[Publicada originalmente no Mobile Time] O Google depende do ecossistema móvel ou o ecossistema móvel depende do Google? Antes de responder a esta questão cabe explicar a motivação de propô-la.
Esta semana a União Europeia anunciou que multará o Google em 4,34 bilhões de euros por práticas anticompetitivas envolvendo o Android. A empresa é acusada de usar seu sistema operacional móvel para garantir a hegemonia nos segmentos de buscas online, mapas digitais e navegadores online ao obrigar os fabricantes a embarcar seus apps nos smartphones. Trata-se de uma multa recorde, que equivale a pouco mais da metade do lucro mundial da Alphabet, holding do Google, no primeiro trimestre deste ano.
O Google promete recorrer. Mas, caso perca, poderá repensar a sua estratégia em mobile. O CEO da empresa, Sundar Pichai, disse que a decisão da União Europeia põe em risco o equilíbrio do modelo de negócios construído para o Android, que consiste exatamente na oferta gratuita do sistema operacional aos fabricantes em troca da inclusão dos apps do Google.
Voltando à pergunta da abertura desse artigo, é difícil dissociar o Google da indústria móvel de hoje em dia. O Android teve um papel extremamente relevante e transformador no que chamamos de ecossistema móvel ao longo da última década. A história de sucesso dos smartphones nesse período está intrinsecamente ligada ao Android. O smartphone se tornou um dos objetos mais desejados pela humanidade não apenas pelas funcionalidades do seu hardware, mas pelos aplicativos que carrega. E o Google foi capaz de construir um gigantesco e plural ecossistema de desenvolvedores móveis, paralelamente ao trabalho feito pela Apple com o iOS. Se hoje existem 4,3 bilhões de smartphones em atividade no mundo, em grande medida isso se deve ao barateamento desses aparelhos, o que só foi possível graças à redução dos preços de componentes, mas também à oferta de um sistema operacional aberto, gratuito e que trouxe consigo um ecossistema com milhões de aplicativos, o Android. Mais de 80% desses smartphones em atividade hoje são Android.
A reboque da plataforma móvel do Google surgiram milhares de outras empresas, entre fabricantes de aparelhos, desenvolvedores de apps e agências de marketing e publicidade móveis. De acordo com Pichai, hoje, há 1,3 mil marcas usando produtos Android e mais de 24 mil modelos de aparelhos com esse sistema operacional, desde os mais baratos até os mais caros, com tecnologia de ponta. Somente em 2017, a Google Play, loja oficial do Android, gerou US$ 20,1 bilhões em receita globalmente, informa a Sensor Tower – 70% desse valor foi distribuído aos desenvolvedores.
É verdade que Android e iOS formam uma espécie de duopólio no mercado de de sistemas operacionais móveis. Outros concorrentes ficaram pelo caminho ao longo da última década, mas menos por falta de investimento e mais por outros motivos, como erros estratégicos ou modelo de negócios equivocados. Os casos mais emblemáticos são Symbian, BlackBerry OS, Windows Phone e Firefox OS. Uma desvantagem comum a todos e que foi determinante para suas derrocadas consistiu na incapacidade de construirem ecossistemas ricos e plurais de desenvolvedores, capazes de fazer frente ao Android e ao iOS.
O Google acertou na estratégia e no timing quando apostou no desenvolvimento do Android, pouco mais de dez anos atrás. Como uma empresa cuja receita advém de publicidade em buscas online, anteviu que o usuário gradativamente passaria da tela do desktop para a telinha do celular, dedicando mais tempo a este último do que ao primeiro. Portanto, era uma questão de vida ou morte estar bem posicionado no universo móvel e adaptar seus produtos para ele. Não poderia haver melhor maneira de controlar essa experiência e garantir o uso dos seus serviços (buscador, navegador, email, mapas etc) do que controlando o sistema operacional dos smartphones e uma loja oficial de distribuição de apps. O hardware era um detalhe, que deixou nas mãos dos fabricantes, ao mesmo tempo em se aproximou deles como parceiros, liberando o uso do Android em troca dos apps embarcados, enquanto a Microsoft insistia em cobrar licença pelo uso do Windows Phone, para efeito de comparação.
Embora os aparelhos Android tragam apps como Gmail, Chrome e Google Maps embarcados de fábrica, os concorrentes destes estão disponíveis para download na Google Play. Aliás, os três apps mais populares no mercado brasileiro nem sequer são do Google. De acordo com o Radar de Popularidade de Apps produzido por Mobile Time com base na pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box, os cinco apps mais presentes na homescreen dos smartphones brasileiros são WhatsApp, Facebook, Instagram, Facebook Messenger e Uber. Nenhum deles é do Google. O primeiro da empresa na lista é o YouTube, que aparece na sexta posição, presente na tela inicial de 12% dos smartphones brasileiros (confira a pesquisa aqui).
Hoje, as pessoas passam mais tempo olhando seus celulares do que qualquer outra mídia (TV, rádio, desktop, jornais, revistas etc). É imprescindível para o Google manter uma presença forte nesse universo móvel. E não vai abrir mão tão facilmente do que construiu nos últimos dez anos. Ao mesmo tempo, uma multa de 4 bilhões de euros é um baque financeiro. Caso não obtenha sucesso em seu recurso contra a punição, é possível que o Google faça alguns ajustes em seu modelo de negócios para evitar novas multas no futuro. O maior risco para o Google seria se o movimento europeu contaminasse outros mercados, levando outros órgãos antitruste a investigarem o mesmo assunto.
Com certeza a indústria móvel de hoje seria diferente se não houvesse o Android. Ninguém duvida disso. Mas seria menos desenvolvida? Seria mais diversificada? Difícil dizer. Vale lembrar o exemplo chinês. Lá, a Google Play está proibida de operar. Nem por isso o ecossistema móvel é menos desenvolvido. Há várias lojas independentes de apps Android e o país foi capaz de estimular o crescimento de suas próprias empresas de serviços digitais, estando à frente no mundo em áreas como pagamentos móveis via QR code.
Ou seja, com base no exemplo da China, podemos entender que, com ou sem Google, a tecnologia móvel seguirá avançando. Mas o Google é, sem dúvida, um parceiro de peso e que tem todo o interesse do mundo em seguir associado a essa indústria, porque dela depende boa parte do seu faturamento atual. Enquanto não inventarem outro produto mais desejado que o smartphone e com o qual homens e mulheres passem mais tempo com seus olhos vidrados, é no smartphone que Google e qualquer outra grande empresa de serviços digitais precisa estar.