A Superintendência de Relações com o Consumidor da Anatel teve um ano cheio em 2024. A atuação da superintendência foi do desenvolvimento de indicadores que permitam entender o impacto dos serviços de telecom na conectividade significativa a campanhas de conscientização de uso consciente dos serviços, passando pelos temas mais complexos, como a implementação do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor (RGC) e o tratamento das reclamações e monitoramento dos indicadores de satisfação dos consumidores com os serviços.
De uma maneira geral, pode-se dizer que a avaliação dos serviços melhorou (notas gerais mais altas) e que as reclamações cairam (3,7% em relação a 2023), o que já é uma tendência histórica. Mas a área tem grandes desafios pela frente.
Cristiana Camarate Quinalia, superintendente de relações com o consumidor da Anatel, pontua nesta entrevista alguns destes desafios. Para ela, o RGC, regulamento que rege estas relações de consumo, tem um alto impacto no dia-a-dia das empresas e afeta diretamente os direitos dos usuários, e por isso as mudanças são tão complexas. No final do ano passado, o conselho diretor da agência optou por revogar alguns pontos do regulamento que entraria em vigor este ano, e também adiou o início da implementação do manual operacional.
Ela também manifesta as preocupações da agência com relação à implantação de um modelo autorregulado pelo setor, que ainda caminha de maneira lenta, na visão da superintendente.
Camarate rechaça as críticas das grandes operadoras de que a Anatel está desenhando regras que, ao serem assimétricas para pequenos operadores, criam um "consumidor de segunda categoria".
Nesse sentido, a preocupação que a superintendência de relações com o consumidor tem de fato neste momento, diz ela, é sobre como tratar os serviços substitutivos, que são aqueles prestados pela internet no modelo over-the-top (ou seja, por meio das redes de banda larga), mas que geram insatisfações e reclamações do consumidor. E as ações nesse sentido já começaram no final do ano passado, com as primeiras empresas sendo notificadas.
TELETIME – Nos últimos anos, os índices de queixa do consumidor registrados pela Anatel estão em queda. Qual a explicação? Existe uma melhora efetiva ou as pessoas estão se queixando menos ou desistindo de acionar a agência?
Cristiana Camarate – Os índices de chamadas não estão caindo porque as pessoas estão desistindo. Tem um movimento da Anatel de cobrar o atendimento satisfatório com a ouvidoria das empresas, e isso ajudou. Atribuo ao processo continuado de uma fiscalização regulatória pró-ativa, com resolução de forma sistêmica sobre temas que sejam muito reclamados ou muito problemáticos. As quedas (nos índices de reclamação) serão menos acentuadas nos próximos anos, porque os problemas grandes serão atenuados. E sempre, estatisticamente, haverá uma quantidade de reclamações, pelo volume de contratos. Esse ano o índice de satisfação completa 10 anos e a sua evolução tem ensinado muito. Hoje, o nosso maior desafio é captar essa satisfação em todas as frentes. Uma pesquisa telefônica hoje é muito mais desafiadora, precisa ouvir 60 mil pessoas.
Quais os aprendizados nesses 10 anos da pesquisa de satisfação e qualidade percebida?
O que verificamos ao longo dos anos é que a percepção de qualidade e satisfação podem ter relações diferentes. Por exemplo, na banda larga, a qualidade influencia a satisfação diretamente. Na telefonia móvel, o que mais pesa pela qualidade percebida é o atendimento. Entender isso é fundamental para orientar o nosso trabalho de regulação do mercado. Na pesquisa a gente olha agora os padrões de uso, e isso também nos ajuda a ter um levantamento mais preciso das habilidades digitais. A pesquisa que sai em breve vai dar um indicativo muito interessante em relação ao uso pelos idosos e como podemos corrigir algumas coisas.
No ano passado a Anatel adiou a vigência do Regulamento Geral do Consumidor, o que gerou críticas por parte de operadoras de médio porte, e ainda suspendeu no final do ano vários artigos do RGC que ainda seriam colocados em prática. O que aconteceu? Como foi para você votar nessas questões estando no Conselho Diretor como substituta?
Eu votei nos recursos em relação ao manual operacional e entendi que de fato havia pertinência em alguns dos pedidos. Como não trabalhei diretamente nos manuais, a não ser no começo, ficou mais fácil ter um distanciamento. Eu entendi as dificuldades que estavam ali colocadas para a implementação dado que é um regulamento que tem um quê de continuidade, mas tem alterações importantes que demandam alterações sistêmicas. Acredito que a entrada em vigor em setembro vai permitir uma entrada mais madura por parte das empresas e o consumidor vai perceber mais as mudanças do que seria se tivéssemos mantido o prazo do ano passado. Já a anulação dos itens eu não votei. A manifestação do gabinete estava dada pelo Raphael (Raphael Garcia de Souza, conselheiro substituto anterior). Agora temos indicativos de reabrir e alterar o manual e estamos nessa fase, com diálogos com as empresas, representantes do Cdust e Senacon, e precisamos de muita seriedade para fechar em abril para que a parte de implementação que falta ainda, sobretudo na parte de ofertas, seja realizada e a gente consiga entrar redondo em setembro. Até aqui, as empresas deram um bom feedback.
