Em 2020, publiquei um artigo na imprensa com o título de "Inovar é preciso; regular é impreciso". Na época, expliquei:
Aos governos, cabe a difícil missão de reduzir as falhas de mercado e viabilizar as condições para uma competição saudável – ou seja, de produzir regulamentos que tragam como subproduto segurança jurídica, padronização e confiabilidade em serviços e produtos, sem engessar os mercados.
Essa missão, no entanto, muitas vezes se equipara à pedra de Sísifo: quando o regulamento entra na pilha de "feito" e começa a valer, há boas chances de já estar desatualizado, ou, pior ainda, de causar consequências não pretendidas, e esse regulamento volta (ou precisa voltar) para a pilha de "a fazer".
Vale, então, um breve retorno ao título parafraseado de Fernando Pessoa e que nos possibilitou essa reflexão: mais que nunca, a inovação é inexorável (ou seja, tê-la é preciso); a atividade regulatória, por sua vez, não é uma ciência tão exata assim (ou seja, regular é impreciso).
O resto do artigo seguia falando sobre a importância da inovação e de estimular mecanismos como a autorregulação para dar agilidade e flexibilidade à governança e gestão dos riscos de áreas ainda pouco conhecidas ou exploradas. Quando da confecção do artigo, a propósito, não havia muito que se celebrava o processo de mais de oito anos que culminara na LGPD.
Na teoria, a demanda por regulação aumenta conforme a falta de confiança: os atores, ao não sentirem confiança (ou não conseguirem verificá-la) uns nos outros, nas suas práticas, e nos riscos sistêmicos, clamam por um conjunto de regras comuns que induzam conforto nas transações (por conforto, entendam as variáveis que apresentei acima, como segurança jurídica). Este conforto, por sua vez, deve se traduzir, dentre outras coisas, em mais preços atrativos, uma vez que a precificação do risco em um bem ou serviço pode diminuir consideravelmente.
Na prática, existem casos em que as regras criam custos não pretendidos que podem se tornar demasiadamente onerosos ao longo do tempo. De forma jocosa, uma crônica do Eduardo Galeano fala de um banco em um quartel que foi ativamente protegido por soldados por mais de 33 anos porque a ordem de protegê-lo – expedida à época para que ninguém se sentasse na tinta fresca – nunca fora reconsiderada em todo esse tempo. No texto de Galeano, o custo da ordem foi um número não desprezível de horas da vida de algumas pessoas.
No caso em questão – os projetos de lei que se propõem a regulamentar a IA no Brasil –, os custos podem não ser mera inconveniência, e os efeitos deletérios podem, talvez, ser sentidos por muito mais pessoas e por muito mais tempo.
Na vida real, o tema da IA está na agenda do Presidente da República. Declarações recentes dele sobre o tema incluem:
"Só ouço falar em inteligência artificial. Se inteligência artificial é tão importante, por que a gente fica esperando para copiar o que os Estados Unidos? Por que a gente fica esperando pra copiar o que o Japão fizer? Por que a gente fica esperando pra fazer o que a Coreia fizer?"
"Eu desafiei os nossos cientistas: "vamos criar vergonha". Vai ter uma Conferência Nacional em julho, e vocês tratem de me apresentar um produto de inteligência artificial em língua portuguesa, criado pelos brasileiros."
Além disso, o Brasil incluiu enfaticamente o tema da IA nas agendas de trabalho do G20, que ora está sob liderança brasileira.
Só que o país que criou a Estratégia Brasileira de IA em abril de 2021 e foi incapaz de dar a tração necessária a ela nos últimos três anos agora corre para criar o Plano Brasileiro da IA às pressas. Queremos mostrar serviço para o mundo, mas não fizemos nossa lição de casa.
Do lado privado, a IA no Brasil já existe, e é autóctone. Não somos exclusivamente consumidores de APIs externas, ainda que isso represente a maior fatia do mercado. E temos, sim – ainda que reconhecidamente em pouquíssima quantidade –, pessoas capazes e interessadas em avançar na construção de tecnologias made in Brazil a despeito do pouco ou nenhum estímulo e das dificuldades, já conhecidas, associadas ao empreendedorismo inovador. Essas pessoas, razoavelmente espalhadas pelo país, enxergam em 33 anos um Brasil que aproveitou a oportunidade dos anos 2020 e se tornou o país do futuro – coisa que seus avós e bisavós já ouviam em suas respectivas épocas, mas não chegaram a ver se concretizando.
Quanto ao marco que se discute no legislativo, retorno à premissa do início deste artigo: qualquer texto que seja aprovado agora será impreciso, imperfeito. Dito isto:
- Precisamos, sim, considerar o que não queremos, como sociedade, para a relação entre máquinas, algoritmos e humanos no nosso futuro próximo e distante. Esse é um trabalho longo, gradual e multistakeholder por princípio – e que pode ou não culminar em um projeto de lei em algum momento futuro. Suspeito, porém, que o texto em discussão não será o que vai impedir a concretização da distopia em que máquinas escravizam humanos – até porque, se é fato que se trata de uma corrida global pela IA, uma única legislação com brechas em qualquer país do mundo pode ser o locus de nascimento da Skynet ou equivalente do futuro próximo.
- O risco de um marco regulatório pouco considerado nem é não chegarmos a ser um país com 100 IAs de alta capacidade – o risco, ao contrário, é nos tornamos um país sem IA própria. Assim sendo, a comparação mais adequada não é a dos irmãos Wright vs. Santos Dummont, e, sim, voltarmos aos ciclos econômicos do Brasil império, como foi examinado pelo conterrâneo Celso Furtado, e nos tornarmos apenas exportadores de dados para alimentar IAs de outras geografias.
- Há também muitos riscos, obrigações e custos na redação que já foram amplamente apresentados e discutidos publicamente por associações setoriais, sindicatos, técnicos e especialistas de todos os cantos do país – por isso, não sinto que precise regurgitá-los aqui.
A famosa expressão que inspirou este artigo pode ser interpretada como uma perspectiva sobre a essencialidade e a urgência de certas ações em contraste com a natureza mais fluida e indefinida da vida em geral, em que não há um único caminho correto ou necessário.
Neste sentido, compreender os riscos é preciso; entender o que, de bom, queremos estimular com IA é preciso; entender o que queremos evitar com a IA é preciso, ainda que seja uma tarefa longa e cheia de nuances; finalmente, em um ambiente que combina alta incerteza (um desafio comum na política pública) e indefinição sobre nossas aspirações (este, por sua vez, não deveria ser comum na política pública), regular é inevitavelmente impreciso.
Se tudo isso é verdade – por que estamos tão eufóricos para proteger o banco do quartel de sentadas indesejadas?
* – Sobre o autor: Philipe Moura é consultor, conselheiro e venture capitalist. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente representam o ponto de vista de TELETIME