Telecom, data center e computação em nuvem: cada um com seu papel na transformação digital do País

Tomás Paiva, Vitor Amorim e Alessandra Ungria, advogados do Demarest Advogados

O armazenamento, o processamento e a distribuição de informações de forma segura, rápida e com baixa latência são cada vez mais importantes no atual momento da era digital. A população digitalizada e os agentes econômicos estão mais ávidos por aplicações e funcionalidades que, para seu correto funcionamento, exigem altas velocidades, capacidades e segurança em seu armazenamento e disseminação. Em um cenário como tal, os data centers e os serviços de computação em nuvem desempenham papel cada vez mais crítico. Essas infraestruturas e atividades são essenciais para assegurar ganhos de eficiência e viabilizar desde a navegação básica na Internet até o desenvolvimento e usabilidade de tecnologias complexas e sofisticadas, viabilizando a indústria 4.0.

Os investimentos em data centers e em computação em nuvem têm sido substanciais nos últimos anos – resultado da demanda crescente por serviços de armazenamento e processamento intensivo de dados, aproximando as aplicações dos usuários finais, o que decorre, por exemplo, do desenvolvimento de novas aplicações de Internet das Coisas (IoT). No atual estágio da economia, tais atividades são essenciais ao desenvolvimento e à inovação no ecossistema e ao funcionamento da própria economia digital, em escala global, o que, logicamente, também se aplica ao Brasil.

De acordo com o Brazil Data Center Report,[1] o mercado de data centers no país apresentou crescimento de mais de 600% entre os anos de 2013 e 2023, representando 40% do total de investimentos realizados na América Latina nesse segmento.[2] As cidades de Campinas e Barueri, por exemplo, ganharam reconhecido destaque como mercados secundários de interesse regional,[3] atraindo a atenção de investidores e desenvolvedores.[4] Tais números traduzem, dentre muitos outros aspectos, um movimento de migração das necessidades de tecnologia de informação das empresas brasileiras para a nuvem, reduzindo custos de manutenção de equipamentos on-premise mediante o compartilhamento dessa infraestrutura com múltiplos outros agentes econômicos, o que também coopera para a redução da pegada de carbono.[5] Trata-se da máxima da economia digital colaborativa.

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Como resultado deste desenvolvimento e da relevância crescente destas infraestruturas e dos serviços por elas viabilizados, o Poder Público tem voltado sua atenção ao mercado de data centers e de computação em nuvem. Estudos elaborados a pedido do Governo Federal apontam a necessidade de que o Brasil invista e expanda ainda mais suas práticas de fomento a esse setor, em prol da transformação digital do país.[6] Essa abordagem também é reforçada pela Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital),[7] que aponta a essencialidade desses investimentos para o desenvolvimento do ecossistema digital, gerando ganhos de bem-estar para a sociedade e economia brasileiras.

Em meio aos múltiplos debates encabeçados pelo Poder Público, surgem narrativas que imprimem algum nível de confusão entre data centers e computação em nuvem com o próprio setor de telecomunicações – o que não raras vezes serve de argumento para justificar uma maior intervenção estatal sobre esses mercados nascentes. Um exemplo dessas narrativas ocorre na União Europeia,[8] a partir do estabelecimento de uma correlação entre conectividade e serviços de armazenamento e processamento de informações, para sustentar a necessidade de um olhar de autonomia e soberania digitais. Com base nessas reflexões, surgem conceitos como "computação colaborativa conectada", o que induz à (falsa) percepção de que telecomunicações e serviços de armazenamento e processamento da informação estão convergindo.

A partir de uma compreensão de que (1) data centers e computação em nuvem são partes de uma cadeia cujo viabilizador são os serviços de telecomunicações, sendo que tais serviços (data centers + computação em nuvem + conectividade) se somam para atender às demandas do ecossistema digital, e (2) o setor de telecomunicações é, sob a ótica da demanda, um dos várias (e importantes) clientes das empresas ofertantes dos serviços de data centers e de computação em nuvem, questiona-se então o papel dos reguladores de telecomunicações com relação aos serviços de data centers e computação em nuvem, e sobre a necessidade de fazer incidir sobre eles a regulação direta própria do setor de telecomunicações – um segmento sabidamente marcado por falhas de mercado que justificam intervenção estatal ex-ante.

