O Ministério das Comunicações e a RNP estão propondo ao setor de telecomunicações uma das maiores mudanças de paradigma na forma como o governo contrata serviços de conectividade: a adoção do chip neutro para o programa Internet Brasil, cuja previsão para este ano é atender até 700 mil alunos e estudantes da rede pública com serviço de 4G, mas podendo chegar a 22 milhões.
O processo de contratação nesse modelo está sendo discutido com as operadoras de telecomunicações desde o segundo semestre do ano passado, mas a licitação em si começou discretamente no último dia 2 de março (uma quarta-feira de cinzas) com prazo de apresentação de propostas para esta quarta, dia 16. Para esse ano o projeto já conta com orçamento assegurado de R$ 140 milhões, mas para a conexão total dos 22 milhões de alunos e educadores o orçamento poderia superar R$ 4 bilhões nos próximos anos, ainda sem previsão orçamentária.
Há grande desconforto entre as operadoras com o modelo proposto, e nem todas deverão apresentar propostas, mas algumas mostram-se inclinadas a participar, outras fizeram muitos questionamentos e ainda são dúvida na licitação. A depender do resultado, esse modelo pode significar uma mudança importante para futuras compras governamentais, porque daria, na visão dos técnicos do Ministério das Comunicações, uma independência muito maior na aquisição de conectividade 4G e 5G para programas futuros de conectividade.
O programa Internet Brasil foi criado no final do ano passado a partir da Medida Provisória 1.077/2021, editada em dezembro. A MP ainda não foi aprovada pelo Congresso, o que por si só é um dos fatores de desconforto das operadoras.
Mas o que tem criado os maiores questionamentos é o modelo: em lugar de contratar uma operadora que proverá um pacote de dados e o chip para a conexão de estudantes, como aconteceu com o programa Alunos Conectados do Ministério da Educação, por meio do qual cerca de 140 mil alunos de ensino superior receberam um chip de acesso à Internet pelo celular, o Internet Brasil tem quatro termos de referência separados.
Está sendo contratada a empresa que vai fornecer e provisionar o chip, que deverá ser um chip neutro (eSIM), ou seja, que poderá se conectar à rede de qualquer operadora (confira a íntegra do contrato aqui e do termo de referência aqui); também haverá a contratação do chamado perfil elétrico, que na prática é um número e um pacote de dados de uma operadora, com pacotes de 5, 10, 20 ou 40GB/mês, conforme o Termo de Referência (clique aqui para a íntegra do termo de referência e do contrato aqui); haverá ainda uma empresa que vai fazer a análise dos dados de uso; e por fim será selecionada uma empresa que fará a logística de distribuição dos chips para as escolas.
A ideia do governo é que os diretores de escolas de ensino básico (fundamental e médio) recebam um lote de chips, façam a distribuição aos alunos e ativem os chips na plataforma do governo. Todo o processo de seleção dos quatro termos de referência, a exemplo de praticamente todas as contratações recentes do Ministério das Comunicações, está sendo conduzido pela RNP (Rede Nacional de Pesquisa). O modelo de chip neutro permitiria ao governo gerir os planos de dados em função da cobertura de cada operadora, podendo, por exemplo, mudar o serviço de operadora A para operadora B em função da localização do aluno e da qualidade da rede em determinada região. Permitiria também a perenidade do modelo no caso de trocas futuras de fornecedores do pacote de dados, ou mudanças de condições técnicas.
Para as operadoras, o modelo de chip neutro traz grandes preocupações. O primeiro ponto é a necessidade de integração de sistemas: elas até conhecem do ponto de vista técnico a operação do modelo de gestão de eSIM, e oferecem o serviço em sua própria rede e em acordos específicos, mas não praticam o modelo em que a ativação desses acessos é feita por uma empresa terceira, que precisaria estar homologada junto a todas as operadoras, integrada aos sistemas de gestão de rede e assinantes e em condições de dar suporte para diferentes níveis de problemas técnicos e operacionais. Há uma grande preocupação sobre o conhecimento específico e o know-how desta empresa terceira neste tipo de operação, considerada inédita no Brasil.
Existem experiências restritas parecidas com esse modelo em serviços de IoT, mas não existe ainda um modelo que preveja a gestão de milhões de acessos de dados móveis de forma terceirizada, em que os chips (ou SIM Cards) podem ser ativados ou desativados a qualquer momento. Se tecnicamente isso é possível, existem preocupações com o dimensionamento adequado da rede, obrigações de qualidade de serviço e riscos de segurança, responsabilidades junto aos consumidores entre outros.