É normal que um regulamento como o RGC seja alterado de maneira tão significativa antes mesmo de entrar em vigor?
É um regulamento muito ligado ao dia a dia da operação e do consumidor. Por isso precisamos fazer tantos ajustes. A gente tentou levar ao máximo para um regulamento principiológico. Ele é longo, mas não é muito diferente do que o SART (Sistema de Autorregulação das Telecomunicações, organizado pelas operadoras), que é um documento de autorregulação. O que a gente fez foi simplificar, trazendo regras de outros regulamentos. Ele é mais principiológico e não queremos que ele precise de novas alterações. Em um mundo digital a gente tem referências a padrões obscuros, que podem ser entendidos conforme o momento. Isso gera uma preocupação nas empresas, que precisam se ajustar às mudanças sistêmicas. Mas isso é o que a gente quer, que elas tenham ética, governança. O diálogo entre a regulação responsiva e a autorregulação tem sido boa, mas o RGC é a base dos direitos e não tem como abrir mão. Ele permite que a gente atue de maneira responsiva e foque de maneira prioritária nos temas ou dores do consumidor. Isso tem resultado positivo.
Qual a sua avaliação das iniciativas setoriais de introduzir uma autorregulação para as questões do consumidor?
Eu acredito na autorregulação… talvez mais na co-regulação. Eu continuo acreditando que ela é possível, mas tem que ter uma ordem top-down da empresa, uma diretriz de compliance, que quer ter uma governança ética e de respeito ao consumidor.
Mas houve evolução nos esforços das empresas com autorregulação?
Eu gostaria de dizer que está indo de vento em popa, mas não vejo isso. Quero crer que ainda possa evoluir. O modelo da Febraban tem muitos anos. O SART tem pouco tempo. Funcionou o "Não me perturbe", mas em outros temas precisamos de mais avanço. Não acho que a queda das reclamações, por exemplo, tenham a ver com ele. Acho que tem muito mais a ver com a fiscalização regulatória, com alguns TACs que a gente fez, e com iniciativas individuais das empresas do que de atuação coletiva. Mas vejo que as empresas seguem comprometidas. Não é fácil, porque elas precisam se autorregular e se auto-punir. Não é simples. O conselho nos pediu para avaliar a efetividade do SART, e é preciso dizer que é necessário avançar.
Qual a sua avaliação em relação às assimetrias entre operadoras de pequeno porte e operadoras com poder de mercado significativo? Essa foi uma crítica muito grande das operadoras com Poder de Mercado Significativo ao RGC, e é uma crítica que também aparece no PGMC.
Entendo que, hoje, o RGC que passará a vigorar abarca e garante direitos aos consumidores de igual forma. Não compro essa ideia de consumidores de duas categorias. Porque, se fosse verdade, a gente teria que falar três categorias, por conta dos serviços substitutivos, dos serviços OTT. Esse consumidor sim é que deveria ser protegido, e não está sendo. Em relação às PPPs, são pequenas as diferenças (na regulamentação), como o horário do atendimento para serviços de utilidade pública. Esse caso não me preocupa. O que eu acho é que o PGMC pode endereçar diferentes categorias de empresa de telecom, porque algumas não são tão pequenas assim. Isso sim poderia repercutir nos demais regulamentos.
Mas para o consumidor pouco importa o tamanho da empresa.
O atendimento impacta muito a percepção do consumidor, e nesse sentido muitas vezes o atendimento em uma pequena empresa é muito melhor. O atendimento 24/7 não faz mais sentido porque provou-se que o consumidor não usa. Em pequenas empresas o atendimento é de 8 horas, e nesses casos o atendimento acaba sendo muito melhor.
A questão dos serviços substitutos, prestados pelas empresas de Internet, não está sendo tratada no novo Decreto do SAC?
