Às vésperas da Conferência Interacional de Radiocomunicação da UIT (WRC 2019), no Egito, e com o leilão de espectro de 5G no Brasil previsto para 2020, o cenário de disputa por espectro e novos modelos de gestão de frequências começa a ficar, no mínimo, mais movimentado no País. Esta semana, Martha Suarez, que preside a Dynamic Spectrum Alliance (DSA), peregrinou em diversos gabinetes de Brasília, incluindo MCTIC, Anatel e Ministério da Economia, levantando uma questão: será que o modelo brasileiro de gestão de espectro atende às necessidades do Brasil? A entidade advoga por modelos de gestão espectral que permitam a ampliação dos serviços de banda larga por diversas tecnologias, e diversos provedores, para além das empresas tradicionais.
A DSA existe há cerca de dois anos e congrega empresas como Amazon, Microsoft, Google e Facebook, assim como fornecedores como Cisco, Broadcom, Aruba, Ruckus entre outras. Em entrevista a este noticiário, Suarez explicou que o objetivo central da entidade é conectar a população não conectada. "Metade do mundo não tem conexão à Internet ou têm conexões muito limitadas, são 4 bilhões de pessoas, e precisamos que os governos considerem mais alternativas para conectar estas pessoas", diz a dirigente, que durante muitos anos foi a principal autoridade reguladora de espectro na Colômbia.
Para Martha Suarez, as operadoras existentes de telecomunicações têm feito um esforço relevante, mas ainda existe um contingente muito grande de pessoas não conectadas e é preciso encontrar outras soluções. "Há tecnologias para prover conectividade. Mas não é só a tecnologia, é também fazer com que a conectividade seja acessível e sustentável".
Uma das principais abordagens propostas pela DSA é a gestão dinâmica e compartilhamento de espectro, não-licenciado e licenciado. Basicamente, o conceito está baseado em um banco de dados aberto sobre como o espectro está sendo utilizado, em tempo real, e quando ele está liberado para que diferentes provedores possam utilizá-lo. As diferentes redes se conectam a este banco de dados e operam em função dos níveis de prioridade alocado a cada operador. Existem diferentes modelos que podem ser desenvolvidos no mesmo conceito. Como não há exclusividade sobre o uso do espectro e vários provedores podem acessá-lo ao mesmo tempo, e muitas vezes as redes podem ser construídas de forma compartilhada, os custos de entrada tendem a ser menores.
Um dos primeiros experimentos está sendo feito pela FCC nos EUA, na faixa de 3,5 GHz, que é prioritariamente utilizada para Defesa naquele país. A tecnologia CBRS (Citizens Broadband Radio Service) começou a funcionar há cerca de três semanas e promete ser a grande vitrine do tipo de modelo de compartilhamento promovido pela DSA. "É uma tecnologia em que temos três níveis de usuários para uma porção de 70 MHz da faixa de 3,5 GHz. A Marinha é uma das incumbents, mas não usa o tempo todo nem em todos os locais ao mesmo tempo. Então existe um segundo grupo de usuários que são os que têm as licenças de uso prioritário (PAL), que podem usar quando a Marinha não estiver transmitindo. Eles aplicarão por estas licenças em um leilão público em 2020. E há um terceiro nível, que são os que tem autorização de uso geral, que podem usar quando e onde ninguém mais estiver usando as faixas, e não precisarão participar de nenhum processo de leilão para licenciamento", explica. Com isso, tanto o governo, que tem o uso prioritário (no caso dos EUA), passando pelas grandes operadoras de 5G (que ao adquirirem a prioridade levam também uma parcela exclusiva do espectro), chegando possivelmente a pequenos e médios prestadores locais, todos poderão compartilhar a faixa. O segredo está justamente no banco de dados mantido pela FCC com informações em tempo real do uso das faixas. O controle prioritário é feito também por meio de sensores, no caso das operações da Marinha. A gestão do banco de dados e controle são feitos por um consórcio entre Commscope (Ruckus), Google e a Federated Wireless, não por acaso três das associadas da DSA, além da Sony e da Amdocs, que não são parte da associação. "Tudo tem que seguir as regras da FCC", diz a executiva, lembrando que mesmo que a situação dos 3,5 GHz nos EUA seja muito específica, por conta do uso militar prioritário, o conceito pode ser usado em outras circunstâncias.
Ela admite que é um modelo pode gerar uma certa incerteza para quem não tem o acesso prioritário, mas por outro lado não se paga pelo espectro. "E nossa impressão é que em algumas localidades haverá muito espectro ocioso para o uso geral", especula.
Um aspecto que a DSA defende é que cada solução de alocação dinâmica de espectro seja bem ajustada às realidades dos diferentes países. "Cada país tem uma realidade diferente nas diversas faixas e isso é o que estamos buscando mapear ao redor do mundo. No Brasil, por exemplo, a banda C do satélite é uma realidade diferente de outro países. Em breve publicaremos inclusive um estudo sobre compartilhamento de espectro ao redor do mundo para mostrar as especificidades", diz.