Tendo por pano de fundo a discussão acima, este artigo busca demonstrar que, embora exista uma relação parcialmente simbiótica e complementar entre os setores de telecomunicações e as atividades de provimento de data centers e de computação em nuvem, estes serviços não se confundem e não podem ser presumidos como convergentes. Pelo contrário, tais atividades possuem características e operam de forma distinta: na prática, enquanto data centers e computação em nuvem fornecem a capacidade necessária ao armazenamento e processamento de grandes volumes de dados, as telecomunicações relacionam-se à oferta de comunicação e conectividade propriamente ditas, necessárias à movimentação destes mesmos dados. Especificamente com relação ao Brasil, a prestação de serviços de telecomunicações foi definida pelo constituinte como um serviço público (prestado sob dois regimes econômicos distintos – público e privado), sujeitando-se a um regime de intervenção estatal ex-ante em razão de sua condição particular, sobretudo das falhas de mercado existentes e dos objetivos sociais perseguidos pela legislação setorial.

Do ponto de vista de mercado, serviços relacionados a processamento e armazenamento de informações – que, repita-se, não se relacionam com a movimentação, mas com a disponibilidade de dados – constituem atividades econômicas de livre exploração. Enquanto os serviços de telecomunicações foram explorados em regime de monopólio no passado e hoje operam em um mercado maduro e consolidado – decorrência de uma atuação pró-competição promovida pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) ao longo de mais de 26 (vinte e seis) anos –, os data centers e os serviços de computação em nuvem nascem em cenário bastante diverso, em decorrência das necessidades do ecossistema digital e do próprio avanço da indústria 4.0, e integram um ecossistema complexo e ainda em florescimento, o qual, como já atestado pelo regulador brasileiro, não suscita as preocupações concorrenciais que atingem o setor de telecomunicações.[9]

Ao fim destas breves linhas, espera-se demonstrar que, embora complementares, telecomunicações e serviços de data center e computação em nuvem não convergem e não se confundem, sendo desnecessárias intervenções estatais nos segundos, eis que estas, no final do dia, acabariam por elevar barreiras à transformação e à modernização digital do país, atrasando a geração de ganhos de bem-estar agregado para o Brasil.

Os serviços de telecomunicações no Brasil

Os serviços de telecomunicações inserem-se dentre as atividades econômicas que o constituinte brasileiro, em 1988, teve por bem alocar ao Estado, a quem cabe a sua prestação, diretamente ou por meio de concessão, permissão ou autorização.[10] Trata-se, portanto, de um serviço público, elevado a tal patamar diante de sua essencialidade à coletividade, reconhecida já desde a época da promulgação da Constituição Federal.

Em âmbito infraconstitucional, os serviços de telecomunicações foram definidos pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT) de forma estrita, especificados como o conjunto de atividades que possibilita a oferta da transmissão, emissão ou recepção de informações por meios diversos, tais como fio, radioeletricidade e meios ópticos.[11] São serviços com características legalmente bem delimitadas, relacionados com a movimentação da informação, de um ponto a outro, envolvendo necessariamente transmissão e recepção. São esses serviços que movimentam a informação e que, por expressa previsão legal, são tutelados pela ANATEL, instituída em 1997 como resultado da desestatização do setor, iniciada em 1995.

Os serviços de telecomunicações são ofertados no Brasil por empresas que recebem outorgas do Poder Público, a partir de concessões ou autorizações de interesse coletivo que permitem a oferta em modelo business to consumer (B2C). Na sua conformação B2C, conforme matriz constitucional, as telecomunicações são um autêntico serviço público e, nessa condição, são reconhecidamente atividades essenciais,[12] prestadas por agentes que "fazem as vezes do Poder Público" e atuam em benefício de toda a coletividade. Não por outro motivo que, muitas das vezes, a prestação de serviços de telecomunicações está sujeita a indicadores de qualidade, regras consumeristas, dentre outras.

