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TV de segunda categoria

A TV digital aberta já se tornou um produto de segunda categoria, pelo menos do ponto de vista tecnológico. Essa mesma TV digital que ainda luta para começar a ser implementada na maior parte das cidades brasileiras e que, com muita sorte, substituirá a TV analógica nos grandes centros em 2018, está velha.

Para sustentar essa afirmação farei duas coisas que não costumo fazer como jornalista: contar uma história pessoal e cravar uma previsão. A previsão está atrelada ao meu ponto inicial: a TV aberta perdeu o bonde da evolução, não deve se recuperar e vai sobreviver (se sobreviver) como um produto inferior entre as opções de entrega de conteúdo. A história pessoal eu uso para ilustrar essa provocação.

Há 20 anos, em 1995, eu fazia a minha primeira cobertura de um grande evento internacional. Minha estreia foi na NAB, em Las Vegas, naquela época, e até hoje, o maior evento de televisão aberta do mundo. Naquela ocasião, em um café da manhã no Hotel Bally’s, entrevistei Fernando Bittencourt, que comandava a engenharia da TV Globo. Foi a primeira vez que ouvi falar em TV digital. Ele me explicou o que era a alta definição, o que era a multiprogramação, como seria possível fazer a transição tecnológica e que aquele era o passaporte para a TV aberta ter uma vantagem sobre a TV paga. Nos EUA, já se discutia como seria o desligamento da TV analógica. Bittencourt me chamava a atenção para o fato de que era necessário começar a discutir a transição para a TV digital no Brasil. Passaram-se 14 anos e em 2008, finalmente, a TV digital se tornou uma realidade, mesmo que ainda hoje falte um longuíssimo caminho a ser percorrido até que todos os municípios tenham seus sinais digitais em operação e, mais ainda, até que o sinal analógico possa ser desligado. E muita gente duvida que, no Brasil, um dia será (eu, inclusive).

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Este ano volto a um grande evento tradicional da TV aberta, depois de duas décadas. Vim à IBC, em Amsterdã, o maior evento de TV europeu. Um evento em que um dos focos é, indiscutivelmente, a ultra alta-definição, ou UHD. Para minha surpresa, um evento que falou muito de televisão, de conteúdo, de IP, e bem menos de radiodifusão do que eu esperava. Nesse encontro, voltei a conversar com Fernando Bittencourt sobre o tema TV digital, mas agora com foco nesse novo momento. Ele não está mais na Globo, de onde se aposentou há cerca de um ano, mas sua opinião é bastante respeitada. Ele me disse (e disse isso também publicamente, em um dos painéis da IBC 2015, representando a SET – Sociedade de Engenharia de Televisão), que a chance para que a TV aberta chegue a esse novo mundo depende necessariamente de espectro. E para ter esse espectro, o modelo de TV aberta precisa mudar no Brasil, passando a abrigar talvez apenas algumas poucas emissoras, que com mais espectro terão um produto tecnologicamente competitivo para brigar com outras formas de entregar conteúdo.

Existe uma diferença grande entre o cenário que Bittencourt me narrou em 1995 e o cenário que pode ser visto em 2015. Duas décadas atrás, a TV de alta definição era uma promessa distante, tanto para a TV paga quanto para a TV aberta, que eram as duas únicas formas, fora o cinema, de exibir conteúdos audiovisuais. Tanto o cabo quanto a radiodifusão eram analógicos, e ambos saiam do mesmo ponto de largada.

Hoje, a UHD já existe (ainda que alguns aspectos ainda careçam de padronização). Com um cartão de crédito com um limite um pouco maior, é possível comprar uma TV 4K nas Casas Bahia. Por R$ 19,90 ao mês mais uma banda larga razoável, é possível assinar a Netflix, que tem uma boa quantidade de conteúdos em UHD. Os celulares high-end já filmam e exibem imagens em 4K. A Globo já filma algumas de suas novelas em ultra alta-definição. Tudo isso e muito mais: imagens em HDR, HFR, WSG, HEVC, 8K (e outras siglas que em essência significam imagens melhores) já existe e, como mostrou a IBC, é o presente e o futuro de todas as plataformas de distribuição de conteúdos de vídeo, da Internet ao cinema, passando pelos canais pagos, pelos celulares e pelos óculos de realidade virtual. Só não é realidade nas transmissões da TV aberta, e talvez nunca venha a ser.