O Decreto do SAC vigente pega os setores regulados e eles querem ampliar para setores não-regulados com o corte de faturamento, podendo ter regulações específicas. A gente tem regras específicas para telecom. O RGC foi enxugado justamente para evitar repetir as regras. Agora, sobre as empresas substitutivas, isso tem repercutido na nossa área com o aumento das reclamações percebidas. Ano passado tivemos 20 mil reclamações só desses serviços. Isso excluindo os serviços de mensageria, porque seriam mais 60 mil, e excluindo fraude. Estamos falando de reclamações que chegam relacionadas a plataformas de streaming e redes sociais, mas isso não inclui Whatsapp, por exemplo, porque vem muita coisa misturada, porque muitas vezes as pessoas reclamam do Whatsapp como canal de atendimento. Fica claro que a gente precisa melhorar a nossa coleta também.
Como vocês encaminham essas reclamações?
A gente começou a oficiar as empresas OTT e pedir para elas responderem, mesmo elas não sendo reguladas de uma maneira tradicional, mas são grandes consumidoras das redes que prestam um serviço substitutivo. O consumidor quer a solução do seu problema e vê na Anatel uma instituição confiável para responder. Por isso começamos a oficiar, alertando para os problemas que os consumidores estão tendo. E esse ano de 2025 queremos melhorar essa forma de atender de receber essas reclamações.Estamos fazendo já o follow-up, as empresas (OTT) nos posicionaram sobre as ações tomadas e avalio como positivo esse primeiro momento. É algo relativamente novo, começamos a fazer isso em dezembro, e vamos trabalhar nisso mais esse ano.
E nos casos em que os produtos OTT são parte do produto da operadora de telecom, como plataformas de streaming incluídas em combos ou aplicativos de mensageria, livros etc?
Nesse caso, a responsabilidade é das operadoras de telecom que vendem o serviço, porque está na fatura deles. Isso é algo que a gente consegue diferenciar. A tendência é que a medida que esses serviços sejam incluídos nos planos das operadoras, o volume de reclamações também cresça, mas isso não está dentro das 20 mil reclamações de que eu falei.
Como é feito esse filtro?
A gente analisa por palavra chave, mas já percebemos que é preciso melhorar a forma de acolher as reclamações para fazer um direcionamento mais preciso. Vamos fazer isso por meio de Inteligência Artificial ainda em 2025 (ler matéria nesta edição).
E a atuação da superintendência na parte de educação para o consumo?
Na parte de educação para o consumo, precisamos melhorar as ações de interação e esclarecimento nas redes sociais, mas estamos avançando em outros formatos, como teatro, educação para escolas públicas. Queremos levar isso para outros Estados, outras ações inovadoras, dialogando melhor com esse público mais digital. E cada vez mais percebemos que é importante campanhas e ações de esclarecimento para idosos, que são os mais impactados com fraudes. Temos um acordo com a Unesco para idosos, mas não podemos perder de vista as crianças, que precisam ser educadas desde cedo para o consumo consciente das redes.
Vocês desistiram de fazer uma validação prévia de cadastro para as chamadas de cobrança?
Entendemos que não há necessidade de criar quando o mercado já oferece soluções. Isso foi relatado pelo conselheiro Artur Coimbra quando ele se despediu, na última reunião de novembro. O que faremos é uma a ponte entre os setores, porque já existe essa solução. Entendemos que é um sistema de mercado que gera eficiência para as empresas evitarem ligações desnecessárias. O feedback que tivemos é apenas que há uma questão de preço, mas essa negociação é livre entre as empresas. E por enquanto, as ligações de cobrança não entram na regra do 0303, pois o conselho determinou diligências.
Hoje um dos principais problemas para o consumidor sem dúvida são as chamadas indesejadas, e mais do que isso, as ligações de fraude. Como está esse acompanhamento na Anatel?
Esses assuntos estão sendo conduzidos por nós aqui na SRC em conjunto com a Superintendência de Controle de Obrigações. A gente acompanha porque isso se reflete nas reclamações. Depois de dois anos e pouco acompanhando esse problema de perto, percebemos de fato uma migração do tipo de chamadas. Se antes o problema era a oferta indesejada, hoje o problema é a fraude. Por isso a Anatel intensificou as ações de combate a spoofing, criou o Origem Verificada, para tentar separar o joio do trigo. O Stir Shaken, ou Origem Verificada, é um projeto que está sendo conduzido pela SCO e que ainda passa por alguns ajustes, com a atualização dos celulares 4G e 5G, e queremos fazer um soft opening para que as empresas de diversos setores comecem a aderir o quanto antes. Na parte de combate à fraude, que também está na SCO, entramos aqui com a parte de educação para o consumo. Com essas medidas e com o 0303, já evitamos 180 bilhões de ligações indesejadas. Em termos de reclamações entre 2023 e 2024 houve queda. Eram cerca de 23 mil reclamações, contra 22 mil em 2024. A nossa preocupação hoje é com a fraude, porque isso gera danos para todos os serviços legítimos e atrapalha a relação das empresas com os consumidores.