O elevado nível de intervenção estatal sobre as telecomunicações brasileiras é decorrência dos próprios bens jurídicos que se buscou proteger com a abertura do setor (o que não significa que tal nível deva se manter artificialmente elevado mesmo com a evolução do mercado, já que todo ônus regulatório desproporcional se traduz em perda de bem-estar para todos os envolvidos, inclusive o usuário final). O nível de intervenção sobre as telecomunicações – a ser calibrado a todo momento – foi diretamente influenciado pelo objetivo maior de transformar este setor, promovendo a competição outrora inexistente. Aliás, a preocupação com a competição é da essência da regulação dos serviços de telecomunicações: como não poderia se esperar diferente, ao se abrir o setor à iniciativa privada, sendo ele "organizado com base no princípio da livre, ampla e justa competição entre todas as prestadoras" (art. 6º, LGT), buscou-se promover ampla e suficiente concorrência, evitando-se que os adquirentes de redes legadas e detentores de maiores recursos financeiros não atuassem em abuso do poder econômico. Não é sem motivo que a LGT prevê que compete ao Poder Público (i.e., à ANATEL) adotar medidas que promovam a competição e a diversidade dos serviços (art. 2º, III, LGT), atuando para corrigir os efeitos da competição imperfeita e reprimir as infrações da ordem econômica (art. 6º, LGT).

Passados já muitos anos desde a desestatização do setor, a ANATEL continua a exercer seu importante papel de tutela da concorrência, por meio de Regulamentos como o Plano Geral de Metas de Competição, agindo ex-ante para evitar o abuso de poder de mercado e promover a competição em um setor que, ao longo de mais de trinta anos desde sua plena abertura ao capital privado, encontra-se consolidado no país.

A presença estatal no setor de telecomunicações, mais do que exigida pela Constituição Federal em razão da lógica de serviço público, deriva da realidade própria deste setor e do paradigma de escassez que lhe é inerente, com constante alocação de recursos escassos a exemplo de espectro e recursos de numeração. Há também aspectos estruturais que persistem e requerem atuação estatal, mesmo passados anos da liberalização do setor, a exemplo de externalidades positivas e negativas de rede, economias de escala e escopo, permanência de barreiras para entrada, dentre outros.

A realidade de mercado subjacente às atividades de data center e computação em nuvem é completamente distinta.

Data center e computação em núvem

Data centers e computação em nuvem são atividades relativamente recentes, que têm se desenvolvido para fazer frente às demandas da economia digital, caracterizando um mercado ainda nascente e em plena evolução. A demanda por esses serviços surge atrelada à (recente) expansão dos níveis de conectividade em banda larga e à evolução da economia e da indústria 4.0, visando a acompanhar o avanço tecnológico, em contexto de disrupção e inovação.

Na prática, os data centers constituem instalações físicas ou virtuais que abrigam equipamentos e sistemas de computação, por meio dos quais se viabiliza o processamento e o armazenamento de grandes volumes de dados. Por sua vez, a computação em nuvem é a atividade que viabiliza a hospedagem e a execução de aplicações e serviços baseados em tecnologia de nuvem avançada, constituindo conjunto de recursos de computação que podem ser acessados de forma flexível, elástica e sob demanda com baixo esforço de gerenciamento.[13]

Os serviços de armazenamento e processamento de informação em larga escala podem ser conformados com diferentes arquiteturas, para permitir o funcionamento de "infraestrutura distribuída". Em linhas gerais, eles devem ser percebidos em uma abordagem de economia colaborativa como o compartilhamento de recursos de tecnologia de informações por diferentes agentes econômicos, por meio da Internet, suportado em redes de telecomunicações. O fato de os preços desses serviços serem calculados na medida do uso empregado pelos clientes gera importantes ganhos econômicos para as empresas, que não necessitam mais investir pesadamente em suas próprias infraestruturas de TI.

Serviços de data centers e de computação em nuvem, ressalte-se, são prestados majoritariamente com enfoque Business to Business (B2B), buscando atender os mais diversos players que integram o ecossistema digital e que precisam de maior capacidade de processamento de informações e dados. Estes serviços são globais e horizontais – i.e., neutros com relação às diferentes indústrias que deles fazem uso. E dentre os setores que fazem uso desses serviços, está o de telecomunicações.

Como bem aponta estudo da Analysis Mason, no setor de telecomunicações, prestadores fazem uso dos serviços de armazenamento e processamento de informações, inclusive por meio de nuvem pública, "da mesma forma que negócios de qualquer outra indústria, incluindo para o funcionamento de softwares de customer care, data analytics e inteligência artificial". Com relação às atividades relacionadas à gestão de redes, a consultoria anota que "funções de rede que controlam e gerenciam tráfego de usuários finais permanecem totalmente gerenciadas em nuvens privadas e infraestrutura on-premise. […] estimativas baseadas em pesquisas com operadores sugerem que menos de 1% dos workloads relacionados a redes de telecomunicações são realizados em nuvens públicas".[14]