A razão é simples: para ter isso tudo é preciso espectro. E por mais que se admita que com a evolução nas tecnologias de compressão tudo isso poderá ser feito no mesmo canal de 6 MHz que as TVs abertas têm hoje, ainda assim será preciso espectro para migrar de uma tecnologia para outra, período em que ambas precisam coexistir. E esse espectro é coisa cada vez mais rara, ainda mais em tempos de banda larga móvel e Internet das Coisas.

Voltemos à reflexão de Bittencourt (a de 2015). Suponhamos que houvesse no Brasil só três ou quatro emissoras de radiodifusão por cidade (em alguns casos há 25). Aí sim seria possível discutir uma migração da TV aberta para o UHD. Seria então necessário começar a discutir a padronização, definir o modelo etc., coisa que, como dissemos, tomou 14 anos para acontecer com a primeira geração da TV digital, que ainda engatinha no Brasil. E nessa primeira etapa ninguém precisou ser despejado do espectro. Imagine-se que o critério para escolher as três ou quatro emissoras sobreviventes e que terão acesso ao paraíso seja relevância, ou audiência, ou tamanho econômico, ou interesse público. Qualquer que seja o critério, o custo político de despejar o resto dos canais, mesmo os “teletapetes” ou “teleigrejas” que ninguém nem sabe que existem, será gigantesco, senão inviável. A não ser que a seleção (econômica) natural faça esse papel antes (o que eu também duvido).

A outra alternativa é assumir que a TV aberta de fato será um produto tecnologicamente de segunda categoria, fadado a servir apenas àqueles que efetivamente não tenham acesso a nenhuma das formas de consumir conteúdos em UHD. É um outro caminho possível, lembrando que qualidade de imagem não é tudo, e que o mais importante talvez sejam bons roteiros, boas histórias e bom conteúdo. Nada disso é um problema efetivo hoje, é só uma constatação. Mas como 20 anos passam muito rápido, não custa começar a falar já.

13 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo. Oportuno, se bem que poucas pessoas, empresas, entidades, autoridades governamentais, estão dispostos e aparelhados para esta discussão. No Brasil estamos sempre falando do anteontem, e quando finalmente abrimos uma discussão sobre o futuro, ela sempre fica polarizada por interesses menores e imediatistas. Acho que vai ter muita gente dizendo, por exemplo, que o Fernando Bittencourt está apenas defendendo a idéia de um monopólio para a Globo, etc.

  2. Parabéns pela matéria. Acho podemos argumentar pelo sucesso ou não de um serviço baseado no escassez de recursos tecnológicos ou de transmissão, sim. Neste caso o espectro. Meu argumento é que alem disso também devemos observar as mudanças no padrão de preferencia dos usuários da mídia. No mês passado a Ofcom da Inglaterra oficializou os resultados da sua pesquisa das padrões de consumo de mídia que revela que no segmento de 16 a 24 anos apenas 17% iria sentir falta da TV convencional contra 59% do smartphone. A TV aberta do futuro precisa entender esta demanda de individualização e convergência com o dispositivo móvel para sobrevivier.

  3. Prezado Samuel, muito bom o artigo, mas o espectro não será um problema! A NHK está a algum tempo estudando transmissão de 8K no espectro de 6MHz, o mesmo que utilizamos no nosso sistema de TV Digital. Veja mais em : http://www.nhk.or.jp/corporateinfo/english/press/pdf/20140203.pdf
    Neste caso, existirá sim a necessidade de mudar encoders, aparelhos de TV, transmissores, antenas, mas o espectro não é um limitante.

