O debate sobre a neutralidade de rede voltou a se aquecer depois que a FCC decidiu revisar suas próprias normas. Dia 14 a agência reguladora norte-americana votará sua nova posição. No Brasil, algumas matérias da grande imprensa especularam sobre um suposto desejo das empresas de telecomunicações em rever as regras de neutralidade existentes por aqui.
Mais do que um debate sobre quem está certo ou errado e sobre qual é o lado bom e qual é o lado mau da história, este é, essencialmente, um debate sobre os direitos e deveres dos proprietários das redes de acesso banda larga; os direitos dos usuários deste serviço; e qual o nível de controle e regulação que se espera do Poder Público em relação a estas redes e aos serviços por elas prestado. Não existe nenhuma resposta simples a nenhuma destas questões, e no Brasil o problema é mais complexo ainda, pela natureza dispersa da nossa legislação.
Olhando sob a ótica da propriedade da infraestrutura de banda larga, é ponto pacífico que todas as redes do país que hoje se prestam ao acesso de usuários residenciais são, essencialmente, privadas. Pode-se argumentar que talvez as redes de par-trançado, utilizadas para os serviços baseados na tecnologia xDSL, por serem também utilizadas para o STFC, estejam vinculadas de alguma forma à concessão pública. Mas fora o fio de cobre, todo o resto dos equipamentos necessários para fazer a banda larga funcionar nestas redes não existia antes da privatização. Aliás, só passou a existir muito tempo depois. Por iniciativa privada, das próprias operadoras, movidas exclusivamente por interesses comerciais, e com pouco ou nenhum suporte de políticas públicas.
Mas todas as redes de telecomunicações (inclusive as que se prestam aos serviços de transmissão de dados) não escapam de sua natureza pública. Isso era algo que já podia ser encontrado, do ponto de vista legal, na extinta Lei do Cabo (Lei 8.977/1995, ainda válida quando os serviços de banda larga passaram a ser oferecidos), que trazia os conceitos de "rede única" e "rede pública" (Artigo 4 Incisos XV e XVI); na Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/1997), que também condiciona no seu artigo 146 inciso III o direito de propriedade à sua função social (repetindo a Constituição, aliás), assegura a interconexão e o pleno acesso às redes por parte dos provedores de Serviços de Valor Adicionado (Artigo 61, parágrafo II); e finalmente no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que reiterou a finalidade social da rede (Artigo 2, inciso VI), o direito de acesso à Internet a todos (Artigo 4 inciso I) e a natureza essencial do acesso à Internet ao exercício da cidadania (Artigo 7).
Todas as leis que podem ser usadas para discutir a natureza da propriedade das redes de telecomunicações, contudo, deixam claro que por trás de seu uso existe uma natureza de exploração comercial. Operação privada, prévia contratação (Lei do Cabo, Artigo 4), remuneração (Lei do Cabo Artigo 30), liberdade de modelos de negócio (Marco Civil, artigo 3 inciso 8 e artigo 3 inciso III), exploração comercial, livre negociação (LGT, artigo 5) entre outras são expressões que aparecem nos marcos legais existentes com tanta ênfase quanto expressões que dão às redes uma natureza de claro interesse público e social.
Nesse sentido, o que deve prevalecer na discussão sobre a neutralidade das redes de banda larga? Sua natureza pública ou seu uso comercial?
Sabemos que elas foram construídas em um ambiente de exploração totalmente privado. O dilema, portanto, é que que por mais privadas que sejam as redes de telecomunicações, elas (as redes) devem cumprir uma função social e devem garantir a ampla interconexão e o pleno e livre acesso dos serviços de valor adicionado. Mas aos seus proprietários também é assegurada a exploração comercial. Ou seja, estas redes têm um dono e esse dono tem o direito de ser remunerado pelo que ali trafega. Quem será o arbitro desses conflitos? Normalmente, um regulador, que o Brasil não tem para o mundo da Internet. Mas aí surge um outro problema.
Nos EUA, o embate regulatório sobre a Internet se dá sobre a possibilidade de a FCC regular as redes de acesso à Internet para assegurar a neutralidade e a possibilidade de a FCC não mais regular isso, deixando o assunto para a agência de comércio (FTC). Os defensores da neutralidade querem que a FCC mantenha seus poderes de enquadrar Internet como serviço de telecomunicações.
No Brasil, por outro lado, a Anatel é a última instância em que os defensores da neutralidade plena querem ver o debate ser travado. Aliás, não haveria sequer debate a ser travado, já que o entendimento é que as empresas de infraestrutura só poderiam cobrar de uma maneira: pela diferenciação de velocidade de acesso.
Sob qualquer perspectiva que se olhe, o debate está truncado, e nada indica que haverá sensatez para um novo debate sobre neutralidade no Brasil.
Sem redes de telecomunicações não existe Internet. Não existem, portanto, nenhum dos serviços que trafegam sobre ela. E se as redes de acesso à rede que existem são privadas, é justo que caiba aos seus detentores a liberdade de explorar os modelos comerciais como acharem convenientes (e que forem aceitos pelos consumidores).
A Internet, por outro lado, é essencial na sociedade em que vivemos, e pensar em um ambiente sem nenhum tipo de regulação parece um risco demasiado, seja aos direitos dos consumidores, seja à própria natureza essencial do serviço. É um jogo em que, tudo indica, nenhum dos lados poderá conseguir 100% do que gostaria.