Solid: o modelo que quer mudar a lógica da economia de dados

John Bruce, CEO e co-fundador da Inrupt

A economia digital é, de maneira geral, toda economia baseada em dados e na coleta massiva de informações dos usuários. Não por acaso, as maiores empresas do ramo (e que são hoje também as maiores empresas do mundo em valor de mercado) são aquelas que conseguem coletar uma quantidade descomunal de informações de usuários, dar tratamento a estas informações e transformar isso em produtos, seja na forma de publicidade, de conteúdos customizados, de marketplaces digitais ou serviços de inteligência de dados.

Mas enquanto o modelo funciona e é rentável para uma pequena parcela de empresas que consegue ter acesso a informações de bilhões de pessoas por meio de redes sociais, outras com alcance menor ou com modelos legados nem sempre conseguem os mesmos resultados.

Do ponto de vista dos usuários, a situação é ainda mais complexa: para cada serviço que se consome, é preciso compartilhar uma quantidade imensa de informações pessoais, desde de dados como nome, documentos pessoais, endereço, idade, relações familiares… até hábitos de consumo de produtos em supermercados, medicamentos, condições de saúde, localização, senhas, preferências… Fora os dados que são compartilhados sem o conhecimento do usuário, como interações em redes sociais, preferências de audiência, dados de navegação…

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Tim Berners-Lee, reconhecido como fundador da Internet como a conhecemos no formato Web, aparentemente não gostou do monstro que evoluiu da sua criação. E ele propõe uma nova abordagem: um modelo em que os dados não sejam mais compartilhados, mas apenas acessados mediante consentimento. Quem detém e guarda os dados é o próprio usuário. Esse é o princípio da tecnologia Solid.

Para explicar o conceito e seus impactos na economia digital, TELETIME conversou com John Bruce, CEO e co-fundador, ao lado de Berners Lee, da Inrupt, start-up que trabalha para disseminar e implementar o modelo Solid entre empresas e governos.

Durante o Seminário Políticas de Comunicações, que TELETIME organiza em parceria com o Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias de Comunicações (CCOM) no dia 18 de fevereiro, em Brasília, Roberto Breitman, diretor de estratégia de mercado da Inrupt, falará sobre este novo modelo de uso de dados. Já no dia 19, realiza um workshop com o CCOM sobre a tecnologia Solid (inscrições aqui).

TELETIME – Fale um pouco sobre o que é essa tecnologia Solid e o que é a Inrupt? 

John Bruce – As pessoas conhecem Sir Tim Berners-Lee, então fica mais fácil começar por aí. Fundamos a nossa start-up, a Inrupt, há cinco anos porque Tim estava frustrado com a forma como a web funcionava e sentiu que poderia mudá-la, ou colocá-la em uma direção diferente. Ele trabalhou por algum tempo em uma tecnologia de código aberto, junto com muitos colaboradores, que foi chamada de Solid (NR – o Solid é um sistema dados baseado em um conjunto de protocolos que basicamente permite às pessoas armazenarem, de maneira individualizada, todos os dados delas que hoje são coletados pelas grandes empresas de Internet. Estes dados podem, eventualmente, ser acessados por outras bases de dados mediante autorização). 

Essa tecnologia se mostrou funcional e fez uma grande diferença na forma como todos podemos operar na web.  A partir daí fundamos uma empresa juntos, levantamos capital, contratamos pessoas e partimos para aprimorar a tecnologia. Na verdade, foram duas vertentes (de desenvolvimento): aprimoramos o código aberto e fizemos uma outra versão do mesmo código, com os mesmos protocolos, mas com funcionalidades mais adequadas para serem utilizadas por grandes empresas. Hoje, o desenvolvimento da camada de código aberto está sob a orientação do World Wide Web Consortium, W3C, onde se criou um grupo de trabalho em torno da tecnologia. Isso é importante porque os membros do W3C podem contribuir, como desenvolvedores e mesmo empresas como Facebook, Amazon, Google e Microsoft.

Esses grupos de trabalho só são criados quando uma tecnologia é importante para o desenvolvimento da Web e precisa ser desenvolvida da maneira certa. Nem todas as tecnologias têm esse status, e ficamos felizes que a Solid conseguiu. E paralelamente participamos de uma entidade chamada ODI, o Open Data Institute, que está arrecadando milhões de dólares para investir na comunidade de código aberto em torno do Solid.  

Você mencionou que o início veio de uma frustração de Tim Berners-Lee com os caminhos que a Internet estava tomando naquele ponto. Qual foi exatamente a frustração?

Esperava-se que a web original fosse uma web onde todos pudessem colaborar. Poderíamos compartilhar nossas informações uns com os outros de maneiras produtivas e poderíamos colaborar globalmente para realizar grandes coisas. E, infelizmente, o que evoluiu ao longo do tempo foi uma web onde as grandes corporações evoluíram e começaram a dominar a web de maneiras restritivas. Houve inovação, oportunidade de ser criativo e criar negócios. Isso é apropriado para eles e seus acionistas. Mas infelizmente, resultou em uma web onde todos os seus dados e os meus dados estão nas mãos de grandes corporações, não nas nossas mãos.  E isso é muito frustrante. Não era essa a intenção original. Foi aí que o Tim criou o Solid, uma maneira pela qual todos na web conseguem manter seus próprios dados, mas eles ainda podem ser trabalhados em conjunto.  