Do ponto de vista legal, a operação de data centers e de serviços de computação em nuvem no Brasil é atividade econômica prestada em regime de livre iniciativa, cujo pleno exercício é assegurado nos termos da Constituição Federal.[15] É dizer, tais serviços inserem-se na própria definição de atividades econômicas em sentido estrito, não caracterizando um serviço público e/ou atividade sujeita a intervenção estatal ex-ante, eis que ausentes justificativas para tanto. A Lei da Liberdade Econômica chancela esse racional de livre exercício da atividade econômica, ao estipular a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas, como ocorre no caso deste mercado.[16]

O provimento de serviços por empresas de data centers e de computação em nuvem é marcado por liberdade e autonomia na condução dos negócios, resultando em arranjos comerciais diferenciados, o que coopera para o desenvolvimento de transformações tecnológicas e o atendimento às necessidades crescentes da economia digital global. O setor de data centers e computação em nuvem é caracterizado pelo dinamismo, com empresas operando com flexibilidade, inovando rapidamente e ajustando seus modelos de negócios de acordo com a demanda do mercado. Não há um mercado consolidado – aspecto que impõe autocontenção na intervenção estatal, em prestígio à livre iniciativa em seu corrente desenvolvimento, sem intervenções indevidas e/ou precipitadas, que podem rapidamente se tornar desnecessárias.[17]

 As poucas sinergias e as muitas diferenças entre o setor de telecomunicações e o setor de data centers e cloud computing

Considerando as peculiaridades do setor de telecomunicações e das atividades de data centers e computação em nuvem, há alguns pontos de sinergia, porém muitas diferenças.

De uma perspectiva de mercado, há algum nível de complementariedade entre as atividades, considerando que (1) prestadoras de telecomunicações comumente são clientes dos provedores de computação em nuvem e de serviços de data centers, muitas vezes buscando redução de custos operacionais, aumento de capacidade de dados, entre outras eficiências, enquanto, (2) por outro, os serviços de nuvem e os data centers comumente utilizam a conectividade e a infraestrutura ofertada pelas prestadoras de telecomunicações para operarem e expandirem seus negócios. De fato, sem conectividade, não seria possível ofertar serviços de armazenamento e processamento de informações de forma distribuída, global e escalável.  Atuando de forma conjunta com as telecomunicações, os operadores de data centers e os provedores de serviços em nuvem desempenham um papel fundamental na transformação digital do Brasil, contribuindo para a expansão da conectividade e o melhor aproveitamento de recursos no país.

Por outro lado, sem prejuízo a esta benéfica simbiose entre os serviços, há diferenças importantes entre as operações dos dois segmentos, que se posicionam em camadas distintas do ecossistema digital.

Do ponto de vista técnico, (1) os serviços de telecomunicações movimentam a informação entre diferentes pontos, transmissores e receptores, enquanto os serviços em data center e de computação em nuvem objetivam o processamento e o armazenamento de informações. O papel de cada agente econômico é distinto. A movimentação da informação armazenada e processada por operadores de data centers e provedores de computação em nuvem ocorre mediante serviços de telecomunicações contratados como insumo pelos operadores de data centers e provedores de computação em nuvem, por exemplo por meio de links privados, ou, ainda, por meio dos serviços de telecomunicações contratados pelos clientes dos serviços de armazenamento e processamento de dados, possibilitando a sua fruição.

Na perspectiva de mercado, (2) os serviços de armazenamento e processamento de informações operam essencialmente B2B, ao passo que, no setor de telecomunicações, a maior parte de demanda está do lado do mercado consumidor (B2C). Esse aspecto diferencia, de forma relevante, os chamados "efeitos de rede" entre os dois mercados. Historicamente, os efeitos diretos de rede no setor de telecomunicações, por exemplo na telefonia, foram aspectos determinantes para regulação concorrencial desses serviços, com forte atuação dos reguladores para incentivar a interconexão entre as diferentes redes. Os efeitos de rede nos serviços de armazenamento e processamento de informações são inexistentes ou, no máximo, indiretos.

O ritmo de inovação nos dois mercados também é diferente. (3) Ao passo que a inovação no setor de telecomunicações é razoavelmente lenta, com novas tecnologias sendo implementadas ao longo de muitos anos, com paybacks e depreciação alargados, os serviços de data centers e de cloud inserem-se em um ambiente de rápida e alta inovação, com novas tecnologias e serviços sendo desenvolvidos de forma contínua, a todo tempo. A recuperação de investimentos é feita de forma muito mais rápida e a depreciação dos equipamentos ocorre de forma acelerada, inclusive para permitir a oferta de equipamentos e serviços sempre no estado mais evoluído da arte, atendendo às necessidades da demanda.

