução da oferta a isenção de obrigações às Prestadoras de Pequeno Porte (PPP) do que a imposição de obrigações pelo PGMC às operadoras com poder de mercado significativo (PMS). O investimento privado, em ambiente propício, em geral é mais efetivo do que o controle estatal para transformar a realidade, sobretudo quando potenciais falhas de mercado são mitigadas ou compensadas pela vacância deixada por uma grande incumbente.
Investimentos e competição
Ocorre que aquele ambiente propício ao investimento já não mais existe. Não há mais espaço para expandir acessos. Menos ainda para se pensar em promover desenfreadamente a competição, a não ser por meio de uma visão equivocada segunda a qual a capacidade de concorrer é desassociada do investimento. Em uma atividade intensiva em capital, cujo mercado atingiu uma estrutura altamente fragmentada e com limitada possibilidade de expansão das receitas, não é economicamente racional promover a competição. Nos próximos anos, recomendaria que o Estado facilitasse movimentos de concentração que demonstrassem sinergias e eficiências.
Defende-se que a intervenção no SMP pretende replicar a estrutura de mercado que se construiu no SCM. Além de não ser economicamente sustentável em longo prazo, a fragmentação que hoje se observa no SCM não é minimamente replicável no SMP. Um estudo recente da Ookla, baseada no Speedtest Global Index, é categórico ao concluir que a qualidade da rede móvel em mercados europeus com quatro operadoras tende a ser inferior à observada em países com apenas três rivais. Isso se deve, segundo o estudo, à maior disponibilidade de Capex, como proporção da receita, em mercados cuja estrutura é mais compatível com a necessidade de investimento. Forçar a estrutura do SMP no Brasil a mimetizar o mercado de SCM equivale a condenar a capacidade de investimento do setor, que já apresenta baixa rentabilidade para o estoque de capital e uma relação Capex/EBITDA bem acima da média mundial.
A estratégia de fomento à concorrência no SMP proposta na atual versão do PGMC se baseia na cessão compulsória da capacidade das redes das MNO existentes a preços subsidiados. Essa estratégia fomentará a entrada de operações ineficientes, ou seja, de ofertas de preços de dezenas de MVNO cuja existência passará a depender da perpetuação dos subsídios gerados com o irreal posicionamento de preços no atacado. Se os preços hoje praticados já não geram receita suficiente para remunerar o estoque de capital, não é difícil prever o que acontecerá quando inúmeras MVNO passarem a praticar preços artificialmente reduzidos para assegurar fluxos de caixa livres do risco de amortização de investimentos anteriores, fragmentando a receita do SMP.
Controle de preços
Na audiência pública que realizou, a Anatel sinalizou que o controle de preços no mercado de MVNO terá como referência os preços médios de varejo descontados da margem EBITDA. Se isso for implementado, os valores resultantes, por definição, não serão suficientes sequer para cobrir o Opex, e não apenas o Capex. Essa simples constatação conceitual pode ser numericamente verificada a partir dos demonstrativos de resultados das operadoras móveis.
Igualmente arriscado para o futuro das redes e da qualidade do serviço prestado será a implementação do balcão de realocação de espectro proposto na revisão do PGMC, que matará no nascedouro o mercado secundário de espectro. Ao invés de tutelar condutas eventualmente abusivas em negociações de atacado, a Anatel propõe realocar, a valores subsidiados, blocos ainda ociosos em faixas do espectro licitadas por valores elevados e que carregam obrigações de cobertura de inúmeras localidades incapazes de amortizar o investimento. Nessa realocação o beneficiado não assume obrigações, podendo capturar apenas as oportunidades rentáveis que se apresentarem. O frágil balanço do bem-sucedido modelo "filé com osso" fica comprometido com essa entrega arbitrária e sem contrapartidas do espectro para quaisquer interessados que assim solicitarem.
Intervenção vs. livre iniciativa
Ninguém pode negar o enorme benefício gerado pelos pequenos provedores de acesso à internet ao investirem em redes de fibra por todo o país, levando conectividade significativa de forma acelerada a uma população que ainda estava desassistida. A Anatel tem uma preocupação legítima em consolidar essa oferta universal, mas isso não se resolve dentro do PGMC, porque não se trata de promover a competição, mas de perpetuar uma oferta universal de banda larga em localidades de reduzida viabilidade econômica. É preciso lembrar que esse estoque de capital, construído em circunstâncias favoráveis – mercado em crescimento e com baixas taxas de juros –, vai se depreciar com o tempo e precisará ser reposto. Que políticas públicas precisam ser concebidas para assegurar que o reinvestimento recorrente em redes continue sendo possível em todo o país? Certamente não são medidas de fomento à competição que esmaguem os preços e reduzam ainda mais a escala da operação.
Para concluir, entendo que a regulação adequada à nova fase do setor de telecomunicações não está refletida na proposta do PGMC. Ela deveria se manter centrada na livre iniciativa e em uma visão de competitividade baseada no investimento, na qual a imposição de medidas assimétricas se restringisse a falhas de mercado demonstráveis e dirigidas a operações realmente de pequeno porte. Na minha avaliação, o grau de intervenção proposto no PGMC é excessivo e incompatível não apenas com o regime jurídico dos serviços, mas com as necessidades reais dos agentes econômicos. E a construção de uma abordagem regulatória adequada passa, em grande medida, pela solução que será adotada nessa revisão do PGMC.
* – Sobre o Autor: Igor Vilas Boas de Freitas é ex-conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). As opiniõpes expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.