Regulamento de qualidade: entre o avanço regulatório e a ilegalidade

O parecer do advogado e professor da FGV Carlos Ari Sundfeld que integra a contribuição do SindiTelebrasil à consulta pública do novo Regulamento de Qualidade de Serviços em Telecomunicações, deve ser lido com muita atenção pela Anatel. Os argumentos precisam ser verificados à exaustão e, se for o caso, contestados ponto a ponto pela agência caso decida ir adiante com as propostas trazidas na consulta. Trata-se de um parecer opinativo, mas que facilmente pode se transformar em uma peça judicial de contestação, caso as empresas adotem uma postura mais agressiva. E é possível notar uma indisposição crescente entre as empresas do setor e a agência, o que pode resultar em uma judicialização não apenas das sanções e arbitragens, como ocorre com frequência hoje em dia, mas das próprias ações regulatórias da Anatel, gerando um clima de grande instabilidade jurídica.

Note-se que o parecer de Sundfeld é até elogioso à iniciativa da Anatel de encontrar um modelo de regulação responsiva para a questão da qualidade dos serviços, ou seja, em que haja estímulo ao cumprimento de normas de forma espontânea, sem a necessidade de "uso da força" por meio de medidas sancionatórias. Mas os elogios ficam apenas nas intenções da agência. Indo ao mérito, Sundfeld não poupa palavras duras: "Há obstáculo jurídico à adoção do referido modelo"; "as medidas de aplicação automática violam o Direito brasileiro"; "a solução proposta é, assim, juridicamente inviável"; "a proposta padece de vício: falta-lhe base legal"… Estas são algumas das conclusões do parecer.

Há muitos anos a Anatel fala em reduzir a carga regulatória e em adotar critérios mais eficientes para exigir qualidade nos serviços, fiscalizar a atuação das empresas e ter resultados positivos, sem ter que aplicar sanções em sequência no caso de não-cumprimento de obrigações. Até aqui, o fracasso do modelo de fiscalização é evidente: com mais de R$ 9 bilhões em processos administrativos em curso e um montante equivalente já em disputa judicial, está claro que o modelo nem faz os serviços melhorarem, tampouco reverte as sanções em benefícios à sociedade, já que as multas ficam anos em disputa na Justiça. A proposta do  Regulamento de Qualidade de Serviços em Telecomunicações há muito tempo prometia ser o início de um novo conceito regulatório, e de certa maneira foi uma proposta cheia de novidades para os padrões normais de regulamentos da agência, com forte preocupação de modernizar alguns conceitos. Mas Sundfeld entende, em sua análise, que algumas das inovações trazidas pela agência são simplesmente incompatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro. E aí fica a pergunta: se for isso mesmo, é possível achar uma alternativa de regular e fiscalizar a qualidade dos serviços respeitando as previsões legais brasileiras e, ao mesmo tempo, dando mais eficácia ao modelo ?

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O parecer contesta alguns dos pilares centrais da proposta do novo regulamento de qualidade. Uma das ideias diferentes trazidas pela agência foi estabelecer medidas automáticas que estimulassem as empresas a responder sempre que os índices de qualidade caíssem abaixo de determinado patamar. Medidas tais como descontos compulsórios, quebra automática de cláusulas de fidelização e suspensão temporária de vendas de serviços, por exemplo, seriam disparadas sempre que alguma meta não fosse atingida. E a verificação destes indicadores seria feita por uma entidade privada, uma associação formada pelas empresas de telecomunicações (EAQ -Entidade Aferidora da Qualidade), que coletaria os indicadores e daria publicidade dos dados à população.

Para Carlos Ari Sundfeld, as medidas automáticas propostas pela Anatel não são responsivas, mas sim meramente sancionatórias. E como qualquer sanção, precisam passar por um processo formal, com amplo direito de defesa e contraditório. "Punição não é regulação responsiva. Punição exige o devido processo legal". Ainda mais quando a punição é o ressarcimento de valores, descontos ou quebra de fidelidade, que são medidas típicas de quebra de relações contratuais entre operadoras e consumidores, não sanções por falhas sistêmicas, diz o advogado. "A LGT indicou exaustivamente as espécies de sanção administrativa que podem ser aplicadas pela Anatel em caso de infração à regulamentação do setor. São as sanções de advertência, multa, suspensão temporária, caducidade e declaração de inidoneidade (art. 173). Não há previsão legal de medida como a redução no valor da contraprestação a ser paga pelos usuários. Ao instituir em regulamento esse tipo de medida como consequência de uma infração administrativa, a agência, de fato, estaria criando uma sanção administrativa sem base legal", diz o parecer.

