A regulação moderna enfrenta um dilema fundamental: equilibrar a necessidade de reduzir encargos burocráticos e estimular a inovação sem comprometer a qualidade normativa e a proteção do interesse público. Esse desafio se tornou ainda mais relevante em um contexto global marcado por avanços tecnológicos acelerados, mudanças na dinâmica dos mercados e uma crescente demanda por eficiência administrativa. Para lidar com essa complexidade, diferentes abordagens regulatórias têm sido propostas, entre as quais se destaca o modelo One-In, X-Out (OIXO), que condiciona a introdução de novas normas à revogação de regras preexistentes.
O OIXO tem sido promovido como um mecanismo de racionalização do arcabouço regulatório, evitando a inflação normativa e buscando simplificar a interação entre reguladores e agentes econômicos. Em princípio, a ideia de substituir normas obsoletas por regras mais eficazes parece intuitiva e desejável. No entanto, a implementação desse modelo tem gerado intenso debate, sobretudo em relação à sua real eficácia na melhoria da qualidade regulatória. A experiência internacional sugere que a simples eliminação de normas não é, por si só, uma garantia de um ambiente regulatório mais eficiente, previsível ou equilibrado, embora diversas iniciativas mundo afora tenham reduzido custos administrativos e burocráticos[1].
Recentemente, o presidente Donald Trump emitiu uma série de Ordens Executivas com impactos significativos sobre as instituições governamentais. Entre elas, destacam-se a Ordem de 18 de fevereiro, que reforça a supervisão presidencial sobre as agências, inclusive as independentes[2], e a Ordem de 19 de fevereiro[3], que estabelece formalmente uma ampla iniciativa de desregulação.
Medidas da FCC
Em resposta a essas diretrizes, a Comissão Federal de Comunicações (FCC), sob a liderança do chairman Brendan Carr, anunciou um dos mais ambiciosos esforços de desregulamentação dos últimos anos. Por meio da iniciativa "In re: Delete, Delete, Delete", que permanecerá aberta para tomada de subsídios até 10 de abril de 2025, a FCC pretende revisar e eliminar normas consideradas onerosas ou desatualizadas, promovendo uma reavaliação abrangente do arcabouço regulatório vigente[4].
Ainda em sua fase inicial, a iniciativa convida empresas, cidadãos e organizações a sugerirem regulações passíveis de revogação, com base em critérios como a análise de custo-benefício, a obsolescência tecnológica, o impacto sobre a concorrência e a constitucionalidade das normas. Além disso, a proposta considera a sobreposição regulatória e os reflexos da recente decisão no caso Loper Bright, que revogou o precedente Chevron. O objetivo declarado é reduzir encargos desnecessários, estimular o crescimento econômico e impulsionar a inovação, alinhando o ambiente regulatório às novas dinâmicas do mercado.
A experiência internacional sinaliza que o OIXO, embora promova a racionalização do estoque regulatório, não melhora necessariamente a qualidade da legislação. No contexto da União Europeia, o relatório "Better Legislation for a Resilient and Sustainable EU" levanta questionamentos sobre a eficácia desse modelo. Segundo esse estudo, o OIXO não aborda aspectos fundamentais da boa regulação, como clareza, coerência e eficácia normativa, limitando-se a um critério meramente quantitativo. Além disso, sua implementação sem diretrizes claras pode comprometer objetivos regulatórios essenciais, uma vez que não há um mecanismo estruturado para avaliar os impactos da eliminação de normas sobre a proteção do consumidor, a concorrência e a estabilidade do mercado[5].
Outro ponto de crítica é o risco de que o OIXO gere um efeito ilusório de simplificação. A redução do número de atos normativos não significa, necessariamente, menos regulação. Em muitos casos, as normas eliminadas são incorporadas a instrumentos legislativos mais abrangentes, sem que isso represente um real alívio na carga regulatória. A simplificação normativa exige mais do que uma abordagem numérica de cortes regulatórios; requer uma análise aprofundada sobre a necessidade e a adequação de cada norma, garantindo que a eliminação de regras não resulte em lacunas jurídicas ou em um aumento da insegurança regulatória.
Abordagem sofisticada
Diante desse cenário, a melhoria da regulação demanda uma abordagem mais sofisticada, alinhada aos princípios de Better Regulation, que buscam promover maior acessibilidade, previsibilidade e participação no processo regulatório. Esses princípios defendem que qualquer esforço de desregulamentação deve estar ancorado em uma avaliação rigorosa da necessidade e da eficácia de cada norma, garantindo que sua eventual revogação não comprometa direitos fundamentais ou gere distorções no mercado.
