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Governo precisa abordar a “radiodifusão via satélite”

Surgiu o primeiro problema de natureza estrutural no processo de transição da TV analógica para a TV digital: como tratar as transmissões de TV via satélite, na banda C. A Anatel afirmou que, nos cálculos de cobertura da TV digital, considerará os domicílios que recebem o sinal via banda C como atendidos. Os radiodifusores protestaram.

Ao fazer essa afirmação, a Anatel está tomando ao pé da letra o que está dito na Portaria 481/2014, que estabeleceu o cronograma de desligamento da TV digital. Lá é dito que é condição para o desligamento que “pelo menos, noventa e três por cento dos domicílios do município que acessem o serviço livre, aberto e gratuito por transmissão terrestre, estejam aptos à recepção da televisão digital terrestre”. A pegadinha está na expressão “transmissão terrestre”.

O problema levantado pelos radiodifusores decorre de um fato conhecido por todos os setores envolvidos e pelo governo, mas ignorado há décadas. A transmissão de sinais de TV aberta via satélite, sem codificação, é uma aberração jurídica. Não existe radiodifusão via satélite na legislação e na regulamentação brasileiras. Aliás, não existe sequer radiodifusão terrestre. O que existe é simplesmente radiodifusão de sons e imagens, que é uma modalidade de serviço de telecomunicações instituída pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 (Lei 4.117/1962) caracterizada apenas pela recepção direta e livre pelo público em geral. E para a transmissão nacional de qualquer sinal de radiodifusão é necessária uma concessão, que depende de licitação e outorga do presidente da República.

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No Brasil, existem dezenas de sinais de TV sendo transmitidos via satélite, de forma aberta, que não têm outorga da radiodifusão. Para colocar o sinal no satélite, basta um contrato comercial com uma empresa autorizada a prestar o serviço de transmissão via satélite. A maior parte dos canais abertos está no Star One C2, da Embratel, por uma questão histórica. Para estar lá, além do contrato com a empresa, é preciso uma licença de Serviço Limitado Privado (SLP).

O único instrumento normativo que fala de radiodifusão via satélite é a Portaria 230/1991, editada pela Secretaria Nacional de Comunicações do Ministério da Infraestrutura e assinada pelo então secretário, Joel Marciano Rauber, que instituiu a Norma Geral de Telecomunicações Número 5 (NGT 05/1991). Lá pelas tantas, em seu item 5.4, a NGT 05/91 diz que “depende necessariamente de autorização, permissão ou concessão a exploração do serviço de radiodifusão via satélite”.

O problema é que “radiodifusão via satélite” é algo que nunca foi definido ou normatizado. Não se sabe como essa modalidade se encaixa nos limites de propriedade cruzada instituídos pelo Decreto 236/1963, nem nas regras de licitação do serviço. Mesmo a palavra “terrestre” só passa a ser parte do vocabulário jurídico/normativo da radiodifusão em 2006, quando o governo instituiu o ISDB-T como padrão de TV digital.

Existem no Brasil entre 15 milhões e 22 milhões de domicílios, ao sabor da estatística que se escolha, que dependem de parabólicas para receber o sinal da radiodifusão, simplesmente porque o sinal da TV aberta não chega de forma terrestre.

A Anatel agora indica que vai excluir esses domicílios que recebem via satélite das contas que considerarão os 93% dos domicílios aptos a receber o sinal de TV digital, uma das premissas do desligamento. O problema é que via satélite são transmitidos sinais analógicos de emissoras que têm concessão de radiodifusão, sinais analógicos de empresas que não são concessionárias de radiodifusão, sinais digitais abertos mas sem codificação, sinais digitais codificados, muitas vezes no mesmo satélite, e cada um em um padrão tecnológico diferente… Do ponto de vista jurídico, ter um receptor de sinal de TV via satélite é o mesmo que ter em casa um aparelho de DVD ou um videogame. Para o governo desconsiderar esse universo nos cálculos de cobertura dos 93% seria preciso, primeiro, dar algum tipo de abrigo legal efetivo para a tal “radiodifusão via satélite”. O Ministério das Comunicações tem ensaiado entrar nessa discussão há vários anos, mas a iniciativa vem sendo adiada. Recentemente, esse limbo regulatório criou um outro problema, que é o fato de um grupo estrangeiro passar a controlar uma emissora de TV que distribui seus sinais nacionalmente via satélite.

Fato é que há muitos interesses em jogo. Seria necessário tirar os sinais irregulares do ar (estão lá igrejas, canais comerciais, grupos de mídia regionais etc.), ou fazer licitações para regularizar todo mundo, e passar a fiscalizar o cumprimento dos preceitos constitucionais que regem a radiodifusão também nesses canais. Seria necessário estabelecer qual a norma de TV digital para as transmissões via satélite, porque isso nunca foi definido, já que o padrão brasileiro é exclusivamente “terrestre”. Ou dizer claramente que não há norma e que cada um transmite como quiser e o cidadão que se vire para receber. Seria preciso ainda reconhecer que o modelo de radiodifusão de “recepção direta e livre pelo público em geral” não está sendo cumprido apenas pelas transmissões terrestres, e seria necessário atualizar as regras de propriedade cruzada para incluir o satélite, que de certa forma é uma forma “indireta” de transmissão, já que pressupõe um intermediário. Seria necessário ainda avaliar se o satélite para onde a maior parte das parabólicas está apontada (o Star One C2) é uma “essencial facility” e requer algum tipo de regulação especial ou não, entre outros impasses que poderiam ser elencados aqui. 

O raciocínio da Anatel ao propor essa exclusão até faz sentido, já que efetivamente os cidadãos que usam parabólicas para receber seus sinais de TV podem estar sendo atendidos, mas na prática seria legitimar uma gambiarra, um jeitinho que foi dado para compensar uma ineficiência de cobertura da radiodifusão tradicional. Aliás, não é a única, se lembrarmos que em milhares de municípios o sinal de TV só chega porque prefeituras, ou a própria comunidade, instalaram repetidores de sinais, muitas vezes sem outorga. Por sinal, outra boa pergunta sem resposta é quem pagará pela digitalização nessas cidades.

O que não dá para fazer é simplesmente considerar que quem recebe sinais de TV via parabólica já está recebendo os sinais de TV digital, porque isso não necessariamente é verdade. Aliás, mesmo para os assinantes de TV por assinatura essa afirmação não é verdadeira, já que nem todas as operadoras do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) levam os sinais locais das geradoras de TV aberta, muito menos em alta definição (o que é uma das características do Sistema Brasileiro de TV Digital).

Outra opção é o governo voltar atrás, como querem os radiodifusores, e passar a considerar esses domicílios que recebem os sinais de TV aberta via satélite nos cálculos da cobertura mínima de 93%. São pelo menos 15 milhões de domicílios a mais. Mas aí as chances de o cronograma do desligamento da TV analógica atrasar aumentam exponencialmente, o que é um problema para as teles, que pagaram pelo espectro e agora têm o direito de ocupá-lo. 

Qualquer que seja a solução, o que é preciso ser levado em conta não são os interesses da radiodifusão ou das teles, mas dos milhões de cidadãos que dependem das parabólicas para receber seus sinais e que não podem ser ignorados no processo de desligamento da TV analógica, e que muitas vezes não têm a menor ideia de que tecnologia utilizam para receber o sinal de TV.

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