Ancine: VoD deve ser regulado e tributado por receita

A Ancine abriu para consulta pública nesta sexta, 13, a Análise de Impacto Regulatório para o mercado de vídeo-sob-demanda (VoD). A consulta traz uma série de ponderações da agência sobre uma eventual regulação dos serviços e sua tributação, temas que foram objeto de intensos debates nos últimos anos no Conselho Superior de Cinema e que hoje estão no Congresso. Nos últimos meses, a revisão da Lei de TV paga (Lei 12.485/2011) e a eventual regulação dos serviços de conteúdos pela Internet, na qual se inserem as plataformas de VoD e outros serviços OTT, ganhou relevância e passou a ser objeto de fortes discussões no Senado.

O que se depreende da leitura do relatório elaborado pelos técnicos da agência e colocado em consulta é, logo de cara, uma sugestão de tributação dos serviços de VoD mais alinhada com a ideia de uma cobrança de percentual sobre a receita pela exploração do vídeo-sob-demanda. É uma posição diferente daquela que havia sido produzida no ano passado por um grupo formado no Conselho Superior de Cinema e supostamente encaminhada à Casa Civil, onde se indicava um modelo híbrido, com cobrança de uma taxa fixa por assinante e transação ou a cobrança sobre catálogos, num modelo progressivo. A proposta agradava empresas de telecomunicações, radiodifusores e grandes players de VoD, mas a agência do audiovisual parece ter uma visão diferente. Na verdade, a proposta da Ancine é até mais ampla: no limite, seria substituir a Condecine-Título por uma cobrança sobre a receita dos agentes econômicos regulados.

"Algumas alternativas foram analisadas para a reforma do modelo com mudanças de fato gerador e base de cálculo do tributo, em substituição à atual Condecine-título. A primeira hipótese é a obtenção de receitas sobre licenciamento de conteúdos, em que a tributação é proporcional aos resultados comerciais do provimento, fixada por uma alíquota ad valorem", recomenda a AIR. Segundo esta análise, esta alteração poderia ser geral, ou seja, para todos os segmentos; apenas para o VoD; ou ainda uma tributação sobre as assinaturas e transações. "Entre todas as possibilidades analisadas, a primeira destaca-se como modelo geral por tratar com mais equidade e isonomia os diferentes provedores, segundo sua capacidade contributiva; afastar distorções no trato de segmentos concorrentes; e envolver maior simplificação de procedimentos e menor custo burocrático". 

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Para a Ancine, a Condecine cobrada com uma taxa fixa sobre assinaturas de VoD não é a ideal pois "não considera as diferenças de preços e tende a valorizar os serviços mais bem colocados e a penalizar os menores preços. Além disso, o modelo não alcança os serviços baseados em publicidade". Já o efeito negativo de uma Condecine sobre catálogos é que ela, "ao não observar a atratividade do catálogo, essa possibilidade tende a nivelar empreendimentos desiguais, a não diferenciar os tipos de conteúdos e a apresentar algumas dificuldades no enquadramento de obras seriadas". 

Assimetria tributária

A Ancine chama a atenção ainda para a assimetria tributária entre a TV por assinatura, que paga ICMS, e os serviços de VoD, que recolhem ISS; e chama a atenção para o fato de que o tributo pago no Brasil para serviços de VoD (ISS) é substancialmente inferior ao que se paga em outros países. "Internamente, enquanto o ICMS incidente sobre os serviços de TV por assinatura observa alíquotas de 10% a 15%, a inclusão dos serviços de VoD por streaming na lista do ISS garantiu alíquotas limitadas ao intervalo de 2% a 5%. Na comparação internacional, sem considerar outros tributos especiais, os países europeus recolhem Imposto sobre Valor Agregado (IVA, ou VAT na sigla em inglês) sob alíquotas entre 17% (Luxemburgo) e 27% (Hungria), com média de 21% para os 28 países. Na América do Sul, as alíquotas do IVA variam de 21% na Argentina, 19% na Colômbia, 22% no Uruguai. O Chile também debate a imposição de IVA de 19%", compara a Ancine. 

Assimetria de mercado

Na AIR, a Ancine faz uma análise do cenário de assimetria entre o mercado de TV paga tradicional e o mercado de VoD. "Essa assimetria pode ser percebida em dois conjuntos de relações que afetam as condições de isonomia no mercado audiovisual. O primeiro diz respeito às diferenças entre as obrigações tributárias e regulatórias das programadoras de televisão por assinatura em competição com os serviços OTT no mercado doméstico. O segundo abrange os aspectos em que a extraterritorialidade do serviço afeta as condições de competição interna".

Segundo a análise da Ancine, apesar das relações de substituibilidade e concorrência, os mercados de SVoD e TV por assinatura partem de situações diferentes, "por conta do déficit regulatório do VoD". Segundo o documento, enquanto a televisão "inscreve-se no ambiente de comunicações previsto pela Constituição, por suas finalidades, pelos limites e restrições à propriedade cruzada, pelas obrigações relativas ao desenvolvimento interno e aos conteúdos nacionais e independentes ou pela prestação de informações, o VoD apresenta situação diversa. Inclusive no tratamento tributário, esse segmento, dominado por companhias internacionais, é favorecido em relação à TV, segmento marcado pela forte presença nacional". 

