Proteção de dados e a (falta de) regulação do ambiente digital

A sanção presidencial à lei que cria a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, com todos os vetos e desidratações, é um convite necessário a um aspecto que tem ficado relegado ao segundo plano dos debates econômicos no Brasil dos dias de hoje: o papel da regulação, e do regulador, sobretudo no ambiente da economia e serviços digitais.

A primeira agência reguladora brasileira, a Anatel, hoje já com seus 22 anos, surgiu ainda no primeiro governo FHC, em um ambiente em que inegavelmente a visão privatizante já havia se sobreposto à visão estatizante da economia. Naquele momento, o papel do regulador forte, independente, capaz de acompanhar e disciplinar o nascente ambiente privado das telecomunicações, era algo considerado essencial para a atração de investimentos, segurança jurídica dos contratos e proteção do consumidor. A discussão que havia era se o Executivo não estaria, justamente, se afastando demasiadamente de seu papel de formulador de políticas públicas, mas nunca sequer se cogitou diminuir ou desidratar o papel do regulador.

Ao longo dos anos Lula e Dilma, houve momentos em que o Executivo tentou recuperar o seu papel de formulador de políticas e, em alguns caso esta tarefa acabou se sobrepondo o papel da Anatel, mas logo o próprio governo entendeu que o caminho era fortalecer o regulador. O movimento que se viu, então, foi uma atuação regulatória muitas vezes excessiva, sobretudo no quesito sancionatório, sem ponderar as consequências danosas para o próprio mercado. Em nenhum momento, contudo, a autonomia da Anatel ficou em xeque. Ao contrário, a agência se fortaleceu com um corpo técnico de carreira que subsiste até hoje, e que foi capaz de se reciclar e inclusive trazer para o debate conceitos mais avançados de regulação.

Notícias relacionadas

Com a ruptura de 2016 e a mudança drástica do vento político, o discurso liberalizante, de mínima intervenção na economia, ganhou corpo, e foi justamente neste contexto que se discutiu a Lei Geral de Proteção de Dados. Trata-se de um marco legal tão relevante para a nova economia digital quanto foi a Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, para a expansão da conectividade. É uma lei que se propõe a ser um marco legal com a solidez dos grandes marcos econômicos, mas que surgiu em um momento em que falar de regulação de mercados soa como algo ruim, como uma ode à ineficiência econômica e ao intervencionismo. Não é.

A regulação de certos mercados, e a consequente e necessária existência de um regulador forte e autônomo, não se opõem ao livre mercado ou ao desenvolvimento econômico. A regulação é necessária quando a concentração de mercado, os recursos escassos e os riscos inerentes a suas atividades são ameaças ao consumidor e aos direitos do cidadão, e ao bom funcionamento do próprio mercado. Nada é mais importante no mundo digital do que os dados, pessoais ou não. Toda a economia será, em breve, baseada no armazenamento, troca e processamento destas informações. Dar ao Estado a capacidade de acompanhar e regular de maneira eficiente este ambiente é essencial. A Lei Geral de Proteção de Dados ficou capenga deste instrumento, porque há sérias dúvidas sobre qual será a autonomia e a capacidade operacional da Autoridade de Proteção de Dados na forma como ela acabou sendo criada. É como se a Lei Geral de Telecomunicações fosse sancionada hoje tendo como regulador um departamento dentro do ministério, e não uma agência autônoma.

Os argumentos que parecem ter prevalecido nos debates sobre a ANDP, no sentido de liberalizar e desregular ao máximo a nascente indústria digital, colocando o mínimo de regras de controle, sem dúvida pesaram nas decisões do governo de desidratar a ANDP a ponto de torná-la quase um ramal da presidência da República. Mas as consequências de uma agência fraca ainda são incertas.

Já existem no mundo inúmeros exemplos dos riscos que violações de dados e manipulações indevidas das informações dos cidadãos podem causar a pessoas, países e à própria economia. Deixar os modelos econômicos baseados em dados apenas sob a responsabilidade das políticas empresariais de compliance é bonito, do ponto de vista do livre mercado, mas até a página dois. Até a hora que surgir um problema no próprio ordenamento e mecanismo de auto-ajuste do mercado. Quando isso acontecer (e essas falhas certamente acontecerão), não haverá a quem recorrer. A Lei Geral de Proteção de Dados dá algumas garantias aos cidadãos, mas sem mecanismos de aplicação e fiscalização, e sem vontade política de fazê-lo, o risco é de uma lei inócua. Agora é ver se a ANDP, na forma como foi criada, dará conta do recado.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui
Captcha verification failed!
CAPTCHA user score failed. Please contact us!