No Brasil, atuação das big techs trava projetos que regulam ecossistema digital

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Enquanto o mundo aplica uma série de sanções para as grandes plataformas digitais globais, fruto de descumprimento de obrigações legais que existem nas normas internas dos países, no Brasil, as big techs têm conseguido evitar modelos regulatórios que que estabeleçam ou ampliem responsabilidades – seja de natureza tributária, social ou que exija transparência em seus mecanismos de moderação de conteúdos.

Há três grandes exemplos que mostram essa prática: a tramitação do projeto de lei 2.630/2020, conhecido como PL das Fake News; o projeto de lei 2.338/2023, que cria um marco legal do uso de Inteligência Artificial no Brasil; e projetos relacionados aos serviços de streaming, como o PL 2.331/2022.

O PL 2.630/2020 propõe obrigações para as plataformas na questão da responsabilização sobre conteúdos publicados por redes sociais. Entre elas, regras de transparência na moderação de conteúdos e publicidade digital, combate a riscos sistêmicos e justificativas para os casos em que determinados conteúdos forem retirados.

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O texto já esteve por duas vezes na pauta de plenário da Câmara dos Deputados para ser votado, pois já foi aprovado no Senado Federal, mas a movimentação grande das plataformas, aliada com a oposição, fez com que a matéria não fosse aprovada.

O próprio presidente da casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), reconheceu que a matéria enveredou por uma narrativa pública de censura e cerceamento da liberdade de expressão difícil reverter. Muitos dos que propagaram essa narrativa foram parlamentares da base conservadora, com o uso de deinformação, como o de que o texto cercearia trechos da Bíblia, replicada por diversos parlamentares sobre o assunto.

Hoje, a matéria que teve quatro anos de debates intensos no parlamento brasileiro está sob análise de um novo grupo de trabalho que não tem data para se reunir. Foi a saída encontrada pelo presidente Arthur Lira para continuar a discussão sobre o tema.

Inteligência Artificial

Já no PL 2.338/2023, que cria o marco legal da Inteligência Artificial no Brasil, o debate enveredou pelo desenvolvimento, ou não, da inovação no ecossistema digital. A atuação das grandes plataformas sobre diversos aspectos do texto foi também incisiva.

Nesse tema, um ator nacional entrou em cena: a Confederação Nacional das Indústrias (CNI). Juntos, os dois setores conseguiram influenciar parlamentares para que a matéria não fosse votada, sendo que o texto é de autoria do presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

A argumentação utilizada pelas plataformas foi a de que o texto que estava sendo apresentado pelo relator da matéria, senador Eduardo Gomes (PL-TO), pormenorizava obrigações e sanções que poderiam inibir a inovação. As big techs, e depois a CNI, defendiam um texto mais "principiológico". A matéria apresentada pelo senador Eduardo Gomes trazia uma inovação no modelo de fiscalização regulatória da tecnologia, pois previa a criação de um sistema, coordenado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), composto por diversos outros reguladores.

Na última sessão da Comissão Temporária que analisava a matéria, o senador Marcos Rogério (PL-RO) argumentou contra o texto, dizendo que era necessário mais tempo para discutir o assunto.

Tributação do streaming

O texto do PL 2.331/2022, que propõe a incidência da Condecine sobre os conteúdos audiovisuais que circulam nas plataformas ,foi outro front em que as grandes empresas de tecnologia atuaram para garantir a prevalência dos seus interesses.

O texto, que contou com apoio de produtores e diversos outros setores da cadeia produtiva do audiovisual, foi aprovado no Senado com a ressalva de que receitas com vídeos produzidos por usuários não sejam tributáveis. Por consequência, ficaram de fora videos que geram grande audiência, engajamento, e consequentemente, mais lucros para as plataformas.

O texto, que está em análise na Comissão de Cultura da Câmara do Deputados, sob a relatoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), passará uma por audiências públicas.