A Ancine, contudo, não está sugerindo o nivelamento de condições regulatórias. "É preciso observar que, ao se apontar os fatores de assimetria regulatória entre os dois serviços, não cabe sugerir a necessidade de nivelamento e igualdade nas regras para um e outro. TV por assinatura e SVoD são serviços diferentes, que se interseccionam e competem. Por isso, um marco regulatório para o VoD deve avaliar as características específicas do segmento, mirando em paralelo os efeitos das regras sobre essa competição", sugere a análise de impacto regulatório. Para a Ancine, "a tarefa que desafia os agentes políticos e os agentes econômicos do setor é a montagem de um modelo adequado de assimetria regulatória que equilibre a competição e estimule o desenvolvimento e a inovação".

Para a agência, é recomendável que o marco regulatório para o VoD "seja implementado por um estatuto jurídico único que trate da variedade de temas abrangidos pelo serviço, conforme (…) sua organização jurídica, incluídas as condições institucionais para a prestação dos serviços; o tratamento tributário; os assuntos relativos à oferta de conteúdos brasileiros independentes; e os temas afetos à responsabilidade editorial dos provedores e plataformas".

A análise dos técnicos da Ancine agora em consulta recomenda que, no âmbito da regulação do VoD, seja "reproduzida (…) a divisão proposta pelo marco da TV por assinatura, que define o acompanhamento do mercado de comunicações eletrônicas (as redes de telefonia, TV e Internet, terrestres e satelitais) pela Anatel e o mercado audiovisual (da produção ao empacotamento) pela Ancine". Em relação às regras de propriedade cruzada, que neste momento são discutidas pela Anatel e pelo Congresso (no âmbito do PL 3.832/2019 do Senado), a agência do audiovisual entende que as regras atuais se aplicam, de certa maneira, ao ambiente do vídeo-sob-demanda.

"Os limites à propriedade cruzada estabelecidos pela Lei 12.485 para a TV paga são referência também para o VoD. O modelo baseia-se na conveniência de se isolar o domínio da infraestrutura (ou seja, da Internet, para o VoD) das operações comerciais concorrentes que as utilizam", diz a Ancine. "Assim como as programadoras, os provedores coligados, controladores ou controlados por empresas de infraestrutura tendem a obter condições mais favoráveis do uso da rede, independentemente da qualidade dos serviços, além de existir a possibilidade de vendas casadas e práticas discriminatórias na oferta dos concorrentes. No caso do VoD, quando da avaliação deste modelo deve-se levar em consideração que, devido às diferenças entre este mercado e aquele de TV paga, o provimento do serviço até poderia ser feito pelas empresas de telecom – detentoras da infraestrutura – desde que os catálogos sejam organizados de forma independente", sugere a AIR em consulta. Para os técnicos da Ancine, "as empresas também podem atuar como lojas de VoD transacional ou na aglutinação dos serviços e catálogos de outros provedores, como atualmente. Em qualquer dos casos, os interesses comerciais da empresa concorrem para ampliar e não para restringir a oferta de conteúdos e catálogos". 

Responsabilidades Constitucionais 

A AIR colocada em consulta também traz a visão de responsabilidade das plataformas de VoD sobre aspectos Constitucionais. "Enquanto a televisão inscreve-se no ambiente de comunicações previsto pela Constituição, por suas finalidades, pelos limites e restrições à propriedade cruzada, pelas obrigações relativas ao desenvolvimento interno e aos conteúdos nacionais e independentes ou pela prestação de informações, o VoD apresenta situação diversa", escreve a Ancine. Para a agência, contudo, "toda a comunicação social eletrônica no Brasil deve ser pautada por finalidades preferencialmente educativas, culturais e informativas, respeito à eticidade dos usuários e à plena liberdade de informação e expressão e a defesa da cultura nacional e da produção independente e regional. Os serviços prestados no país também devem servir como plataforma de desenvolvimento dessa atividade econômica no país", diz a AIR. Neste sentido, sugere  a Ancine, "um conjunto de assuntos vinculados à responsabilidade editorial merecem tratamento regulatório pelo marco legal do VoD: a abrangência da responsabilidade, a exigência de registro dos responsáveis, as obrigações relativas à veiculação de publicidade, o dever de cuidado e proteção aos menores, a aplicabilidade das regras de acessibilidade de deficientes auditivos e visuais sobre a oferta dos serviços, a responsabilidade e procedimentos em relação à veiculação de notícias falsas e práticas de desinformação, as obrigações quanto à prestação de informações ao usuário". 

Poder de regular hoje

A Ancine entende que tem sim poder de regulação sobre o mercado de VoD. " No caso do VoD, as prerrogativas da agência estão relacionadas à administração da Condecine-título, à responsabilidade pelo sistema de informações com a coleta de dados sobre oferta e consumo, ao registro dos agentes e atividades, à regulação das matérias vinculadas à programação e empacotamento de TV que interferem no VoD, além da responsabilidade geral de fiscalizar o cumprimento da legislação audiovisual em todos os segmentos do mercado", diz a agência. E nesse sentido, a orientação da AIR é que para estes aspectos sejam desde já colocados na Agenda Regulatória. Em relação ao levantamento de dados de receita para a tributação da Concedine-Remessa, a indicação da AIR é para que isso seja feito por meio da Receita Federal.

A consulta da AIR foi aprovada pelos dois diretores da agência em condições de exercer suas prerrogativas: Alex Braga (presidente interino) e Débora Ivanov. Christian de Castro está afastado por determinação judicial, e a partir de outubro a diretoria colegiada da Ancine deve ficar inoperante com o término do mandato de Débora Ivanov, que ainda não teve substituto indicado (o nome da diplomata e servidora do Itamaraty Paula Souza chegou a ser anunciado pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra, mas a mensagem presidencial ainda não foi ao Congresso).

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