Também do ponto de vista competitivo as diferenças entre os dois setores são relevantes. (4) O setor de telecomunicações ainda apresenta elevadas barreiras para entrada, com necessidade de imobilização de capital para implementação de infraestrutura ou, ainda, para aquisição de direitos de uso de recursos escassos, a exemplo de radiofrequências. O nível de concentração do mercado brasileiro e o nível de maturidade esperado por aqueles que queiram investir nesse mercado para competir pelo consumidor brasileiro são elevados, o que, também por esta ótica, dificulta a dinamização do setor. Por outro lado, com relação a data centers e serviços de computação em nuvem, o mercado está em franco crescimento, com constantes entradas e nível acirrado de competição pela demanda. Trata-se de um mercado nascente, sendo diversas as empresas que ainda não se digitalizaram, tratando-se, pois, de um "mundo novo a ser descoberto". O desenvolvimento de novas tecnologias, a exemplo das aplicações de Inteligência Artificial, cria demandas, por exemplo relacionadas a data centers para machine learning, mostrando que o potencial desse setor ainda não é totalmente conhecido.

Ainda, (5) o tratamento legal que é dado para cada uma das atividades no Brasil é diferente: os serviços de telecomunicações são enquadrados no país como serviços públicos, operados mediante delegação estatal e regulados pelo Estado brasileiro (mais especificamente pela ANATEL), com um histórico de monopólio estatal que atraiu a necessidade de intervenção pelo Poder Público a fim da garantia de competição, sendo setor consolidado e amadurecido no país. Por outro lado, os data centers e os serviços de computação em nuvem abrangem uma série de atividades não especificamente reguladas por lei, operando em regime de liberdade econômica e no contexto do desenvolvimento da economia digital, o que torna este mercado, repita-se, nascente e inovador, em constante destruição criativa, e que, portanto, não atrai a necessidade de regulação por sua própria essência.

Algumas dessas diferenças, destaque-se, são tão enraizadas e inerentes às características de cada mercado que sua constatação se dá a nível global. São diversos os estudos que, olhando para o paradigma europeu, reconhecem que (1) os serviços de telecomunicações integram mercado mais consolidado e maduro, no qual a inovação é desenvolvida ao longo de um período mais longo e diferido no tempo, e (2) o provimento de serviços em data centers e as atividades de computação em nuvem surgem em contexto de desenvolvimento tecnológico na nova era digital, com investimentos em inovação que são contínuos e em ritmo acelerado.[18]

Destarte, os setores de telecomunicações e de serviços de armazenamento e processamento de informações, embora complementares, possuem naturezas e funções distintas que os tornam únicos dentro do ecossistema digital. A relação simbiótica entre esses setores cria um ciclo virtuoso, no qual ambos se beneficiam das economias de escala e escopo, mas cujas cadeias de serviços não se confundem. Como consequência, é importante que o Poder Público, atento ao inovador mercado de data centers e computação em nuvem e à sua importância para a transformação digital do país, reconheça as características únicas do setor, especialmente se houver a tentação de aproximá-los para fazer incidir sobre os mercados nascentes a regulação ex-ante de telecomunicações.

Sobre os autores: Tomás Schoeller Paiva, sócio da área de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia (TMT) do Demarest Advogados; Vitor Amorim, sócio da área de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia (TMT) do Demarest Advogados; Alessandra Ungria, advogada sênior da área de Telecomunicações, Mídia e Tecnologia (TMT) do Demarest Advogados. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME 

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[1] JLL (2024). Brazil Data Center Report: Brazil main markets 2023 outlook. Disponível em:  <https://www.jll.com.br/pt/tendencias-insights/pesquisa/relatorio-data-center-brasil>. Acesso em: 17 out. 2024.

[2] Valor Econômico (2024). Brasil detém 40% dos investimentos em Data Centers. Disponível em: <https://valor.globo.com/patrocinado/dino/noticia/2024/02/27/brasil-detem-40-dos-investimentos-em-data-centers.ghtml>. Acesso em: 17 out. 2024.

[3] Os mercados secundários normalmente ofertam 100 a 600 MW de capacidade e recentemente se destacaram pelas novas oportunidades em mercados menos concorridos.