Vale lembrar que a Anatel já aplicou cautelarmente medidas como suspensão de vendas ou de cobrança, mas em todos os casos, lembra Sundfeld, em processos devidamente abertos, com direito a defesa, e nunca de forma automática a partir de um gatilho detonador, como o não atingimento de uma meta, por exemplo.

Isso para ficar apenas no problema jurídico, porque o parecer da LCA Consultores, também anexado pelo SindiTelebrasil à contribuição, mostra uma conta conservadora em que estas medias compensatórias podem custar mais de R$ 295 milhões por semestre às teles, mas refletindo-se em centavos na conta. Caso o problema persista em três ciclos, o custo da compensação vai a R$ 1,7 bilhão, apenas considerando os serviços de telefonia fixa e banda larga, sem falar em TV paga e telefonia móvel. Para agravar, dada a forma como o Índice de Qualidade de Serviço é construído, sempre haverá operadoras abaixo do indicador, sujeitas portanto às sanções previstas, problema agravado em municípios com menos competição, o que seria um desestímulo para o atendimento destas cidades, diz a LCA.

EAQ na berlinda

Sundfeld detona também a ideia de uma entidade fiscalizadora independente, como proposto na consulta pública. Segundo ele, isso só pode ser feito por lei, já que o papel de fiscalizar é da Anatel e é indelegável. Ainda mais quando a criação da EAQ exigiria recursos financeiros das próprias operadoras, que já pagam o Fistel para serem fiscalizadas. Outros problemas da EAQ: seria de associação compulsória por parte das operadoras, o que só poderia ser determinado  por lei; seria fiscalizada pela Anatel, e não há previsão para que a agência tenha ascendência sobre uma entidade que não é prestadora nem usuária de serviços. Além disso, diz o parecer, "a Anatel pretende delegar de modo permanente, a esta entidade privada autônoma, a responsabilidade pública pela parte mais essencial da fiscalização de qualidade dos serviços de telecomunicações".

Essa crítica jurídica é especialmente preocupante porque a agência tem flertado com o modelo de entidades autônomas há algum tempo, até agora sem maiores questionamentos. Foi assim com a EAQ responsável por verificar os indicadores de qualidade do SCM (banda larga), uma experiência tida pelas empresas como muito ruim, pois era um contrato pago pelas empresas em que a Anatel definia o escopo e exigências da atuação da entidade sem se preocupar com as consequências econômicas ou dificuldades técnicas das intervenções.

O parecer de Carlos Ari Sundfeld é tão contundente que fica no ar a pergunta se seria possível sair do modelo sancionador na questão da regulamentação de qualidade. "O problema não está na criação de um sistema de autorregulação. Esse modelo não é, em si, inédito. Porém, a atuação de entidade privada com atribuições regulatórias, quando foi instituída oficialmente em determinados setores, sempre o foi com base em previsão legal, que é exigível", diz. Mais adiante, afirma: "na ausência de previsão legal, as empresas até poderiam criar espontaneamente uma associação de caráter independente para tomar determinadas medidas em prol da transparência no setor".

Ele afirma ainda que "seria viável, por exemplo, a instituição de estímulos regulatórios para que os operadores do setor instituíssem mecanismo de fiscalização fiducial reconhecido pela própria agência (…). Os agentes regulados se comprometeriam a informar ao regulador, mediante contratação de entidades privadas de auditoria, os dados necessários a realizar a aferição de qualidade do setor. Trata-se de modelo assemelhado ao já adotado no setor, por exemplo, para a atestação do cumprimento de metas de universalização. No modelo fiducial, a regulação aceita que o regulado assuma a incumbência de prestar as informações necessárias à fiscalização por meio da contratação de entidade privada idônea, de sua livre escolha, para auditar e organizar esses dados".

Fica evidente que, entre a análise das contribuições da consulta e o regulamento final, a agência precisará fazer uma checagem dupla nas suas propostas, sob o risco de ser questionada mais adiante. Conceitualmente o regulamento traz avanços importantes, mas é nos detalhes que a coisa começou a se mostrar mais complicada. E as operadoras não parecem mais dispostas a aceitar caladas qualquer imposição regulatória. O caminho ainda deve ser longo.

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