Haverá a necessidade de um grande esforço de integração de TI que precisaria ser dimensionado e precificado, e há imensa preocupação em relação à adequação desta empresa às regras de compliance das operadoras junto ao poder público. É um processo com muitas implicações para as operadoras, e que elas alegam estar sendo conduzido com uma pressa incompatível com tal complexidade.
Também existe uma preocupação tributária, já que uma vez ativado o chip, a operadora fica sujeita ao pagamento do Fistel e do ICMS, mesmo que depois de um tempo a conectividade daquele aluno seja alterada para outra operadora e a empresa original não seja remunerada.
O que pretende o governo
Fontes do governo acreditam que a reação das operadoras é apenas por conta da mudança de paradigma. Reconhecem que é um modelo inovador e bastante diferente de tudo o que já foi feito em relação a programas de conectividade, mas alegam que esse modelo é importante para garantir que o serviço seja prestado de forma continuada. "Temos muitos programas de conectividade em que uma empresa é contratada, mas quando o contrato acaba, ou o governo fica na mão daquela empresa para sempre por conta dos equipamentos instalados, ou o programa simplesmente é interrompido. O modelo de chip neutro permite que a plataforma para o serviço poderá ser mantida independente de qualquer um dos fornecedores", justifica um interlocutor a par do processo de seleção.
Essa independência se daria também em relação à empresa intermediária, que fará a gestão dos chips, diz uma fonte, mas ainda não está claro se nesse caso haverá apenas um prestador de serviços ou se poderá haver diferentes agentes contratados. Mas segundo a fonte do governo ouvida por este noticiário, "nada impede que as próprias operadoras ofereçam esse serviço de gestão de chips neutros". Outro argumento usado pelo governo em favor do programa é que ele permitiria, no futuro, o desenvolvimento de uma plataforma mais flexível a outras demandas de conectividade em outras áreas, como saúde e segurança pública, por exemplo.
Uma das fontes do setor de telecom ouvidas por este noticiário teme justamente isso: "será que o governo está querendo criar a sua própria operadora de celular? Se for isso, deixa de ser uma simples contratação de serviços e passa a ser uma competição velada com as operadoras, pelo menos na prestação de serviços públicos".
Outra fonte admite que essa mudança de paradigma na adoção do modelo baseado em chip neutro, além de representar riscos técnicos, de segurança e insegurança jurídica e tributária, pode ter implicações comerciais e regulatórias no futuro. Por exemplo, para o mercado de IoT, em que as operadoras tentam há muito tempo evitar serem obrigadas a oferecer o roaming permanente (em que operadoras internacionais teriam acesso às redes das operadoras locais de forma compulsória na oferta de serviços de IoT), ou que no futuro se crie uma guerra de preços nas contratações públicas (e mesmo em algumas contratações privadas de grande porte), apenas pela oferta de pacotes de dados mais baratos, sem que as empresas operadoras possam agregar serviços e valor aos produtos.
O resultado da licitação para o Internet Brasil promete ser um ponto decisivo para a estratégia do governo e das operadoras, mas segundo apurou este noticiário, não há planos do governo de rever o modelo. A não ser que o resultado seja uma resposta negativa do mercado, sem interessados.
Muito bom isso aí tecnologia
Olha: que beleza de redação jornalística. Texto objetivo, embora, relativamente longo, mas direto ao ponto. Segura o leitor. Gostei. Parabéns à redação. Agora, quanto ao tema da matéria, em si. Mais uma vez, entra governo, sai governo, direita, centro ou esquerda, quem sobe ao Planalto está, sempre, dando tiro no pé. Todas as operadoras de telecomunicações de grande porte, as quais têm condições de implementar e integrar um sistema, tal como proposto pelo Governo Federal, não vai embarcar nessa canoa furada. As grandes "teles", salvo engano, são multinacionais, que não vêem vantagem em fazer graça com o consumidor. Querem retorno maior do que os riscos. O potencial de isso gerar responsabilidades fiscais, civis (Direito do Consumidor) e administrativo é muito grande. Os prejuízos podem ser muito grandes, em confronto aos investimentos. Não acredito, que vá dar frutos.
É realmente acredito que será difícil que as grandes empresas aceitem esse modelo, pois os riscos podem vir no futuro com outras tecnologias.