    Alem disso, o Netflix transmite 4K a 16Mbits e o sistema ISDB-Tb (TV Digital Brasileira) opera em até 22Mbits. Ou seja, mudando de sistema de codificação para HEVC, já é possivel receber o 4K com a mesma infra-estrutura já instalada de transmissão e antenas.

    • Concordo Mário, que é possível fazer, não há dúvida. O problema é que como as tecnologias não serão compatíveis para trás, é preciso fazer uma transição. E ai não tem mais espaço para migrar todo mundo.

  4. Achei fraca a discussão, sendo feita por especialistas. Fiz meu mestrado em um laboratório que ajudou a (tentar) criar os padrões do SBTVD. E resumir a TV digital a resolução é não entender o que a TVD poderia ser. E não foi muito por força contrária das grandes emissoras.
    A interatividade e a possibilidade de rodar aplicativos na TVD seria uma saída para a distribuição de conteúdo digital. Ao invés de vários padrões de smartTVs, o SBTVD poderia ser uma opção para os fabricantes de unificar seus esforços para por Netflix, acesso a bancos, informações públicas a todos. Uma loja de canais (assim como hoje existem as lojas de apps) aumentaria a oferta de conteúdo, que para o lado do usuário nem daria pra notar se veio de espectro ou da Internet. Imagine: um canal feito por universitários ou comunidades locais, com conteúdo local, exibido na sua TV com o mesmo peso de uma Globo!? Eu acho ótimo. A Globo, nem um pouco.

    • Em essência, Daniel, a discussão não é sobre resolução, mas sobre modelos de negócio, tipos de conteúdo etc. A TV aberta, no dia em que deixar de ser gratuita e linear, deixará de ser TV aberta. Aí estamos falando não de uma TV de segunda categoria, mas do fim da TV aberta. MAs é óbvio que, do ponto de vista do interesse público podem haver alternativas muito melhores.

  5. O futuro da TV será por IP e não pelo Ar. No futuro o espectro que hoje é ocupado pelas emissoras de TV abertas, serão destinados a Internet móvel. E as emissoras de TV e Rádio, enviarão seus conteúdos via IP para serem recebidas por consoles (semelhantes a Apple TV) e celulares e PCs. Limitados ao endereço de IP de recepção.
    Assim, por IP, acabou-se a necessidade de espectro para envio, pois todo conteúdo será On-Demand.

  6. Excelente matéria, e na minha opinião ‘tocou na ferida’ de várias coisas que vimos discutindo por aqui mesmo.

    O caso de poucas emissoras por cidade, concordo totalmente. Cito por exemplo o caso de São Paulo/SP: se você filtrar os 26 canais existentes (se minhas contas não estiverem erradas, fora que não contei os multiprogramações), sendo que nem todos eles são realmente HDTV, male male saem uns 4.

    Por que estou falando isso? Porque tanto se falou na época que “com o HDTV teremos mais opções” e o destino é sempre o mesmo: terceirizam para igrejas – videm, por exemplo, casos da RBI, IdealTV e TVCI.

    Outro fator que ocorre é o desconhecimento/falta de vontade de grande parte dos telespectadores em como sintonizar sua tv nos sinais em alta definição, e muito menos sabem explorar todos os recursos que possui (nas smart tv), como por exemplo a interatividade.

    É comum vermos aqui mesmo em São Paulo/SP pessoas com telas novas sintonizando o sinal analógico pelo VHF ao invés do HD.