Mas a própria deputada Jandira Feghali já disse sua a prioridade será o PL 8.889/2017, do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que está pronto para ter seu relatório, elaborado pelo deputado André Figueiredo (PDT-CE), votado em plenário. O texto teve que passar por modificações, pois a base conservadora da Câmara não concordava com alguns temas. Ele também é um dos que sofre resistência das grandes plataformas.

Por que no Brasil é diferente?

Segundo Bia Barbosa, coordenadora de incidência da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) na América Latina e representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), há uma orientação global das plataformas em trabalhar para evitar que em qualquer país surjam legislações que venham a atrapalhar seus interesses econômicos.

"Esses três episódios mostram muito claramente que há uma orientação global das grandes plataformas digitais de tentar frear e barrar qualquer processo regulatório em qualquer país que possa trazer obstáculo para os seus interesses econômicos nessas diferentes nações. Elas operam dessa maneira verticalizada, no sentido de que há uma determinação e uma orientação da sede da empresa em todos os países. O resultado dessa orientação vai depender muito da realidade de cada região, de cada local", diz Barbosa.

Ela destaca que os casos de marcos legais regulatórios de plataformas feitos na Europa têm uma outra conotação, diferente do Brasil, por conta do histórico europeu de regular serviços, especialmente os de comunicações. "Na Europa, sem dúvida nenhuma, [há] histórico regulatório de diferentes setores, mas também do campo das comunicações na Europa, que é uma região em que os países contam com órgãos reguladores do audiovisual e das comunicações desde a década de 80 e 90", diz a representante do terceiro setor no CGI.br. Nessa estrutura, os argumentos de que regulações podem vir a cercear o exercício da liberdade de expressão encontra muito menos eco na sociedade e nos tomadores de opiniões.

Barbosa também diz que no caso brasileiro, existe o fato dessas plataformas terem como principal aliado no seu discurso a extrema direita. "Partidos de extrema direita e vozes de extrema direita no primeiro momento do PL 2630 talvez não tenham sido 'acionadas' diretamente por essas plataformas para se organizarem e vocalizarem contra o PL que foi apelidado por essas lideranças de PL da censura, mas no episódio da regulação de inteligência artificial eles estão sendo diretamente acionadas por essas plataformas para frearem", diz.

O caso da última sessão da Comissão de Inteligência Artificial que discutiu a possibilidade de votação ou não do texto do relator Eduardo Gomes, Bia Barbosa destaca a articulação das plataformas digitais com o senador Marcos Rogério, que é uma das principais lideranças do bloco conservador dentro do Senado Federal. "O mesmo pôde ser visto em outros projetos".

Legitimidade

Para o diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS), Carlos Affonso, é importante que haja um equilíbrio entre o que é legítimo da empresa falar e o que vira abuso de poder. Ele destaca que no projeto de lei 2630/2020, o gigantismo do projeto final acabou atrapalhando-o na reta final.

"Empresas de qualquer setor têm todo o direito de se manifestar sobre como projetos de lei podem impactar as suas atividades. Quando se trata de empresas de tecnologia, dada a forma pela qual elas estão inseridas na vida de todos, servindo como plataformas de comunicação, informação e de entretenimento cotidianas, toda mensagem vinda da empresa naturalmente ganha mais atenção", diz o advogado.

Ele explica que nestes casos, existe o risco da legítima posição sobre propostas regulatórias se transformar em práticas abusivas, a depender do conteúdo e do modo pelo qual a empresa se manifesta.

Para ele, o debate sobre a atuação das empresas de tecnologia no Congresso não deve ocultar o fato de que alguns obstáculos encontrados na votação de propostas regulatórias recentes decorrem dos próprios textos, que acabaram procurando incorporar muitos temas debaixo da mesma proposta, dificultando ou inviabilizando acordos para aprovação.

"O caso do PL 2630 é emblemático nesse sentido. Se por um lado parece claro que o Marco Civil da Internet precisou de atualizações vindas do Congresso, o projeto, que nasceu para tratar de desinformação, em certa medida passou a tratar também de remuneração de jornalistas, direitos autorais, imunidade parlamentar nas redes sociais, e acabou não conseguindo ser aprovado", explica Carlos Affonso.

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