Ou seja, é um modelo oposto ao das grandes empresas de Internet atuais?

Sim. Mas com o Solid, as grandes corporações ainda podem interagir, e podem ter muito sucesso nisso. Mas eles não precisam manter os dados pessoais de todas as pessoas para terem sucesso. Quem mantém os dados são os próprios usuários.

Mas você não acha que tentar mudar para o modelo 30 anos depois do modelo original da Internet, da economia digital, ter sido criado e apropriado pelas grandes corporações é algo viável?  Não seria tarde demais?

Não, temos muita confiança na evolução humana. Como espécie, continuamos a evoluir (risos).  Não é só porque foi assim que terá que ser assim para sempre.  As grandes empresas (de Internet) têm muitos recursos e são muito inteligentes. E quando perceberem que faz todo o sentido do mundo capacitar os usuários e fornecer-lhes seus dados, elas evoluirão, mudarão. Talvez nem todas, mas as mais espertas sim, porque esse modelo é também bom para as grandes empresas de Internet, porque é bom para o consumidor e para os usuários. Todas as corporações, todos os governos, fariam muito melhor se pensassem nestes termos. Hoje a economia de dados é fundamentada em saber muito sobre você. Tudo o que se fez até agora é para melhor entender o usuário. As empresas de Internet vivem de obter seus dados, comprar outros dados disponíveis sobre nós, reunir tudo e tentar descobrir o que você provavelmente deseja usando algoritmos. Mas há outra maneira de fazer isso: eles poderiam simplesmente perguntar o que você quer, sem tirar vantagem. Queremos que as empresas de Internet nos entendam e nos sirvam melhor, sem ser enganado.  E a maneira como se pode fazer isso é mantendo meus dados comigo.  

Mas esse é o problema, certo? As grandes empresas de Internet precisam ter todos os dados para entender o que o usuário quer e a partir daí vender publicidade, oferecer conteúdo, oferecer serviços…

O que as corporações querem é ter acesso aos seus dados para atendê-lo, mas não querem ser responsáveis ??por isso. Se eles puderem fazer isso de uma forma que não precisem se tornar especialistas em segurança e privacidade, seguir inúmeras  regulamentações e assim por diante, eles certamente ficariam felizes. No fundo, só o que elas precisam é que os usuários lhes deem o consentimento. 

Mas as pessoas, os usuários, não querem ser importunados com milhares de pedidos de consentimento para cada interação digital que houver. 

Esse modelo passa a fazer sentido com a Inteligência Artificial. Essa carteira individual de dados pessoais, baseada no Solid, se soma com Inteligência Artificial para dar aos usuários muito mais controle sobre seus dados e como fazer uso deles.  

Se eu entendi a ideia do Solid, do ponto de vista conceitual, é mudar a Internet de um modelo em que temos grandes "lagos de dados" centralizados em poucas empresas para um modelo de pequenos "copos de dados" individuais. Todo mundo tem um copo de dados próprio e, a partir daí, empresas, governos, quem quiser usar seus dados tem que pedir consentimento para colocar um canudo no seu copo e beber um pouco. É isso?

Sim! A única pequena diferença é que eles não roubam seus dados com o canudo e os levam embora. Eles chegam até você com uma consulta: "podemos fazer uma investigação sobre seus dados?" A pergunta pode ser: você mora em tal cidade? Gosta de comida italiana? Você tem dois filhos?  Você sai de férias mais de três vezes por ano?  E você diz o que concorda em responder, em troca de um benefício. As empresas não precisaram retirar e manter todos os meus dados para fazer isso.   

Mas as pessoas querem esse trabalho? Elas só querem o benefício, mas não querem ter que responder perguntas o tempo todo. 

É nesse ponto que entra a Charlie, a agente da carteira Solid baseada em AI. Ela responde para você. Charlie é uma forma de interagir com o LLMS e garantir que a inteligência que roda em sua carteira Solid se torne uma carteira gigante, composta dos seus dados mais pessoais, privados; seus dados financeiros e comerciais como os que estão na carteira do Google ou da Apple; e os dados relacionados às suas preferências. A IA Charlie é quem toma a decisão com base em seus hábitos. A Solid Wallet é um armazenamento de dados baseado em nuvem, mas é um armazenamento de dados construído de uma maneira específica de acordo com as especificações do Solid. E por trás disso tem uma API de acesso aos dados, uma taxonomia de dados, protocolos, aplicativos conectados… 

Mas esse modelo pode ser limitado em termos de dados pessoais a depender do país, porque as regras são diferentes… Existem países que exigem que o armazenamento seja local. Outros países aceitam o armazenamento global baseado em nuvem. Como você lida com essa diferença de regulamentação?