  7. O texto é bom, mas com visão parcial de um sistema complexo que envolve tecnologia, mercado, tempo de implantação, momento econômico, cultura do País, história e outros componentes. Falando sobre tecnologia, é importante situar os eventos na linha do tempo – e nesse ponto acredito ter havido uma falha. Em 2007, quando o sistema foi amplamente discutido e adotado o padrão em questão, a tecnologia mais avançada disponível para testes reais, e consequente adoção, era o H264 e o ISDB. Não há como negar que naquele momento era o mais certo a fazer. Se a tecnologia hoje está “ultrapassada”, significa apenas que o tempo passou mais rápido do que a capacidade de implantação do sistema no País, mas não um demérito da escolha.
    Se definíssemos hoje uma nova troca de padrão e utilizassemos as tecnologias disponíveis neste momento para validação de conceito, é provavel que o HEVC associado ao 8K seriam as escolhas. Mas da mesma forma acredito que em 4 anos essas escolhas já se provariam obsoletas, e nesse tempo não teriamos executado a sua implantação em larga escala. Lembro aqui que países muito menores que o nosso – e tidos como altamente tecnológicos – ainda operam em DVB-T MPEG-2 e SD.
    Por outro lado a receita que faz da Netflix ou qualquer outra nessa linha garantir seu sucesso não está baseada na tecnologia adotada, mas sim em entregar aquilo que o consumidor quer. Simples assim. Tenho certeza que 98% dos usuários do Netflix, Youtube e demais serviços não definem sua escolha baseado em termos como 4K, UHD, 1080p, etc. A adoção e utilização cada vez maior desses serviços está relacionada com a usabilidade, atemporalidade (serviço no momento desejado), disponibilidade em multiplataformas, etc.
    Em diversas feiras das quais participamos escutamos sempre o mesmo : não há receita para pagar o investimento da troca da tecnologia, visto que não existe diferenciação na programação. Então a pergunta que fica é : por que, no momento certo, não foi permitida a multiprogramação? Pessoalmente acredito que essa seria a chave para o sucesso do modelo, onde novos conteúdos (ou talvez até o mesmo conteúdo apenas deslocado no tempo) geraria novas receitas e reduziria o tempo de implantação.
    Apenas como comentário final: em muitas cidades do Brasil a figura do broadcaster já não é reconhecida mais. Nestas, ao pedirmos para um cidadão sintonizar uma emissora de TV (seja ela qual for), o mesmo recorre ao seu STB DTH e pronto. Ou seja, nesse lugar a TV digital já chegou, e não foi através da TV terrestre. E curiosamente esse mesmo cidadão está lá, feliz, recebendo um sinal MPEG-2 SD da emissora que ele quiser. E será assim nos próximos 5 ou 10 anos…

  8. Samuca, muito bom o seu texto…mas discordo do ponto que a Tv aberta ´deva assumir ser um produto de segunda. A atual imagem HD (1920 x 1080) já tem resolução muito boa para a maioria dos seres humanos que habitam esse nosso Brasil. Alem disso,a recepção terrestre digital ainda nem começou. Vamos ver isso acontecer mesmo qdo tiver o apagão do analógico. Importante tbm considerar que, cada país tem um poder p/ comprar e de se divertir…por aqui esse ´pão e circo´ já está disponível. Falar de UHD apenas nos foruns de debate…e sou da opinião que UHD apenas será viável no IP e DTH. Por outro, lado acho péssimo é o conteúdo focado na violencia e maus exemplos exibidos no horário nobre de algumas emissoras. Antes de falarmos de novas tecnologias, deveríamos tratar de conteúdos + úteis e apropriados p/ a população nos canais abertos,gratuitos por definição. abcs/MM

  9. Samuel,
    Muito bom o seu texto, e principalmente a provocação inerente para que falemos sobre o tema. Concordo em grande parte com o MM, pois acredito que o UHD só deverá ser relevante para alguns poucos conteúdos (e usuários), cujo apelo faça sentido comercial, afinal de contas, alguém tem que pagar a conta da TV aberta. As redes de telecomunicações já vem enfrentando este mesmo dilema há anos, pois é comercialmente inviável oferecer a mesma coisa para todo mundo ao mesmo tempo. Temos que conviver com o fato de que recursos como o espectro são finitos e que a tecnologia possui suas restrições físicas e econômicas. Se daqui a 20 anos, uma nova disrupção tecnológica tenha se tornado viável, quem sabe? Abs

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