Embora a proposta da FCC represente uma oportunidade para modernizar sua estrutura normativa, a referida agência sinaliza, pelo menos conceitualmente, que sua implementação será acompanhada de mecanismos rigorosos de avaliação. Com efeito, a eliminação de normas não pode ser guiada apenas pela busca de metas numéricas de redução, sob pena de fragilizar proteções essenciais e comprometer a estabilidade do setor de comunicações. Para que a iniciativa seja bem-sucedida, é fundamental que a agência desenvolva metodologias robustas para mensurar os impactos da desregulamentação, assegurando que a eliminação de regras não resulte em incerteza jurídica ou riscos desnecessários para consumidores e empresas.
A experiência europeia sugere que o verdadeiro aprimoramento regulatório depende de reformas estruturais que vão além da simples redução do estoque normativo. Melhorar a qualidade legislativa exige um compromisso institucional com a transparência, a previsibilidade e a eficácia das normas, garantindo que a regulação atenda aos interesses da sociedade de forma equilibrada e sustentável. A desregulamentação, portanto, não deve ser vista como um fim em si mesma, mas como um instrumento para fortalecer a governança regulatória, fomentar a inovação em caráter perene, e consolidar a confiança entre reguladores, agentes econômicos e cidadãos.
Além disso, uma estratégia de reforma regulatória deve considerar o papel das novas tecnologias e das transformações digitais no setor regulado. O avanço da inteligência artificial, da automação e das plataformas digitais está alterando profundamente a forma como a regulação deve ser estruturada, exigindo modelos mais flexíveis e adaptáveis.
Ricardo Campos destaca a importância de incorporar no direito modelos que permitam a proceduralização da proteção de direitos em contextos de regulação complexa e de novas tecnologias. Para ele, essa abordagem não se limita a garantir um processo regulatório mais dinâmico e flexível, mas também desempenha um papel essencial na redução da assimetria de conhecimento entre o Estado regulador e o setor regulado. Esse equilíbrio se torna especialmente relevante diante de um cenário em que a regulação precisa acompanhar, em tempo real, as transformações tecnológicas e os desafios impostos por mercados altamente dinâmicos[6].
Nesse sentido, a eliminação de normas inservíveis pode ser interpretada como parte de um processo regulatório necessário para garantir a operacionalidade das instituições governamentais. Como observa Ino Augsberg, sob uma perspectiva informacional do Direito Administrativo, o esquecimento de determinadas informações – como o excesso de normas acumuladas ao longo do tempo – é essencial para que as estruturas regulatórias permaneçam funcionais e eficientes[7]. No entanto, essa depuração normativa não pode ser conduzida de maneira indiscriminada. A simples redução do estoque regulatório, sem uma análise criteriosa dos impactos dessa supressão, corre o risco de transformar a simplificação normativa em um objetivo em si mesmo, desvinculado das finalidades estruturantes da regulação.
Regulação responsiva
Dessa forma, a substituição de normas obsoletas por regulações mais responsivas, fundamentadas em evidências e adaptadas às transformações do mercado, representa uma alternativa mais eficaz do que a mera revogação de regras sem um exame aprofundado de suas consequências. Afinal, a efetividade regulatória não se define apenas pelo número de normas eliminadas, mas pela capacidade do Estado de manter um arcabouço normativo que acompanhe as inovações tecnológicas sem comprometer direitos fundamentais ou a segurança jurídica.
A crescente necessidade de uma abordagem participativa na formulação e revisão das normas regulatórias reforça a importância do envolvimento de especialistas, acadêmicos, empresas e da sociedade civil. Esse processo colaborativo não apenas fortalece a legitimidade da regulação, mas também contribui para a construção de um ambiente normativo mais equilibrado e sustentável. Além disso, a participação ativa de diversos atores reduz o risco de que a desregulamentação seja capturada por interesses específicos, garantindo que o processo regulatório continue a servir ao bem comum. No caso da FCC, a recente tomada de subsídios representa uma oportunidade valiosa para diferenciar normas que impõem encargos desnecessários daquelas que desempenham um papel essencial na preservação da concorrência e na proteção do consumidor.
Na Anatel, seguimos essa mesma premissa, compreendendo que um dos desafios centrais da regulação é reduzir os custos de aprendizagem e adaptação às diversas normas que regem os serviços de telecomunicações. Nesse sentido, a chamada "guilhotina regulatória", uma adaptação do modelo OIXO ao contexto brasileiro, é apenas uma das estratégias utilizadas para promover um ambiente regulatório mais eficiente. Como exemplo, está sob minha relatoria a proposta de simplificação da regulamentação dos serviços de telecomunicações, cujo objetivo é sistematizar e revisar normas, eliminando aquelas que já não se justificam. Essa iniciativa busca beneficiar, sobretudo, os pequenos prestadores de serviços, garantindo que o excesso de burocracia não se transforme em uma barreira regulatória que prejudique a competitividade do setor.