Cobertura e capacidade
Outra questão sobre a qual a DSA tem se debruçado é a promoção do WiFi 6 e a busca de mais espectro para a tecnologia. "É uma tecnologia que oferece boa cobertura e velocidades consideráveis com pouco espectro e grande capacidade de conexão de diferentes dispositivo. O que buscamos é um pouco mais de espectro para o WiFi 6, que é uma tecnologia aberta", diz Martha Suarez. "Entendemos que os governos avaliam os impactos financeiros leiloar as faixas para o uso licenciado, mas a liberação das faixas para uso não-licenciado também tem um benefício social importante, pois WiFi é muito mais acessível. Esta (o WiFi) é hoje, e continuará sendo, a única rede acessível para grande parte das pessoas". Uma das faixas buscadas para o WiFi 6 é a de 6 GHz. Mas a DSA não pede exclusividade da faixa para uso não-licenciado, apenas que ela não seja exclusiva do IMT (banda larga móvel). "Hoje esta faixa está alocada para sistemas de satélite, redes fixas e serviços móveis", explica Martha. "Para nós, a designação para serviços móveis é suficiente e entendemos que neste modelo podemos compartilhar esta faixa, inclusive no modelo de alocação dinâmica de espectro", diz ela, ponderando que os operadores móveis tendem a demandar o uso exclusivo da faixa caso ela esteja prevista para o IMT.
"Eles (as operadoras móveis) compartilham espectro entre eles, mas o modelo de compartilhamento que propomos é entre serviços diferentes, como satélites ou acesso fixo, e isso é mais complicado. Mas o compartilhamento faz sentido do ponto de vista econômico e, sobretudo, sob o ponto de vista de uso eficiente, diz Martha Suarez. Para ela, depois da WRC 2019, as operadoras móveis terão alguns milhares de MHz de espectro disponível. "Não somos contra o IMT, e entendemos que é uma tecnologia importante para o ecossistema da conectividade. Mas não pode haver apenas espectro licenciado, é preciso que haja as duas modalidades: licenciado e não licenciado. Na América Latina existe inclusive uma parte grande do espectro alocado e identificado que sequer foi leiloado. E temos indiscutivelmente uma carência de cobertura", diz. "Entendemos que banda larga é um negócio, e precisa de atratividade, mas vamos pensar fora da caixa: existem parceiros locais que podem fazer esse esfoço de cobertura? Por que não criar modelos que incentivem estes parceiros?".
A DSA também defende que algumas faixas nas bandas milimétricas sejam neutras, como a faixa de 57 GHz e 71 GHz, para aplicações de IoT em qualquer tecnologia e de uso não-licenciado. Especificamente nos EUA, a associação busca a possibilidade de a banda C (3,7 GHz a 4,2 GHz) ser utilizada para conexões ponto-multiponto no modelo compartilhado.
White Spaces
Outro item na agenda da DSA é o modelo de white spaces, que usa as faixas de 470 MHz a 698 MHz, alocadas para a radiodifusão. O modelo de white spaces só usa as frequências não utilizadas para TV, o que é muito comum fora dos grandes centros. "A cobertura do UHF é perfeita para a cobertura rural, pela propagação a grandes distâncias. Aqui, o conceito de alocação dinâmica é o mesmo, e é mais simples na faixa do broadcast porque há menos mudança no uso da faixa" . A rede compartilhada pode ser operada inclusive pelos radiodifusores, que atuariam como provedores de backhaul para redes de WiFi comunitário, exemplifica a presidente da DSA. "O que a gente pede aos reguladores é que abram a regulamentação e permitam que esses ecossistemas se desenvolvam e usem o espectro que não está sendo utilizado".
Mercado secundário
Para Martha Suarez, o conceito de mercado secundário, que já existe nos EUA e que acaba de ser criado no Brasil pela Lei 13.879/2019, que estabeleceu o novo modelo de telecomunicações, tem aspectos positivos. "Promove a eficiência espectral, a inovação e ajuda a desenvolver o acesso, coisas com as quais concordamos. Mas o que vemos na prática é que o modelo de mercado secundário não foi muito efetivo, por conta do custo ou da falta de incentivos para a venda das frequências. Esse é um dos fatores que devem ser levados em consideração pelo Brasil na implementação do mercado secundário. Se você é uma grande empresa e detém o espectro e existe uma pequena empresa que busca acesso no mercado secundário, as negociações são muito difíceis. Pensamos que deve-se levar em consideração uma política de 'use ou compartilhe', simultânea ao mercado secundário. Se você não vai usar e não vai negociar, deve compartilhar. Não tem problema em querer negociar e ter um bom preço, mas é preciso haver disposição e facilidade para negociar", diz Suarez. Nos EUA, diz ela, a experiência mostra que menos de 10% das negociações entre ISPs locais e grandes detentores de espectro chegaram a um bom termo. "É preciso que haja transparência sobre o uso do espectro, sobre a eficiência de uso, sobre onde há cobertura e onde há tráfego. Esse banco de dados é essencial para que as negociações aconteçam", diz Martha Suarez.