Temos países implementando isso, como a Bélgica. Eles obtiveram a aprovação de Bruxelas para que os reguladores da UE concordassem que isso é melhor do que o GDPR porque o cidadão está no controle total de seus dados. Os dados são criptografados, portanto, não importa onde você os armazena. Ninguém, exceto o cidadão, pode acessar esses dados, a menos que conceda consentimento para que outros o leiam.   Então, se funciona para a Europa , onde eles são muito rigorosos em suas regulamentações, nossa presunção é que todos os outros países, incluindo o Brasil, você poderia olhar as regulamentações e tomar sua própria decisão.

Você mencionou no início da nossa conversa que até mesmo as big techs teriam interesse em um modelo como esse porque não querem lidar com essa responsabilidade de dados pessoais. Mas eles ganham dinheiro com os dados, é a base do negócio deles.Será que elas mudariam de paradigma dessa maneira? 

Existem dois tipos de empresas de tecnologia: há talvez seis, digamos uma dúzia, que ganham a vida com dados. E 100 mil outras empresas por aí que não faz isso.  Então, OK, temos um pequeno grupo que está ganhando grandes quantias de dinheiro com a coleta massiva de dados pessoais. Mas fora essas, a grande maioria das empresas de tecnologia, das empresas digitais, preferiria não ter a responsabilidade sobre essas bases de dados. Eles querem ter acesso a consultas e informações quando precisam, mas não querem necessariamente ter a guarda, porque isso se torna problemático.  Então, no contexto do que cada um está fazendo na economia digital, a esmagadora maioria das empresas não quer seus dados. Há portanto um pequeno número que ganha a vida com isso e é resistente a mudanças. Mas em algum momento você tem que mudar, certo? Em algum momento, o Google se tornará uma grande empresa de hospedagem, não de receita publicitária, por exemplo.

E você acha que essa mudança nesse paradigma pode vir de governos, ou da regulação?

Há definitivamente um papel a ser desempenhado pelos governos propondo um novo modelo para seus cidadãos. O governo pode dizer (para as empresas de Internet): olhe, você quer ganhar dinheiro, nós entendemos, você tem um negócio para administrar. Mas temos de fazê-lo de uma forma que seja boa para os meus cidadãos. Os reguladores têm um papel também. Mas o problema com as regulamentações é que elas são muito lentas e levam anos e anos para se tornarem eficazes. Enquanto isso, o mundo segue em frente. Portanto, a tecnologia tem um grande papel a desempenhar nesse debate e acreditamos que nossa tecnologia é o tipo certo de abordagem para oferecer ao cidadão e às empresas que queiram um modelo descentralizado de gestão dos dados.

Quais seriam essas empresas?

Temos exemplos em varejo, telecomunicações, bancos, seguros, finanças, saúde, que é algo cada vez mais importante… Imagine com IA, com todos os dados que estão na carteira individual de cada um, o que pode ser criado. Temos  um projeto desse tipo em andamento na Bélgica, na área de saúde.   É para ajudar as pessoas que estão com sobrepeso e estão caminhando para o diabetes por causa da dieta, por causa do que comem.  Se pudermos efetuar a mudança agora do estilo de vida, todos economizarão dinheiro para mantê-los bem e não terão que se preocupar com diabetes, por exemplo. No Brasil o governo tem muitas informações sobre o cidadão, mas é um grande risco para eles manter todos esses dados. Há pressão das grandes empresas para que possam comprar esses dados.  

Como vocês ganham dinheiro? Não se pode dizer que existe o risco de você se tornar uma grande tecnologia do futuro, de ser o próximo Google? 

Nenhuma chance, absolutamente nenhuma chance. Não há chance de isso acontecer. Não estamos construindo isso. Mesmo se eu configurar para dizer que vamos cuidar de todas as carteiras baseadas no Solid, o código é aberto, e qualquer um pode fazer a mesma coisa e vai funcionar para todos no mesmo protocolo. Fazemos nosso trabalho com a tecnologia e queremos ter certeza de que ela pode chegar a dezenas de milhões, mas queremos que governos e empresas façam o mesmo. Tenho esperança de que estejamos apenas dando o exemplo e que outras pessoas irão, sim, seguir o mesmo caminho.  A Inrupt ganha na implementação, ajudamos na operação, na consultoria de projetar e testar os aplicativos, mas quem quiser pode fazer as mesmas coisas em cima do Solid por conta própria.
Não há royalties e licenças. Chamamos de concessão de licença do MIT, então é totalmente gratuito.  Este é um mundo que vai mudar (em relação ao uso de dados) e há oportunidades pela frente. Um modelo em que todos ganhem e  possam ter um negócio lucrativo e bem-sucedido sem precisar enganar as pessoas ou tirar vantagem de alguém para fazer isso. É uma missão maior do que apenas ganhar dinheiro.

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