[4] JLL (2024). Perspectiva Global do Setor de Data Center para 2024. Disponível em: <https://www.jll.com.br/pt/tendencias-insights/pesquisa/perspectiva-global-data-center-2024>. Acesso em: 17 out. 2024.

[5] Nesse sentido, por exemplo, consta de análise publicada pela Amazon Web Services (AWS), um dos principais players do mercado de cloud computing e data centers, sobre a sustentabilidade atrelada aos seus serviços no Brasil, que resulta em "4,1 vezes mais eficiência em termos de energia e, quando otimizado, na redução de até 96% das emissões de carbono": About Amazon (2024). AWS can help reduce the carbon footprint of AI workloads by up to 99%. Here's how. Disponível em: < https://sustainability.aboutamazon.com/carbon-reduction-aws.pdf> . Acesso em: 09 jan. 2025.

[6] MDIC e ABDI (2023). Estratégia para Implementação de Política Pública para Atração de Data Centers. Disponível em: <https://tinyurl.com/4wkjrffv>. p. 299. Acesso em: 17 out. 2024.

[7] MCTI (2018) Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital). Disponível em: <https://www.gov.br/mcti/pt-br/centrais-de-conteudo/comunicados-mcti/estrategia-digital-brasileira/estrategiadigital.pdf>. Acesso em: 23 out. 2024.

[8] A exemplo do recente White Paper "How to master Europe's digital infrastructure needs?" (Brussels, 2024, COM(2024) 81 final), disponível em https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/white-paper-how-master-europes-digital-infrastructure-needs.

[9] Conforme amplamente repercutido na mídia, a Superintendência de Competições, em estudo realizado a pedido do Conselheiro Alexandre Freire, reconheceu que "[a]pesar de sua natureza complexa, a escala globalizada aliada a um mercado fragmentado e em expansão no setor de Data Centers, corroboram a visão de ausência da necessidade de ações regulamentares que visem assegurar a justa e livre competição entre os agentes envolvidos nesse segmento". Assim, apesar de o estudo ainda não estar disponível ao público, notícias da mídia indicam que a área técnica reconheceu a expansão acelerada do setor de data centers, com estimativa de investimentos de US$ 3,5 bilhões por ano no Brasil. Nos próximos 5 (cinco) anos, estima-se o mercado de data centers no Brasil atinja 1,21 mil MW, com um crescimento de 10,17% ao ano, e US$ 3,5 bilhões em receitas de co-location, com taxa de crescimento anual de 11%. Nesse sentido, vide: Miriam Aquino (2024). Estudo da Anatel descarta regulação do mercado de data centers. Tele.síntese. Disponível em: https://tinyurl.com/zmsk6dsr. Acesso em: 17 out. 2024. Nic.br (2024). Estudo da Anatel descarta regulação do mercado de data centers. Disponível em: https://www.nic.br/noticia/na-midia/estudo-da-anatel-descarta-regulacao-do-mercado-de-i-data-centers-i/. Acesso em: 17 out. 2024.

[10] Art. 31, XI da Constituição Federal de 1988.

[11] Art. 60 da LGT.

[12] Nesse sentido, vide: (1) STF. ADI 7118, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 10-10-2022, DJe-213 DIVULG 21-10-2022 PUBLIC 24-10-2022; (2) STF. RE 714139, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 18-12-2021, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-049 DIVULG 14-03-2022  PUBLIC 15-03-2022.

[13] OECD (2014). Cloud Computing: The Concept, Impacts and the Role of Government Policy. OECD Digital Economy Papers, No. 240, OECD Publishing, Paris. p. 4. Disponível em: <https://doi.org/10.1787/5jxzf4lcc7f5-en>. Acesso em 16 out. 2024.

[14] Analysis Mason (2024). The European telecoms regulatory framework: not a good fit for the public cloud. p. 9. Disponível em: <https://www.analysysmason.com/consulting/reports/eu-cloud-telecoms-regulation>. Acesso em 23 out. 2024.

[15] Art. 180 da Constituição Federal de 1988.

[16] Art. 2º, III da Lei n.º 13.874/2019.

[17] OECD (2014). Ibid. p. 5.

[18] Analysis Mason (2024). The European telecoms regulatory framework: not a good fit for the public cloud. p. 9. Disponível em: <https://www.analysysmason.com/consulting/reports/eu-cloud-telecoms-regulation>. Acesso em 23 out. 2024.

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