Assim, a construção de uma regulação eficiente vai muito além da simples revogação de normas. Ela exige um compromisso permanente com a melhoria da qualidade regulatória, de modo a garantir segurança jurídica, previsibilidade e um ambiente propício à inovação. Mais do que reduzir a burocracia, trata-se de estabelecer um arcabouço normativo capaz de acompanhar a evolução tecnológica e econômica sem comprometer a concorrência nem desproteger os consumidores. Somente por meio de um processo regulatório dinâmico, pautado pela participação ativa dos diversos agentes envolvidos e pela busca constante do equilíbrio entre simplificação e efetividade, será possível consolidar um modelo regulatório verdadeiramente moderno, sustentável e alinhado aos desafios do futuro.
* – Sobre o Autor: Alexandre Freire é Conselheiro Diretor da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Presidente do Centro de Altos Estudos em Comunicações Digitais e Inovação Tecnológica da ANATEL (CEADI) e do Comitê de Infraestrutura de Telecomunicações da agência. Doutor em Direito pela PUC-SP. Pós-Doutor e Visiting Scholar na Faculdade de Direito na Goethe-Universität Frankfurt am Main e no Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory em Frankfurt am Main (Alemanha).
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Referências bibliográficas
[1] Cf. XANTHAKI, Helen. The 'One in, One Out' Principle: A Real Better Lawmaking Tool?. Bruxelas: Parlamento Europeu, Departamento de Políticas para os Direitos dos Cidadãos e Assuntos Constitucionais, 2023. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/supporting-analyses. Acesso em: 18 mar. 2025; TRNKA, Daniel; THUERER, Yola. One-In, X-Out: Regulatory offsetting in selected OECD countries. Paris: OECD Publishing, 2019. (OECD Regulatory Policy Working Papers No. 11). Disponível em: https://dx.doi.org/10.1787/67d71764-en. Acesso em: 15 mar. 2025.
[2] EUA. Casa Branca. Ensuring Accountability for All Agencies. Executive Order. Washington, D.C., 18 fev. 2025. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/02/ensuring-accountability-for-all-agencies/. Acesso em: 18 mar. 2025. O ato em questão tem como objetivo central reforçar a supervisão presidencial, garantindo maior responsabilidade e coerência na execução das leis federais. Para isso, estabelece que todas as regulamentações significativas deverão ser submetidas à análise prévia do Escritório de Informações e Assuntos Regulatórios (OIRA) antes de sua publicação. Paralelamente, o Escritório de Gestão e Orçamento (OMB) ficará encarregado de monitorar o desempenho das agências, que, por sua vez, deverão manter consultas regulares com a Casa Branca para assegurar alinhamento com as diretrizes do governo. Ademais, o ato dispõe que a interpretação oficial das leis federais, em nome do governo, ficará restrita ao Presidente e ao Procurador-Geral, reforçando o controle do Executivo sobre a formulação e aplicação das normas jurídicas.
[3] EUA. Casa Branca Ensuring Lawful Governance and Implementing the President's "Department of Government Efficiency" Regulatory Initiative. Washington, D.C., 19 fev. 2025a. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/presidential-actions/2025/02/ensuring-lawful-governance-and-implementing-the-presidents-department-of-government-efficiency-regulatory-initiative/. Acesso em: 18 mar. 2025. O decreto presidencial de 19 de fevereiro de 2025 estabelece diretrizes para a redução de regulações excessivas, assegurando que sejam compatíveis com a Constituição e alinhadas ao interesse nacional. Para isso, determina que as agências revisem e eliminem normas consideradas inconstitucionais, fundamentadas em delegações ilegais de poder ou que imponham custos desproporcionais à sociedade. Além disso, prioriza a fiscalização de normas cuja base legal seja claramente definida, garantindo maior segurança jurídica e previsibilidade. No que se refere à formulação de novas regulamentações, o decreto exige a observância de critérios rigorosos, com o objetivo de restringir a interferência governamental desnecessária e fortalecer a eficiência regulatória.
[4] FEDERAL COMMUNICATIONS COMMISSION. In re: delete, delete, delete. GN Docket No. 25-133. Public Notice DA 25-219. 2025. Disponível em: https://docs.fcc.gov/public/attachments/DA-25-219A1.pdf. Acesso em: 18 mar. 2025.
[5] Cf. XANTHAKI, Helen. The 'One in, One Out' Principle: A Real Better Lawmaking Tool?. Bruxelas: Parlamento Europeu, Departamento de Políticas para os Direitos dos Cidadãos e Assuntos Constitucionais, 2023. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/supporting-analyses. Acesso em: 18 mar. 2025.
[6] Cf. CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do Direito Global. Sobre a Interação entre Direito, Tempo e Tecnologia. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022, p. 316.
[7] AUGSBERG, Ino. Direito Administrativo Informacional: para uma dimensão cognitiva do controle jurídico das decisões administrativas. Trad. Luiz Felipe Osorio. São Paulo: Editora Contracorrente, 2023 p. 309, Edição do Kindle.